Por que cientistas querem tratar doenças com drogas psicodélicas?

Drogas baseadas em compostos naturais podem ajudar pessoas com ansiedade, depressão e dependência. Mas é possível eliminar os efeitos colaterais, como viagens longas e sinuosas, mantendo só os benefícios terapêuticos?

Um cogumelo do gênero Psilocybe, que contém o composto psicoativo psilocibina.

Foto de ALANA PATERSON
Por Meryl Davids Landau
Publicado 2 de nov. de 2022, 09:58 BRT

Matthew Johnson, pesquisador de drogas psicodélicas da John Hopkins Medicine, estuda os efeitos da psilocibina em pacientes que sofrem de depressão ou dependência, e tem a consideração de excluir qualquer pessoa com doença cardíaca. A razão desta particular exclusão é porque a droga – o ingrediente ativo dos cogumelos mágicos – tem o potencial de prejudicar o coração. Nos ensaios clínicos da universidade também surgiram outros efeitos colaterais como as náuseas.

Pequenos estudos como o de Johnson confirmaram o poder dos psicodélicos para tratar certos tipos de doenças mentais, mas também levantaram preocupações sobre os efeitos colaterais. Isso estimulou as empresas de biotecnologia e farmacêuticas, atraídas pelo tremendo potencial, a projetar novos compostos psicodélicos sem as desvantagens – incluindo, talvez, a longa e sinuosa “viagem” pela qual são famosos. A maioria das empresas ainda está nos estágios iniciais de identificação de moléculas e testes em animais de laboratório.

“Ainda é necessário realizar estudos grandes e definitivos. Mesmo assim, parece cada vez mais claro que os medicamentos psicodélicos podem ser muito benéficos para indivíduos com depressão, dependência e outros transtornos comuns”, diz Christopher Pittenger, diretor do Programa de Yale para Ciência Psicodélica.

Os psicodélicos incluem drogas como dietilamida do ácido lisérgico (LSD), ayahuasca, mescalina e outras substâncias que alteram a consciência, bem como entactogênicos, uma classe relacionada que inclui metilenodioximetanfetamina (MDMA). A maioria dos especialistas considera os compostos geralmente seguros. De acordo com os Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA, milhões de americanos lutam com problemas de saúde mental, portanto há uma necessidade urgente de novas terapias.

A pesquisa mostrou que, quando voluntários de ensaios clínicos recebem doses específicas desses medicamentos sob supervisão e preparação cuidadosa, apenas uma ou duas sessões podem fornecer tratamento eficaz e duradouro para uma ampla gama de transtornos de saúde mental, incluindo depressão, ansiedade e dependência.

Uma dose de psilocibina em um cálice cerimonial no Centro Médico Johns Hopkins Bayview em Baltimore, ...
Um técnico de laboratório colhe cogumelos do gênero Psylocibe em Numinus, em Nanaimo, British Columbia, Canadá, ...
À esquerda: No alto:

Uma dose de psilocibina em um cálice cerimonial no Centro Médico Johns Hopkins Bayview em Baltimore, 6 de maio de 2021. Pequenos estudos confirmaram o poder dos psicodélicos para tratar certos tipos de doenças mentais, mas também levantaram preocupações sobre os efeitos colaterais.

Foto de Matt Roth
À direita: Acima:

Um técnico de laboratório colhe cogumelos do gênero Psylocibe em Numinus, em Nanaimo, British Columbia, Canadá, em 18 de fevereiro de 2021.

Foto de ALANA PATERSON

Em um dos estudos realizados por Johnson, 24 pessoas com depressão grave tomaram duas doses de psilocibina acompanhadas de psicoterapia de apoio. Um ano depois, 58% ainda estavam em remissão. (Outra pesquisa descobriu que as taxas de remissão da psicoterapia sozinha estão mais próximas de um terço.) 

A Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Maps, na siglas em inglês) sem fins lucrativos relatou resultados positivos para transtorno de estresse pós-traumático com MDMA (também conhecido como ecstasy ou Molly); depois de dois meses de tratamento, 67% dos participantes já não preenchiam os critérios para TEPT. Para os próximos anos, a Maps espera receber aprovação deste tratamento por parte da FDA (Food and Drug Administration) dos EUA. Ainda assim, a associação cita efeitos colaterais potenciais, que vão desde boca seca e ranger de dentes até outros mais preocupantes, como desmaio ou aumento da pressão arterial.

Cogumelos e a natureza

Embora alguns compostos psicodélicos, como o LSD, tenham sido sintetizados em laboratório, a maioria deriva da natureza. Isso significa que as propriedades que associamos a eles evoluíram para proteger a planta, como desencorajar predadores, e não para tratar humanos, diz Joseph Tucker, CEO da Enveric Biosciences, uma startup de dois anos de Cambridge, Massachusetts. Dessa forma, os psicodélicos não são diferentes de muitas outras drogas.

“Historicamente, a indústria farmacêutica é inspirada na natureza para depois produzir algo no laboratório para torná-lo mais seguro, aumentar sua eficácia, ter menos efeitos colaterais e facilitar a fabricação”, explica, apontando para o clássico exemplo: aspirina, que foi modelada em um composto de casca de salgueiro.

As empresas também estão procurando melhorar o tempo, a intensidade e a duração da experiência psicodélica. Os psicodélicos podem levar uma ou duas horas para começar a funcionar e, uma vez que o fazem, a experiência permanece cerca de 10 horas para viagens de LSD e seis para psilocibina. Isso é muito tempo para permanecer sob os cuidados constantes de um profissional médico. E como a experiência psicodélica pode ser intensa, aqueles com histórico de psicose ou esquizofrenia são geralmente excluídos dos ensaios clínicos com drogas psicodélicas.

“Não seria melhor se você pudesse tomar um psicodélico que começasse a funcionar em cinco ou 10 minutos e que sua sessão durasse uma ou duas horas – e sem o desconforto gastrointestinal? Tudo isso é possível”, diz Tucker.

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    Foto de AP

    Claro, outro fator-chave da inovação é o fato de que as empresas não podem patentear um organismo natural como um cogumelo mágico ou um cacto, que é a fonte da mescalina. Mas eles podem possuir os direitos de uma molécula inteiramente nova ou de uma nova formulação ou sistema de entrega.

    “Agora realmente há uma oportunidade de negócios, que não existia alguns anos atrás”, observa Evan Levine, cofundador e CEO da startup que já fez três anos, PsyBio Therapeutics, em Oxford, Ohio (EUA), fazendo referência à crescente aceitação por profissionais médicos tradicionais do potencial da terapia psicodélica.

    Esse motivo de lucro não é negativo, diz Johnson, da Johns Hopkins, uma vez que incentiva as empresas a realizar os estudos profundos e caros que são necessários para provar a eficácia e segurança dos medicamentos. “Precisamos de investimentos confiáveis ​​de empresas farmacêuticas e startups”, explica.

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      Foto de Meridith Kohut

      Apelando ao poder da computação

      Para criar moléculas que melhorem a natureza, algumas empresas estão recorrendo à inteligência artificial (IA). A empresa April19 Discovery, com sede em Londres, foi lançada por cientistas da computação há dois anos especificamente para projetar novas drogas psicodélicas.

      Para testar um dos seus programas de IA de projeto de drogas, os computadores deviam identificar potencialmente moléculas com propriedades psicodélicas de um grande banco de dados de compostos químicos. Logo, as moléculas foram comparadas com os 230 compostos descobertos em meados do século 20 pelo renomado bioquímico Alexander Shulgin, que ingeriu pessoalmente cada um deles enquanto os examinava para efeitos psicodélicos. April19 marcou quase 200 desses elementos em poucos dias, diz Suran Goonatilake, cofundador e professor de inteligência artificial da University College de Londres.

      Acredita-se que a maioria dos psicodélicos clássicos funciona ativando um tipo de receptores de serotonina no cérebro, chamada 5-HT2A. Mas dentro do grupo de moléculas que podem estimular esses receptores, cada uma causa reações bioquímicas únicas que podem desencadear ou evitar os efeitos colaterais indesejados. A IA pode prever algumas dessas interações, diz Goonatilake. Melhores compostos também podem evitar o estímulo dos receptores 5-HT2B que muitos psicodélicos ativam – mas que estão associados à toxicidade cardíaca após vários usos. Até agora, a empresa encontrou dezenas de moléculas que planeja testar em animais vivos.

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      Imagem colorida e melhorada de microscópio eletrônico de varredura dos esporos de fungos que se transformarão nos cogumelos mágicos, Psilocybe cubensis. Quando ingerido, esse fungo causa euforia, alucinações e alteração da percepção do tempo.

      Foto de Ted Kinsman

      April19 também colaborou com a Enveric para avaliar os 500 compostos que havia identificado anteriormente em um catálogo de substâncias potenciais. O uso da IA ​​permitiu que a Enveric reduzisse substancialmente a seleção dos mais promissores de todos os candidatos a medicamentos, detalha Tucker. No final do próximo ano, a empresa planeja testar suas moléculas mais promissoras para o tratamento da ansiedade e da dependência em ensaios clínicos.

      O ajuste de moléculas no laboratório deve ser tomado a sério, diz Jackie von Salm, co-fundadora da startup Psilera, com sede em Tampa, Flórida (EUA), que utiliza o aprendizado de máquina para ajudar a identificar compostos potencialmente benéficos. “É chocante mudar apenas um ou dois átomos. Você muda drasticamente a atividade [psicodélica]”, considera. “Isso realmente ensina que, se você está trabalhando com o cérebro, deve começar aos poucos”, complementa.

      Outras inovações também estão sendo examinadas para identificar rapidamente candidatos a psicodélicos. Os bioquímicos da Universidade da Califórnia, em Davis, projetaram um sensor de proteína geneticamente modificado que chamaram de psychLight. Sempre que uma molécula se liga ao receptor 5-HT2A da serotonina em uma lâmina de microscópio, ela muda de forma, fazendo com que a proteína fluorescente se ilumine.

      Em uma pesquisa publicada no ano passado na revista Cell, o sensor previu com sucesso os efeitos biológicos de várias moléculas – incluindo uma que não criou uma viagem psicodélica, mas que, no entanto, produziu uma mudança duradoura, semelhante a um antidepressivo, em animais. “Passamos por mil compostos em uma semana”, diz Lin Tian, ​​que ajudou a desenvolver a técnica e é vice-presidente de medicina molecular da universidade. “Esta não é uma previsão de um computador, mas uma reação biológica real que observamos.”

      É claro que mexer com moléculas de drogas psicodélicas não é isento de riscos. “Sempre há uma chance de que, ao tentar reduzir as alucinações, você as sobrecarregue, ou talvez acabe aumentando a toxicidade cardíaca em vez de removê-la”, observa von Salm, da Psilera.

      Eliminando a “viagem”?

      Para usar psicodélicos como tratamento, algumas empresas acreditam que pode ser útil reduzir ou eliminar a viagem que altera a consciência para tornar a experiência menos perturbadora na vida de uma pessoa. No entanto, não se sabe se é possível obter benefícios para a saúde mental sem a viagem, que de muitas maneiras define os psicodélicos e entactogênicos.

      Cogumelos de psilocibina Mazatec cultivados em uma cuba prontos para a colheita.

      Cogumelos de psilocibina Mazatec cultivados em uma cuba prontos para a colheita.

      Foto de Joe Amon

      A Psilera está testando a aplicação de doses menores do psicodélico dimetiltriptamina (DMT), uma droga também chamada Dimitri. Como o DMT é degradado quando ingerido – a maioria dos usuários de drogas de rua fuma ou injeta – a empresa patenteou um adesivo de pele que espera fornecer uma dose média e constante que não cause alucinações, mas ainda provoque mudanças cerebrais duradouras que podem produzir efeitos terapêuticos.

      A Psilera também está à procura de novos compostos. Vários dos que foram testados em animais causaram menos alucinações. Mas estudos comportamentais e dissecções cerebrais descobriram que os compostos retinham alguns dos efeitos antidepressivos e ansiolíticos dos psicodélicos, diz von Salm. 

      Se você está se perguntando como os cientistas podem saber se um animal está fazendo uma viagem, é graças à sacudida do “cachorro molhado”. Aparentemente, tentando se livrar das imagens intensivas e alteradas, os animais mexem repetidamente suas cabeças quando estão sob o efeito dos compostos psicodélicos. Então, os cientistas acreditam que quando eles não balançam a cabeça, é um sinal de que as alucinações foram reduzidas ou eliminadas.

      Outra empresa, a MindMed, com sede em Nova York, inspirou seu composto não alucinógeno registrado, 18-MC, na ibogaína psicodélica da África Ocidental – derivada das raízes do arbusto da iboga. Estudos com ratos sugerem que a droga é útil no tratamento do abuso de substâncias, mas não causa problemas de ritmo cardíaco associados à ibogaína, segundo a empresa.

      Foi descoberto que o composto da PsyBio Therapeutics, ainda sem nome, melhora o TEPT em animais de laboratório sem gerar uma viagem, diz Levine. Ele acredita que tal droga pode ser particularmente benéfica para pacientes severamente ansiosos, porque eles podem não se sentir à vontade abrindo mão do controle de sua consciência.

      Uma aula de ioga realizada em uma praia para a Marinha em Serviço.

       Pesquisas publicadas confirmam que algo terapêutico acontece mesmo quando a viagem é retirada. Em um estudo da Universidade da Califórnia, em Davis, roedores foram submetidos a estressores leves e, em seguida, receberam uma dose de um parente não alucinógeno da ibogaína chamado tabernantholog. Estudos de imagem mostraram que a droga promoveu a regeneração de partes de certos neurônios cerebrais que tinham diminuído pelo estresse, relataram os pesquisadores na Molecular Psychiatry.

      Alterar a parte da molécula da droga que estimula a experiência de alteração da consciência pode ser útil porque a maneira como os psicodélicos clássicos são usados ​​é muito ineficiente e cara para ser implantada em larga escala, diz Pittenger, de Yale. “Se o campo científico puder desenvolver estratégias para capturar os efeitos antidepressivos ou anti-dependência em uma pílula sem grandes efeitos na consciência”, acrescenta, “será muito mais fácil imaginar os novos benefícios que poderíamos levar para os milhões que precisam”.

      Mas Johnson, da Hopkins, duvida que substâncias não alucinógenas causem mudanças duradouras em pessoas que têm problemas de saúde mental graves ​​com apenas uma ou duas doses psicodélicas. Em vez disso, ele pensa que provavelmente sejam pacientes que exijam um uso contínuo. Mas esses medicamentos, acredita Johnson, ainda podem ser mais eficazes do que os antidepressivos e outros medicamentos que estão disponíveis atualmente.

      Uma maneira de evitar a alteração da consciência é tomar uma microdose de um psicodélico padrão, ou uma pequena porcentagem de uma quantidade ativa, diz Justin Hanka, fundador e CEO da empresa MindBio Therapeutics, com sede em Melbourne, Austrália. Mas esse método não foi rigorosamente estudado em humanos, e a automedicação não é aconselhada.

      Para que o LSD se torne um tratamento de microdose aceito, as empresas farmacêuticas devem desenvolver uma formulação padrão cuja dosagem possa ser individualizada, e que não se degrade com o tempo, uma das características conhecidas do LSD, diz Hanka.

      LSD aumentou a felicidade, sociabilidade e criatividade

      Em parceria com a Universidade de Auckland, a MindBio concluiu recentemente a fase um do primeiro ensaio clínico de LSD em microdosagem, no qual 80 participantes saudáveis ​​tomaram uma versão oral da droga ou um placebo a cada três dias durante seis semanas. Os primeiros resultados deste pequeno estudo, ainda não publicado, mas compartilhado exclusivamente com a National Geographic, mostraram que o LSD aumentou a energia, a felicidade, a conexão social e a criatividade, de acordo com uma bateria de testes psicológicos. Para o próximo ano, já há planos em andamento para testar pessoas com transtornos depressivos maiores.

      Ninguém espera que todos os compostos que estão sendo testados dêem certo, mas mesmo se um pequeno número for valioso, eles podem causar um enorme impacto no grave problema da saúde mental. “Existe uma grande possibilidade de melhorar a sociedade”, diz Tucker, da Enveric. “Coletivamente, todo esse setor tem o potencial de progredir na produção de medicamentos novos de grande impacto.”

       

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