Poliomielite: por que a doença está ressurgindo?

Especialistas alertam que os novos casos da doença letal, há muito erradicada na maior parte do mundo, são apenas a ponta do iceberg. Veja os erros que levaram ao ressurgimento – e como é possível eliminar a poliomielite de uma vez por todas.

Imagem de microscópio eletrônico do poliovírus, um vírus de RNA que é uma espécie de enterovírus.

Foto de BSIP UIG, Getty Images
Por Amy McKeever
Publicado 30 de ago. de 2022, 14:51 BRT

Em 12 de abril de 1955, o mundo pareceu parar no instante em que a equipe da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, anunciou que Jonas Salk havia desenvolvido uma vacina contra a poliomielite.

Nos Estados Unidos, quando a notícia foi anunciada a todo o país, Paul Offit, diretor do Centro de Educação de Vacinas do Hospital Infantil da Filadélfia, lembra que empresas e escolas fecharam para que norte-americanos pudessem comemorar, e igrejas e sinagogas celebraram missas e orações especiais. Sua mãe chorou com a notícia, aliviada pelo fato de que seus filhos finalmente estariam a salvo da doença que paralisava suas vítimas, deixando-as incapazes de andar ou até mesmo respirar.

“Foi um grande acontecimento, que demonstrou o quanto a poliomielite era temida – e com razão. Pacientes que tiveram paralisada sua capacidade de respirar tinham plena ciência do que estava em curso”, afirma Offit. Muitos pacientes acometidos com a poliomielite foram obrigados a depender de pulmões de aço por anos.

Nas décadas seguintes à descoberta de Salk, o vírus selvagem da poliomielite foi eliminado em todos os países, à exceção de dois: Afeganistão e Paquistão. No entanto, a doença ressurgiu nos países que acreditavam que a poliomielite havia sido exterminada. Nas últimas semanas, os Estados Unidos foram abalados com a notícia de que um nova-iorquino ficou paralisado em decorrência da poliomielite, o primeiro caso dessa enfermidade no país em quase uma década. Israel também identificou um caso de paralisia causada por poliomielite em fevereiro.

À esquerda: No alto:

Na cidade de Nova York, em 12 de abril de 1955, menina de oito anos recebe vacina contra a poliomielite enquanto assiste a uma transmissão de televisão em circuito fechado mostrando Jonas Salk imunizando um menino — uma transmissão de treinamento para médicos e cientistas.

Foto de PhotoQuest Getty Images
À direita: Acima:

Duas meninas dentro de máquinas de pulmões de aço durante o tratamento da poliomielite. Sua família do lado de fora as observa pela janela.

 

Foto de Bettmann Getty Images

“É provável que o nova-iorquino não vacinado e infectado represente apenas a ponta do iceberg”, destaca Offit, explicando que a poliomielite paralítica é tão rara que deve haver muitos outros casos ainda não diagnosticados. E, aliás, o vírus já foi encontrado nas águas residuais de Nova York, Jerusalém e Londres.

Offit e outros especialistas alertam que tudo isso sugere que um número crescente de pessoas não vacinadas deixou algumas comunidades bastante vulneráveis aos piores casos de poliomielite 

Confira o que é preciso saber sobre os riscos da poliomielite, as vacinas utilizadas para combater a doença e qual o andamento da iniciativa global para erradicar o vírus.

O que é a poliomielite e como quase a eliminamos?

A poliomielite é uma doença antiga causada por três cepas de poliovírus. Talvez sua representação mais antiga tenha sido uma lápide funerária egípcia de cerca de 1 400 a.C., que retrata um padre com uma perna atrofiada andando com uma bengala.

Descrito clinicamente pela primeira vez em 1789, o vírus tem como principal forma de contágio o contato com fezes de infectados e é conhecido por causar paralisia grave, conforme explica os Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês).

No entanto, casos de poliomielite paralítica são raros. A maioria dos infectados não apresenta nenhum sintoma, e um quarto manifesta apenas sintomas semelhantes aos da gripe. De acordo com os CDC, apenas cerca de uma em 200 pessoas – ou uma em duas mil, a depender da cepa do vírus – desenvolve paralisia.

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    À esquerda: No alto:

    Lápide de Roma de cerca de 1 400 a.C., retratando um antigo porteiro egípcio que se acredita ter sido acometido com a poliomielite.

    Foto de PRISMA ARCHIVO Alamy Stock Photo
    À direita: Acima:

    Jonas Salk, cientista e médico norte-americano desenvolvedor da vacina contra a pólio.

    Foto de PhotoQuest Getty Images

    Ainda assim, no século 20, o surto de poliomielite foi tão desenfreado que os Estados Unidos registravam cerca de 16 mil casos de poliomielite paralítica por ano, na época em que Salk desenvolveu sua vacina. Desenvolvida usando uma forma inativa do poliovírus, que pode induzir imunidade sem causar a doença, a vacina viral de Salk era administrada em diversas doses. Logo se revelou segura e eficaz: o número de casos reduziu de 29 mil novos casos em 1955, quando a vacina foi licenciada, para menos de seis mil em dois anos.

    Durante a campanha de imunização com a vacina de Salk, outro pesquisador norte-americano, Albert Sabin, tentava desenvolver uma vacina contra a poliomielite que utilizava uma forma atenuada de vírus vivo, que se acreditava, na época, que oferecesse imunidade mais duradoura. Tomada por via oral e não por injeção, a vacina Sabin demonstrou induzir uma resposta imune no intestino, algo fundamental para interromper a transmissão do poliovírus selvagem. Além disso, o vírus atenuado poderia ser transmitido e induzir imunidade quando pessoas vacinadas entrassem em contato com outras que ainda não houvessem recebido a vacina.

    “A invenção da vacina contra o poliovírus em meio à competição entre Salk e Sabin foi simplesmente uma grande conquista médica e uma verdadeira revolução na saúde global”, ressalta Daniel Caplivski, especialista em doenças infecciosas da Faculdade de Medicina Icahn no Monte Sinai, em Nova York.

    Profissional de saúde administra gotas de vacina oral contra a poliomielite em criança durante campanha de vacinação em Kandahar, Afeganistão, em 28 de junho de 2022. O Afeganistão e o Paquistão são os dois últimos países onde o vírus selvagem da poliomielite permanece endêmico.

    Foto de JAVED TANVEER AFP, Getty Images

    Graças a uma campanha de vacinação em massa – que ganhou ímpeto na década de 1980 após a erradicação da varíola – a poliomielite quase foi exterminada em todo o mundo. Aliás, duas das três cepas do vírus selvagem da poliomielite foram “certificadas como erradicadas”, conta Ananda Bandyopadhyay, vice-diretora de tecnologia, pesquisa e análise da pólio da Fundação Bill & Melinda Gates.

    Hoje, a poliomielite continua sendo uma vacina do calendário regular, exigida para matricular crianças em escolas públicas em todos os estados dos Estados Unidos, ressalta os CDC. A cobertura vacinal é extremamente alta na maioria dos países e acredita-se que a proteção de ambas as vacinas dure por toda a vida.

    Então, por que ainda existem surtos de poliomielite?

    Embora as campanhas de imunização em massa tenham eliminado a poliomielite selvagem de grande parte do mundo – mais recentemente na Nigéria e na Índia – por vezes ocorreram surtos em países que a erradicaram. Nesses casos, de acordo com os CDC, a doença é desencadeada não pelo vírus selvagem, mas por algo denominado poliovírus derivado da vacina – mutações do vírus vivo atenuado da vacina oral de Sabin.

    Esses vírus raros se desenvolvem em comunidades onde a imunização contra a poliomielite se mantém permanentemente baixa, oferecendo ao vírus atenuado da vacina tempo suficiente para encontrar e infectar pessoas não vacinadas na comunidade. À medida que se replica, o genoma viral pode sofrer mutações e retornar a uma forma virulenta em um processo descrito por Bandyopadhyay como uma “tentativa desesperada de sobreviver”. Embora as pessoas vacinadas permaneçam protegidas contra a nova cepa, quem não estiver vacinado corre o risco de desenvolver paralisia.

    Os pesquisadores conhecem esse fenômeno há décadas, observa Bandyopadhyay. No início dos 2000, alguns países como os Estados Unidos, que já haviam eliminado a poliomielite, deixaram de administrar a vacina oral em favor da vacina inativada original de Salk, que é incapaz de causar novas infecções. Mas, para o restante do mundo, essa não era uma opção viável.

    A vacina oral de Sabin é mais acessível do que a vacina inativada e, como é administrada em gotas e não por injeção, é fácil para voluntários a transportarem a vilarejos remotos e administrarem com treinamento mínimo. A vacina oral também é mais eficaz para interromper o contágio do vírus, essencial para a erradicação.

    “Acredito que essa provavelmente seja a melhor maneira de eliminar o vírus do mundo, mas tem um custo”, afirma Offit, acrescentando que essas cepas de poliomielite derivadas de vacinas provavelmente estão em circulação pelo mundo, até mesmo em locais onde ainda não foi detectada, pois simplesmente não há nenhuma verificação. “Se baixarmos a guarda, como aconteceu com essa comunidade em Nova York, a poliomielite poderá retornar.”

    Como se proteger?

    Os cientistas enfatizam que a vacinação é a chave para acabar com todos os surtos de poliomielite. Ao contrário das variantes da covid-19, que podem se esquivar da imunidade da vacina, as vacinas contra a poliomielite são amplamente protetoras contra a poliomielite selvagem e os poliovírus derivados da vacina. Por ora, a alta cobertura vacinal mantém as comunidades seguras, dificultando para o vírus encontrar um novo hospedeiro.

    Offit destaca um surto de poliomielite em 1972 em um internato do movimento religioso Ciência Cristã, em Greenwich, Connecticut, Estados Unidos, que paralisou oito crianças que não haviam sido vacinadas. Embora houvesse preocupações na época de que o vírus pudesse ser transmitido a comunidades vizinhas, Offit explica que isso nunca ocorreu devido aos elevados níveis de inoculação nessas regiões.

    Qual é o significado disso? Se você já se vacinou, não é preciso fazer mais nada para se proteger. Mas, do contrário, vacine-se agora mesmo. Ainda que não tenha certeza se foi vacinado, Caplivski afirma que ambas as vacinas contra a poliomielite são tão seguras que não há nenhum problema em receber uma dose de reforço ou tomar todas as suas doses.

    Em Nova York, acrescenta ele, o Departamento de Saúde pediu aos profissionais de saúde que garantam que as crianças mantenham-se em dia com a vacinação – sobretudo devido a evidências de que a pandemia de covid-19 interrompeu as imunizações infantis do calendário regular em todo o mundo, de acordo com a Unicef. No Reino Unido, autoridades de saúde pública lançaram uma campanha de vacinação contra a poliomielite voltada a crianças entre 1 e 9 anos.

    Mas cientistas estão muito preocupados em alcançar comunidades que, até o momento, se recusaram a vacinar os filhos. “Acredito que haja uma tendência, após tantos anos sem a memória de algumas dessas doenças da infância, de se esquecer da importância da eficácia fundamental da vacinação”, observa Caplivski, acrescentando que, muitas vezes, os pais decidem não vacinar os filhos porque não compreendem os riscos da poliomielite e de outras doenças infantis, como o sarampo, que, em sua maioria, já foram eliminadas.

    Offit concorda. “É frustrante”, lamenta ele. “Há tanta falta de conhecimento na medicina, há tantos males para os quais não se conhece a cura e não há nada a fazer. Mas existe vacina para essa doença. É doloroso ver pessoas recusando-a.”

    O que mais é necessário para acabar com a poliomielite?

    Extirpar a ameaça de poliovírus derivados de vacinas exigirá o abandono das vacinas orais tão essenciais à erradicação global. Contudo, embora o objetivo seja interromper seu uso por completo, Bandyopadhyay observa que as vacinas orais ainda são necessárias a comunidades no Afeganistão e no Paquistão, onde a poliomielite permanece endêmica.

    É por isso que pesquisadores da Iniciativa Global de Erradicação da Pólio (Gpei, na sigla em inglês) – organização público-privada que inclui a Fundação Gates, a Organização Mundial da Saúde, a associação Rotary International e outros parceiros – encontraram uma solução paliativa: uma versão da vacina oral que não pode retornar a um estado infeccioso.

    “O que fizemos foi aperfeiçoar o vírus existente da vacina”, comenta Bandyopadhyay. Ele explica que os pesquisadores identificaram o segmento específico do vírus vivo atenuado da vacina oral que é propenso a retornar a um estado infeccioso. Ao modificar as instruções genéticas que codificam a estrutura do vírus, tentaram estabilizá-lo.

    “Até o momento, os dados parecem excepcionalmente promissores”, observa Bandyopadhyay. De acordo com a Gpei, cerca de 450 milhões de doses da nova vacina oral contra a poliomielite (nOPV2) foram administradas globalmente desde que a Organização Mundial da Saúde a indicou para uso emergencial em novembro de 2020. Desde então, Bandyopadhyay afirma que não houve novos surtos de poliovírus derivado da vacina nas regiões onde foi administrada. O monitoramento do esgoto indica que não está ocorrendo uma mutação do vírus de volta a um estado virulento.

    Uma vez interrompidas todas as formas de contágio do vírus selvagem, Bandyopadhyay afirma que a Gpei planeja passar para o uso da vacina inativada para eliminar o potencial de surgimento de poliovírus derivados da vacina. Mas, por ora, insiste ele, nada disso importa. “Se a última criança da última comunidade puder ser imunizada, independentemente da escolha da vacina, o trabalho estará concluído”.

    Em última análise, isso dependerá do alcance à comunidade crescente que hesita em tomar vacinas. Um novo surto mudará suas opiniões? Se não mudar, Offit afirma que não é um bom sinal para o futuro. “Se a poliomielite não assusta ninguém, não sei o que assustará.”

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