No Brasil, familiares têm apenas 10 minutos para se despedir dos mortos

Com o segundo maior número de casos de coronavírus do mundo, país impõe restrições aos funerais, impossibilitando as famílias de lamentar a morte de entes perdidos na pandemia.

Por Jill Langlois
fotos de Gui Christ
Publicado 7 de jun. de 2020, 08:52 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 01:56 BRT

A família de Diva Barbosa observa a uma distância segura enquanto funcionários de uma funerária no Cemitério da Vila Formosa enterram a senhora de 85 anos que faleceu de um caso suspeito de covid-19.

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O cheiro forte de álcool em gel pairava no ar enquanto alguns homens no cemitério da Vila Formosa, em São Paulo, colocavam Manoel Joaquim da Silva no chão.

A morte causada por um caso suspeito de covid-19 é sinalizada como risco biológico e o D3 carimbado na parte superior da papelada do senhor de 79 anos indicava que os coveiros precisavam utilizar equipamento de proteção individual completo — luvas grossas de borracha verde-azulada, uma máscara N95 e uma roupa de plástico branco com capuz — antes da chegada do carro funerário.

Para a família — assim como muitas outras ao redor do mundo — isso significava que tinham apenas 10 minutos para se despedir.

Os filhos de Manoel Joaquim da Silva ajudando a levar o caixão lacrado do pai para o túmulo. O homem de 79 anos morreu antes do resultado do teste de covid-19 ficar pronto.

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Os dois filhos de Da Silva, protegidos por luvas e máscaras, seguravam as laterais do caixão de madeira enquanto levavam o pai ao seu local de descanso final, passando pelos montes de terra empilhados entre fileiras de sepulturas abertas. A neta também acompanhou o enterro segurando uma coroa de flores brancas e vermelhas, entregue no último minuto, com as mãos protegidas por luvas, e o namorado a seguia.

Manoel trabalhava em uma cozinha comercial até se aposentar. Ele tinha voltado a trabalhar vendendo bilhetes de loteria nas ruas da cidade quando percebeu que sua aposentadoria não era suficiente para sobreviver. As conversas com os clientes animavam o seu dia, mas ele sabia que tinha que ficar em isolamento quando São Paulo declarou oficialmente uma quarentena em toda a cidade em 24 de março.

Uma semana depois, ele foi hospitalizado. Na semana seguinte, foi enterrado, mas o resultado do teste de coronavírus ainda não havia ficado pronto.

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    Coveiro exuma os restos de um sepultamento anterior para preparar o local para um novo.

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    Não teve velório para o pai de três filhos, nem funeral com familiares e amigos reunidos compartilhando histórias: seu amor pelo trabalho árduo, gatos e cães e cantorias de clássicos do samba pela casa. Os velórios brasileiros podem ser grandes, com caixão aberto e com os participantes abraçando os falecidos.

    Em vez disso, seu corpo estava envolto em um plástico e seu caixão lacrado. Sua esposa de 60 anos, com a saúde há muito tempo debilitada, não pôde comparecer para a despedida final, e sua filha ficou em casa para cuidar dela.

    Os quatro que conseguiram comparecer ficaram lado a lado, observando silenciosamente enquanto os homens se apressavam para enterrar o caixão.

    Quando a última pá de terra foi jogada, em uma pilha entre as fileiras de sepulturas vazias à espera de outros corpos, o filho caçula de Manoel, Rodrigo Manoel da Silva, abaixou a cabeça e sussurrou:

    “Não era para ser assim”, enquanto outro carro fúnebre estacionava ao lado da Q56, a parte do cemitério onde seu pai foi sepultado. “Todo mundo queria estar aqui. Eles deveriam estar aqui. Ele merecia mais do que isso.”

    Um coveiro limpa as valas no Cemitério da Vila Formosa. Um dos três cemitérios públicos de São Paulo, o da Vila Formosa recebeu quase o dobro de sepultamentos em abril em comparação ao mesmo mês do ano passado.

    Foto de Gui Christ

    Desde a chegada do novo coronavírus no Brasil, os sepultamentos passaram a ser breves. Muitas das vítimas em São Paulo, onde a maioria dos casos e mortes do país estão concentradas, estão sendo enviadas para o Cemitério da Vila Formosa, considerado o maior da América Latina, com 750 mil metros quadrados. Mais de 1,5 milhão de pessoas estão enterradas no complexo de duas partes, fundado em maio de 1949.

    Apenas quatro membros da família de Manoel Joaquim da Silva puderam comparecer ao seu funeral. Devido à pandemia de coronavírus, apenas 10 pessoas estão autorizadas a ficar no enterro, mesmo se a morte não estiver relacionada à covid-19.

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    Um dos três cemitérios públicos da cidade, o da Vila Formosa recebeu cerca de 1.684 sepultamentos em abril — praticamente o dobro em comparação ao mesmo mês do ano passado. Os funcionários do cemitério estão sobrecarregados com a grande quantidade de sepultamentos enquanto seguem as diretrizes para poupar as próprias vidas. Cerca de 60% dos coveiros que trabalham para os serviços funerários municipais têm mais de 60 anos e foram afastados por apresentarem alto risco de contrair o coronavírus. A prefeitura contratou 220 trabalhadores temporários por meio de uma empresa terceirizada para dar conta dos corpos.

    O Brasil tem o segundo maior número de casos de covid-19 do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, com mais de 670 mil casos confirmados e 36 mil mortes. Milhares de pessoas, como o Manoel, aguardavam os resultados dos testes quando morreram e foram incluídas na contagem muito tempo depois do falecimento. Enquanto outros nunca foram testados, a causa de suas mortes foi indicada apenas como insuficiência respiratória.

    Wesley Reis usa o telefone para transmitir ao vivo o funeral de seu tio, Givaldo Neri Reis, que morreu de covid-19, enquanto o irmão de Givaldo, Ueliton Neri Reis, lê a Bíblia.

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    Para as famílias deixadas, a perda é inegável. Todos os familiares sofrem não apenas pela perda de seus entes queridos, mas também por perder os rituais tradicionais de luto.

    Despedida apressada

    Gilberto Júlio tirou o boné e fechou os olhos. Era fim de tarde e ele tinha apenas alguns minutos para se despedir da avó. Os coveiros do Cemitério da Vila Formosa se apressaram para terminar o sepultamento na presença deles, com luvas nas mãos segurando as cordas enroladas ao redor do caixão de Diva Barbosa enquanto se aproximavam do local de descanso final da senhora de 85 anos. Outro carro funerário já havia chegado, outra família em choque e chorando. Eles não queriam deixá-los esperando.

    Apenas alguns dos cinco filhos de Diva, 13 netos, 18 bisnetos e um tataraneto estavam presentes em seu enterro. Somente 10 pessoas estão autorizadas a ficar no sepultamento de cada falecido, independentemente de a morte estar relacionada ao coronavírus ou não. O restante espera em casa, sabendo que em breve receberá um telefonema descrevendo a despedida apressada.

    O primeiro sepultamento do dia no Cemitério da Vila Formosa. O Brasil tem o segundo maior número de casos de covid-19 do mundo, depois dos Estados Unidos.

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    Mas ninguém pôde descrever os momentos finais de Diva. Primeiro ela foi a uma clínica local apresentando problemas respiratórios que, segundo ela, eram consequência da asma, uma doença que a afligia há muito tempo, além de diabetes e pressão alta. Duas semanas depois, ela foi transferida para um hospital próximo, onde passaria os dois meses seguintes sedada e intubada, impossibilitada de falar. Sua família não tinha permissão para vê-la.

    A equipe do hospital a testou para a covid-19 no dia de sua internação, mas algo deu errado e ela precisou ser testada novamente. Enquanto sua família estava ao lado de seu túmulo, eles ainda não haviam recebido os resultados de seu segundo teste.

    Lágrimas escorriam pelas bochechas de sua neta, Tatiane Ferreira.

    Ela se recorda da avó como reservada, mas forte, que a ensinou a nunca depender de ninguém além de si mesma. Diva acordava todos os dias às 04h30 da manhã, pronta para cuidar de sua casa, seus netos e filhos e de todas as outras pessoas que apareciam.

    Tatiane e o restante da família deram um passo para o lado quando um carro fúnebre estacionou ao lado deles. Um homem segurando uma Bíblia desgastada e encadernada em couro esperava com os outros seis membros de sua família enquanto quatro trabalhadores terminavam de cavar a sepultura de seu irmão.

    Givaldo Neri Reis tinha apenas 46 anos quando foi internado no hospital com o que os médicos inicialmente acreditavam ser pneumonia. Dois dias após sua internação na UTI que durou 20 dias, foi confirmado que ele tinha covid-19. Ele não tinha nenhuma doença preexistente e por isso sua família tinha certeza de que ele iria sobreviver.

    Contudo Ueliton Neri Reis leu uma passagem da Bíblia enquanto seu irmão era enterrado, sua voz falhou ao pronunciar a palavra “Deus”.

    Ao mesmo tempo, Wesley Reis segurava o celular na frente do rosto coberto por uma máscara para garantir que os familiares pudessem assistir ao sepultamento do tio no vídeo ao vivo que ele registrou. A maioria dos familiares, incluindo a mãe de Givaldo de 71 anos, teve que ficar em casa.

    Os ombros de outro homem começaram a tremer conforme pequenos soluços escapavam de sua boca. Ueliton continuou a ler, sua voz oscilando enquanto terra era lançada sobre o caixão com pesadas pás. Wesley tentou segurar o telefone firmemente com as mãos tremendo. Ele piscava para limpar as lágrimas que brotavam de seus olhos. Talvez quisesse ter uma visão clara do enterro de seu tio. Ele sabia que era a última vez que o veria.

    Outro carro fúnebre estacionou ao lado de Wesley. Seus 10 minutos estavam chegando ao fim.

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