Indígenas da Amazônia possuem gene que protege contra a doença de Chagas, diz novo estudo
A constatação foi feita com base na análise do genoma de 118 indivíduos pertencentes a 19 povos da região. Resultados publicados na revista Science Advances podem ajudar na busca por novos tratamentos.
Indígenas da etnia yanomami, Roraima, Brasil. O estudo analisou 600 mil marcadores do genoma de 118 pessoas de 19 populações indígenas da floresta amazônica.
A baixa ocorrência de doença de Chagas entre povos indígenas da Amazônia pode ter uma explicação genética. É o que conclui um novo estudo publicado em março na revista científica Science Advances, que aponta uma variante genética, presente na imensa maioria dos indivíduos analisados na região, que possui importante papel na resistência à infecção pelo parasita transmissor da doença.
As conclusões são fruto da análise de 600 mil marcadores do genoma de 118 pessoas de 19 populações indígenas da floresta amazônica.
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Os pesquisadores, ligados à Universidade de São Paulo (USP), encontraram diferenças em genes envolvidos no metabolismo, no sistema imune e na resistência à infecção por parasitas como o Trypanosoma cruzi, causador da doença de Chagas. Uma das variantes mais frequentes, presente no gene conhecido pela sigla PPP3CA, ocorre em 80% dos indivíduos analisados.
“O continente americano foi o último ocupado pelos humanos modernos e tem uma grande variedade de ambientes. Isso certamente causou uma pressão seletiva sobre esses povos e induziu adaptações, como essa que estamos vendo agora”, explicou Kelly Nunes, pesquisadora do Instituto de Biociências da USP e uma das autoras principais do estudo, em comunicado divulgado à imprensa pela Agência Fapesp.
De acordo com a publicação, a variante do PPP3CA também está presente em outras populações, porém, numa frequência menor: 10% na Europa e 59% na África. Os autores acreditam que não é uma coincidência, uma vez que o continente africano possui regiões com condições ambientais similares à da Amazônia e abriga outra espécie do parasita, o Trypanosoma brucei, causador da doença do sono. O dado reforça o papel da variante genética como protetora contra infecções por protozoários.
Qual a ligação entre a genética e a resistência à doença de Chagas?
Para compreender o papel do gene PPP3CA na interação com o protozoário causador da doença de Chagas, o grupo converteu células-tronco pluripotentes (que podem ser transformadas em qualquer outra célula humana) em células cardíacas, que foram divididas em dois grupos de controle. Uma parte teve a expressão do gene PPP3CA reduzida em cerca de 65% para simular a variação genética encontrada nas populações indígenas. Enquanto a outra manteve a expressão normal.
Nas células com a expressão reduzida do gene, a capacidade de infecção dos protozoários foi aproximadamente 25% menor do que naquelas que tinham a expressão normal do PPP3CA.
“Isso mostra que o gene, em sua condição mais comum nos humanos, favorece a replicação do protozoário. Esse fator provavelmente levou os ancestrais dos indígenas amazônicos que tinham a variante protetora a serem menos infectados e sobreviverem mais à doença, passando esse traço para seus descendentes”, disse Nunes, em comunicado da Agência Fapesp.
Além de diminuir a chance de infecção, uma hipótese levantada pelos autores é que a variante genética encontrada no estudo também possa favorecer uma forma mais leve da doença. Na população em geral, cerca de 30% dos pacientes com doença de Chagas desenvolvem a forma crônica da doença, que causa insuficiência cardíaca e pode levar à morte.
“Não quer dizer que os povos nativos amazônicos nunca tenham Chagas, mas os que são infectados podem ter menos chance de desenvolver a sua fase crônica e até mortal”, esclareceu Nunes.
Segundo o estudo, o surgimento da variante protetora contra a doença de Chagas pode ter ocorrido há cerca de 7,5 mil anos, após as populações amazônicas se separarem das dos Andes.
Descoberta pode significar novos tratamentos
O estudo também traz um novo conhecimento sobre a infecção do protozoário que pode ajudar no desenvolvimento de novos tratamentos. A doença de Chagas é listada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) entre as 20 moléstias tropicais negligenciadas. Esse conjunto de doenças afeta sobretudo pessoas pobres e não dispõe de tratamentos específicos sem efeitos colaterais fortes.
Nos últimos anos, o aumento de casos da doença na Europa e nos Estados Unidos, onde estimativas apontam que cerca de 300 mil pessoas convivam com Chagas, segundo os órgãos de saúde do país, tem chamado a atenção para a necessidade de se criar medicamentos mais eficazes.
O artigo, disponível online pela revista Science, integra o projeto “Diversidade genômica dos nativos americanos”, apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).