Do Caribe ao Xingu – Amapá guarda vestígios do processo de ocupação da Amazônia

Escavações na região da foz do Amazonas revelam populações milenares que desenvolveram arte, monumentos megalíticos semelhantes ao Stonehenge e avançadas tecnologias cerâmicas e agrícolas.

Névoa encobre as serras do rio Amapari, próximo ao município de Serra do Navio, no Amapá, onde, entre os séculos 10 e 15 d.C., habitavam grupos indígenas portando cerâmicas Koriabo – um tipo encontrado desde o Caribe até o Baixo Amazonas. Sítios arqueológicos de até 9 mil anos atrás também já foram encontrados no Amapari.

 

Foto de Maurício de Paiva
Por Mauricio de Paiva, João Saldanha
Publicado 8 de jul. de 2021, 17:00 BRT, Atualizado 9 de jul. de 2021, 17:46 BRT

Sujos de terra e queimados de sol na nuca e nos antebraços, embarcados em uma pequena voadeira no meio do rio Araguari, púnhamos a mira ao longe, no entorno de uma cachoeira, já cristalizando na memória a quantidade salpicada de sítios arqueológicos que encontramos naquela paisagem e onde passamos semanas no trabalho da arqueologia preventiva de licenciamento ambiental.

Tínhamos sido contratados para fazer o resgate arqueológico, previsto em lei, da área da usina hidroelétrica (UHE) Cachoeira Caldeirão, construída na bacia do médio rio Araguari, a cerca de 90 km em linha reta da capital Macapá, no Amapá, em 2016. Era o fim de mais um longo dia de escavações nos sítios que posteriormente seriam alagados por uma represa com quase 50 km2 de área.

Nossas pesquisas haviam, de forma inequívoca, posto em xeque uma das hipóteses formulada por um casal pop e reconhecido de arqueólogos norte-americanos: Betty Meggers e Clifford Evans, do Instituto Smithsonian. O casal americano sustentou algo que reverbera até hoje: a região do caudaloso rio Araguari e suas adjacências, desde o cabo norte, puxando o imaginário sobre os grupos indígenas pré-cabralinos, teria sido uma área desabitada e vazia.

Meggers foi quem fez a revisão dos dados das teorias da evolução tecnológica cultural e a conhecida identificação ocupacional de cronologias amazônicas. Sua figura se tornou um dos ícones na arqueologia brasileira devido a sua atuação no Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas (Pronapa) nos anos 1960. Depois, em 1977, ela ajudaria a criar o Pronapaba, focado na bacia amazônica, que levantou dados de experiências de campo, organizando sistematicamente um quadro do que seriam as culturas pré-coloniais dos trópicos.

No livro Archeological investigations at the mouth of the Amazon (Investigações arqueológicas na foz do Amazonas, em tradução livre) e em suas defesas acadêmicas, derivadas de incursões feitas entre 1948 e 1949 na foz do rio Amazonas, Meggers e Evans procuraram traçar o desenvolvimento cultural numa área que compreendia desde a maior ilha fluviomarinha do mundo, a ilha de Marajó, no Pará, até o que é hoje o estado do Amapá, na Amazônia Atlântica, e sugeriram classificar a ocupação da região em três fases arqueológicas.

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    Estruturas megalíticas de até 4 m de altura dispostas em círculo de 30 m de diâmetro no sítio arqueológico Rego Grande, município de Calçoene, norte do Amapá. Datado entre os séculos 9 e 10 d.C. e apelidado de Stonehenge Tropical, o monumento foi construído em alinhamento com a posição do Sol no solstício de inverno do Hemisfério Norte – um indicativo de que o local possa ter sido um observatório astronômico. 

    Foto de Maurício de Paiva

    Estas gravuras rupestres foram encontradas em 2000, no município de Ferreira Gomes, próximo à usina hidrelétrica Cachoeira Caldeirão. O lugar foi visitado pela arqueóloga Edithe Pereira e batizado de sítio arqueológico Pedra do Índio.

    Foto de Maurício de Paiva

    A mais antiga, ou a considerada primeira ocupação ceramista do Amapá, chamada de Aruã, teria advindo da região circumcaribenha mais ou menos do século 13 a.C. Mais tarde, o Amapá teria sido ‘invadido’ por povos das fases chamadas de Aristé e Mazagão, que viveram entre os séculos 1 e 9 d.C., na costa e ao norte da margem esquerda do rio Araguari. Essas três fases estavam divididas, então, entre os territórios norte e sul amapaense. Ao pensarmos em um mapa e os pontos cardeais, as terras Aristé e Mazagão teriam o rio Araguari como uma espécie de marco, uma divisa implícita, que foi postulado pelos gringos Meggers e Evans com o termo ‘no man’s land’.

    Quem exatamente habitava o fluxo e entorno do rio Araguari? Para eles, o Araguari seria um 'lugar sem ninguém', ou uma 'terra de ninguém', como uma ideia limítrofe de fronteira, mais ou menos turva no que diz respeito à presença ou não de povos originários ali.

    Mais de meio século depois do postulado no man’s land, com o esforço relativamente recente de pesquisas arqueológicas desenvolvidas principalmente pelo Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do Estado do Amapá (Iepa) nos últimos anos, a visão das ocupações antes da conquista europeia já é bem diferente da colocada por Evans e Meggers no passado, não só em relação à paisagem do entorno do Araguari, mas ao Amapá inteiro.

    Bruno Barreto, doutorando no Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE/USP) e pesquisador freelancer do Núcleo de Pesquisas Arqueológicas (NuPArq) do Iepa, argumenta que não devia haver essa separação sugerida por Meggers e Evans. “A região do rio Araguari seria mesmo para nós uma fronteira imaginada, mas não como um muro rígido no sentido de ter havido poucas relações, mas sim de muitas interações naquele espaço”, disse ele em entrevista à reportagem. “A circulação de ideias e de pessoas não era impedida.”

    Bruno vislumbra que “essa é uma região que ainda temos que estudar bem o que aconteceu por ali, principalmente para o norte do Amapá, até onde o que seria uma intersecção com os sítios da cultura Aristé.”

    História amapaense

    O Amapá tem grandes dimensões de cobertura vegetal de floresta ainda em pé graças a sete unidades de conservação (UC) de uso sustentável – incluindo reservas extrativistas e de desenvolvimento sustentável –, seis terras indígenas – que abrigam índios palikur, wayana, karipuna, wajãpi e galibi – e mais de 10 UC’s, se consideradas as privadas, de proteção integral – incluindo o maior parque nacional do Brasil, o Montanhas do Tucumaque, com 38.464 km², área maior que a do Alagoas.

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        Pescadores ocasionais se reúnem na Reserva Biológica do Lago Piratuba, na foz do Amazonas, uma das unidades de conservação que, juntas, encobrem 62% da área do Amapá. Um dos alvos preferidos dos ribeirinhos é o Pirarucu, cuja captura, feita por arpão, exige estratégia e técnicas específicas, provavelmente já utilizadas por populações ancestrais há milênios.

        Foto de Maurício de Paiva

        Aurora no rio Araguari, na curva da comunidade Capivara, local de um garimpo de ouro que vigorou de 1974 a 2009, hoje Floresta Nacional (Flona) do Amapá. Além da conservação da floresta, dos animais, rios e igarapés, a reserva possui como objetivo promover benefícios às pessoas que moram nela e no seu entorno pelo uso sustentável dos recursos naturais – são 446 espécies de plantas e 135 espécies de 25 famílias de peixes.

        Foto de Maurício de Paiva

        A usina hidrelétrica (UHE) Ferreira Gomes, no município homônimo, faz parte de complexo de três UHE’s no Amapá – uma delas, a Coaracy Nunes, foi a primeira construída na Amazônia, em 1975. Em 2015 e 2016, antes da construção da usina e por determinação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional do Amapá, foi feito o resgate arqueológico da área.

        Foto de Maurício de Paiva

        Com apenas 16 municípios, a região foi ocupada, segundo a arqueologia brasileira, por civilizações pretéritas há mais de 9 mil anos, datação obtida em um sítio no alto rio Amapari, um brilhoso e encachoeirado afluente do Araguari. Após um lento, mas constante desenvolvimento nativo em um ambiente extremamente rico em recursos naturais como o do estuário do Amazonas, houve uma grande explosão cultural que se iniciou a partir de 2 mil anos atrás, com um ápice de florescimento cultural próximo do ano 1.000 d.C, mesmo período da Idade Média, na Europa, e similar ao período do ápice do império Inca, nos Andes.

        Este momento da história pode ser explicado por um aumento populacional associado ao surgimento de uma superlativa diversidade estilística de povos dos anos 1.000 d.C., com a produção de cerâmicas extremamente decoradas a partir de uma tecnologia vigorosa e específica. Algumas exibem formas humanas ou animais, chamadas de antropomorfas (figuras humanas), zoomorfas (figuras de animais) ou também as antropozoomorfas (misturas entre humanos e animais).

        Além disso, monumentos foram erguidos intencionalmente por alinhamentos de rochas, formando arranjos circulares megalíticos (blocos graníticos com até 30 metros de diâmetro), como é o caso do sítio Rego Grande, no município de Calçoene. Esse sítio arqueológico já foi comparado ao famoso Stonehenge inglês (4,5 mil anos de idade), e apelidade de ‘Stohenge tropical’, e tem sido pesquisado com afinco desde 2005. Especula-se o que poderia ter acontecido na vida daquele povo impetuoso para construir essa estrutura de pedras que transformaria para sempre aquela paisagem, inclusive o impacto que causa ainda hoje quando lá estamos para olhar o céu do Amapá no solstício de inverno, todo fim de dezembro – lembrando que o local fica no Hemisfério Norte.

        Rego Grande, esse sítio arqueoastronômico ligado aos índígenas aristé, foi erguido por círculos rochosos delimitados por fossos. Montes de terra artificiais começaram, por volta do ano 1.000, a serem utilizados em rituais e ritos funerários. Podemos dizer que essa ideia de explosão cultural, extensiva também a mais de 2 mil atrás, fez com que o Amapá se tornasse uma área muito potente em termos de riqueza, diversidade e montantes arqueológicos – os rastros, lastros e vestígios – quando comparada a outras partes do Brasil.

        “A foz do rio Amazonas, ponto de muitos deslocamentos”, pontua Barreto, “é um ótimo lugar pra entender como foi a realidade da situação das sociedades ameríndias logo antes da conquista europeia.”

        Para Barreto, é importante estudar os períodos mais tardios – entre o ano 1.000 d.C. e 1.500 – para “ver qual o impacto que a primeira colonização teve sobre esses sistemas sociais complexos”, diz ele. “Lá na foz, tem-se uma questão de confluência e convergência. Há uma energia que, ao mesmo tempo, é porta de entrada e saída, num lugar onde tudo se encontra.” Foi justamente nesse período que floresceu uma das mais enigmáticas culturas da Amazônia, a Koriabo.

        Se o Araguari foi e é o singular rio dos encontros, de fenômenos naturais e sujeito à transformações, ali ele esteve certamente agasalhado em amplas redes de relações e interações humanas acontecendo supostamente por variados processos e ligações costuradas na contiguidade da história e sobre os quais ainda estamos tentando descobrir: conflitos, casamentos exogâmicos, cerimônias partilhadas, trocas de excedentes agrícolas, intercâmbio cultural de artefatos, acumulação artística e manejo cognitivo humano com a natureza. Pode ser que a cultura koriabo fez-se, em parte, de todo esse universo.

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          Doraci Soares do Nascimento é agricultora, artesã enraizada e membro da Associação de Mulheres Extrativistas do Araguari – Sementes do Araguari, que processa óleos vegetais de uso sustentável – como os da andiroba, copaiba, breu branco, pracaxi, fava, entre outros – utilizados como produtos biocosméticos. Na foto, ela usa uma técnica ancestral para tecer, com fibras da mata, um tipiti, instrumento usado há séculos no para fabrico de farinha de mandioca.

          Foto de Maurício de Paiva

          Cacos cerâmicos e líticos expostos na casa do casal Ivonete de Melo Pantoja e Erivaldo Silva Tavares, em Porto Grande, ao norte de Macapá. Os dois guardam as peças arqueológicas, contendo vasilhas Koriabo, encontradas em seu terreno, às margens do Araguari – uma prática, assim como a construção de discursos próprios sobre cada artefato, cada vez mais comum entre ribeirinhos na Amazônia.

          Foto de Maurício de Paiva
          À esquerda: No alto:

          Provável borda de vasilha, que compunha uma tigela rasa com elementos estilísticos da cultura Koriabo guardada na casa de um ribeirinho às margens do rio Araguari. Na região, é comum topar cotidianamente com artefatos arqueológicos enterrados ou na superfície da terra. O sítio arqueológico Pedra do Nena, recém-identificado no terreno de um morador, na reserva extrativista Floresta Estadual do Amapá, aguarda registro e cadastro junto ao Iphan.

          À direita: Acima:

          Aplique modelado de alça zoomorfa com elementos do estilo Koriabo. Destaca-se a presença de apliques de botões em baixo relevo, que formam os olhos, nariz, boca e uma ‘crista’ superior na cabeça do suposto animal. Esses apliques modelados são típicos do universo simbólico da tecnologia cerâmica Koriabo.

          Acervo Núcleo de Pesquisa Arqueológica/Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do Estado do Amapá

          fotos de Maurício de Paiva

          O enigma Koriabo

          Certamente as pesquisas já vinham demonstrando que o rio Araguari estava longe de ter sido uma ‘terra de ninguém’ na história antiga da Amazônia Oriental. Mas uma das escavações que acompanhamos em 2016, no sítio Prainha da Pedra, um dos que compõe o complexo Cachoeira Caldeirão, reforça isso. Com mais de 4 hectares de tamanho, ali se instalava, há 2 mil anos, uma enorme aldeia, interagindo contumaz com a própria paisagem.

          As escavações mostraram muitos lugares com potencial de novas descobertas nessa aldeia, para além de casas e áreas de trabalho que foram reveladas. Foi encontrado um sítio com grande quantidade de urnas funerárias associadas a arranjos circulares de blocos de pedras, provavelmente usados na lapidação de instrumentos. Também havia cerâmicas decoradas depositadas, talvez, nos mesmos dias das cerimônias desses sepultamentos.

          Também foi revelada, no Prainha da Pedra, uma camada profunda, de mais de um metro, de terra antropogênica, que arqueólogos – e ecólogos, botânicos – chamam popularmente de terra preta, ou terra preta de índio (TPI), ou, ainda, terra preta arqueológica, indicando que ali viveram mais de 20, talvez mais de 25, gerações populacionais.

          A terra preta de índio é um tipo de vestígio no solo das paisagens já bastante estudado na arqueologia amazônica e vem sendo considerada um indicador de sedentarismo antigo, grandes aglomerados de pessoas num contexto evidente de práticas de agricultura de uma larga escala e manejo indígena. O enriquecimento químico orgânico do solo por esse processo gera muita fertilidade para fins agrícolas.

          De PH quase neutro, trata-se de uma terra rica em matéria orgânica e minerais, que aparece tanto em várzeas quanto em terra firme. Extremamente fértil, essa terra preta é rica em carbono, fósforo, cálcio, magnésio, zinco e nitrogênio. Usualmente vêem acompanhada de um pacote de cerâmica arqueológica impregnado – instrumentos líticos e lascados, carvões de fogueira, sementes queimadas, ossos de fauna e de peixes e, muitas vezes, partes de esqueletos humanos. Elas podem chegar a 6 mil anos de idade em Rondônia, segundo escavações atuais. Acredita-se que até 3% da Amazônia brasileira possui essas manchas de terra até hoje – muita coisa a julgar o tamanho da floresta. Isso corrobora o entendimento de muitos pesquisadores ligados à arqueologia hoje: no momento do contato com espanhóis e portugueses, havia quase 10 milhões de pessoas vivendo na Bacia Amazônica. E, 500 anos antes disso, em um ápice de complexidade e desenvolvimento social, ainda mais pessoas viviam por lá.

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            Em meio à chuvarada no interior do Amapá, parte da familia de Gloriaci Pantoja, agricultora e pescadora de 63 anos, descasca e lava a mandioca colhida na beira do rio Araguari, no lajeiro onde antigas populações também se estabeleceram. O grande afloramento rochoso onde trabalham foi também espaço dos polidores de ferramentas arqueológicas no passado, raspados por indígenas.

            Foto de Maurício de Paiva

            Extrativista e ex-piloto em garimpos, Hamilton Pantoja (ao centro) debulha açaí na beira do rio Araguari com seus filhos, na área da Flona do Amapá, onde vive desde o início dos anos 1970. O Euterpe oleracea (açaí, açaí-de-touceira ou açaí-do-pará) é uma palmeira nativa da porção leste da Amazônia, muito abundante no estuário do rio Amazonas. Essa abundância provavelmente se deve ao manejo milenar dos povos amazônicos na floresta.

            Foto de Maurício de Paiva

            Porém, dados de estudos arqueológicos e etnográficos indicam que houve algum tipo de hiato demográfico nesta curva de cinco séculos. Não se sabe se as povoações apenas se dispersaram, como de praxe faziam os koriabo, ou se diminuiram por causas hipotéticas. Estratégias contra abruptas e oscilantes mudanças climáticas? Guerras políticas ou disputas agrícolas? Conflitos de diferenças culturais entre aldeias? Algum tipo de ritual de sacrifício comum aos povos amazônicos andinos?

            Ou até mesmo epidemias virulentas como a que vivemos agora?

            Com uma datação radiocarbônica por C-14 de 5 mil anos, o sítio Prainha da Pedra, no Araguari, nossa pesquisa revelou que a área da Cachoeira Caldeirão é um ‘lugar persistente’: uma paisagem que, por aspectos físicos, como cachoeiras, corredeiras, terras pretas e outras alterações vegetais – decorrentes das moradas indígenas sobrepostas ao longo do tempo, com acúmulo de espécies botânicas úteis para a alimentação e usos fármacos – atraíram outros grupos humanos continuamente por períodos de tempo duradouros. Muitas vezes, as cachoeiras são locais constantemente visitados por milhares de anos e muito ocupados nas terras baixas sul-americanas. É possível analisar arqueologicamente a paisagem e a cultura material dos sítios arqueológicos que surgem no entorno desses lugares a partir do Holoceno Inicial, cerca de 9 mil anos antes do presente.

            Apesar das terras férteis não serem nenhuma novidade em outros sítios da foz do Amazonas, uma coisa sempre nos intrigava no sítio Prainha da Pedra. Na Amazônia, em muitos lugares persistentes e com terra preta, as cerâmicas encontradas são impressionantemente decoradas, contendo pinturas policrômicas – com mais de duas ou três cores. Nesses lugares, incisões complexas no barro e apliques com formas humanas ou zoomorfas enchem os olhos, numa concepção estética muito rica.

            No entanto, para o Araguari, parece que seus antigos habitantes eram mais passivos, ou até ‘tímidos’, na sua expressão simbólica e de diversidade tecnológica, a julgar na forma aberta como produziam suas cerâmicas.

            Da desventura timidez desses antigos araguarinos, entre a maior parte dos pouquíssimos potes decorados encontrados nos sítios de Caldeirão, o que se destacou foi o que é também, para nós, essa cerâmica estilo Koriabo, feita e espalhada por essa sociedade ainda pouco conhecida, mas que há milênios corria no Caribe e explorava o mundo amazônico.

            Essa cultura cerâmica – mais discutida consensualmente em artigos cujos dados cronológicos remontam até o período pré-colonial tardio, com ênfase entre os séculos 4 e 12 d.C. – teria uma conexão com povos falantes do tronco linguístico Caribe, e foi definida por Meggers e Evans no século 20, mas situada apenas na atual República Cooperativa da Guiana, então Guiana Britânica. 

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              Raimundo Trindade, morador da vila Conceição do Maracá, um território quilombola, foi um dos primeiros a identificar sítios arqueológicos na área de Igarapé do Lago, próximo a Macapá, principalmente em salões de grutas com sepultamentos indígenas em urnas Maracá, fase arqueológica datada a partir do século 11 d.C. “[Além das pesquisas arqueológicas], podemos ter turismo também. Nós somos ricos nisso. [...] Hoje a gente tem consciência de que todo esse valor das coisas pode ser preservado.”

              Foto de Maurício de Paiva

              Com o desenvolvimento das pesquisas em arqueologia, é mais do que cabível dizer que existiu uma razoável disseminação de conhecimento desse legado como um grande movimento sociocultural, que se deu de forma muito expandida e migrante, numa rota desde mares da região caribenha até o médio e baixo rio Xingu, na margem esquerda do Amazonas. Há uma relação direta dessa estupenda jornada, via rios como os Nhamundá, Mapuera, Trombetas e Paru do Oeste e suas nascentes no planalto das guianas, com as áreas planálticas ao norte do Pará, Amapá e Guianas.

              O já escavado sítio histórico e pré-colonial de Carrazedo, no topo de um elevado fluvial na margem do Xingu, evidencia isso. Holandeses, ingleses e missionários portugueses se interessaram pelo controle desse ponto já no início no século 16. Atualmente, a comunidade de São José do Carrazedo, a antiga cidade de Arapijó, ocupa um dos 10 territórios da Associação de Remanescentes de Quilombos do Município de Gurupá.

              O que, então, representa a significativa fonte das descobertas artefatuais Koriabo? Se a compreende como uma tecnologia singular, para feitura de cerâmica, com decorações marcantes na sua forma e facilmente reconhecíveis, apesar de idiossincrática, de repertório material estilístico associado a incisões em linhas finas e largas, raspagens, filetes de argila bastante finos e pequenos apliques de aparências humanas ou animais, como gaviões, corujas, tartarugas e sauros. Esses padrões decorativos muitas vezes podem ser combinados para formar outros padrões de misturas. No caso dos artefatos Marajoara, da ilha de Marajó, ou dos Aristé, encontrados próximo de Rego Grande, no sítio de Calçoene, são padrões mais complexos.

              Os utensílios ou urnas Koriabo refletem formas bastante especiais nos jarros fechados, com decoração feita em incisões e apliques no bojo do pote, ou seja, na sua porção média, e nas tigelas, onde os bordos e bordas recebem a decoração.

              Franz Boas, etnógrafo alemão pioneiro na fixação da antropologia cultural moderna em universidades e museus norteamericanos, um influenciador de Gilberto Freire, menciona em seu livro Arte Primitiva, de 1927, que “os processos mentais de produção não ocorrem completamente diante da consciência. O tipo mais alto de produção artística está lá, e seu criador não sabe de onde ele vem.”

              Ele pode vir apenas do estado de gênio criativo implícito do artesão, digamos assim. Como um contraponto, podemos pensar Koriabo como um estilo sem limites ou uniforme? Seria ele um padrão apontado para uma organização simbólica e decorativa na relação funcional entre motivos e formas únicas ou misturadas?

              Hipóteses de arqueologia

              Boas aludia que “o caráter geral das produções artísticas do homem, por todo o mundo (neozelandês, melanésio, africano, americano, esquimó), mostra que o estilo tem muitas vezes um poder de limitar a inventividade; pois, se admitirmos que o gênio em potencial nasce em todas as culturas, então a uniformidade das formas artísticas numa dada tribo só pode ser entendida através dessas limitações".

              Como adaptar esse pensamento a Koriabo? 

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                À esquerda: No alto:

                Urna funerária incompleta do estilo Caviana encontrada do sítio arqueológico Santo Antônio da Pedreira, no entorno de Macapá. Originalmente, a peça possuía também uma tampa em forma de cabeça ornada com pinturas faciais.

                Acervo Núcleo de Pesquisa Arqueológica/Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do Estado do Amapá

                À direita: Acima:

                Urna funerária antropomorfa do estilo Caviana, encontrada pela arqueóloga Edith Pereira no sítio Pacoval, em Macapá. As urnas deste estilo estão distribuídas pela região estuariana do rio Amazonas, incluindo parte da costa sul do Amapá e ilhas do Pará, como a que batiza o estilo. Com datação estimada entre 1.000 e 1.500 d.C., a cerâmica Caviana é descrita como antropomorfa, podendo ser globular ou figurar uma pessoa sentada sobre um banco – às vezes com pintura policromática elaborada. 

                Acervo Museu Histórico do Amapá Joaquim Caetano da Silva

                fotos de Maurício de Paiva

                É a partir da presença dessa cerâmica específica – mais ou menos decorada e associada a formas diferentes de outras culturas da foz do Amazonas, ou seja, rearranjadas e misturadas numa tecnologia estética recriada e inventiva através do contato – que tradicionalmente os arqueólogos atribuem pertencer a um sítio arqueológico Koriabo.

                É como se houvesse uma forma de expressão cultural bastante singular desde o Caribe até a margem sul do rio Amazonas, em uma área enorme, de 1.500.000 Km2, maior do que o Peru.

                Fluxo, troca e redes definiram relações sociais, tendo a cerâmica como um índice. Seja qual tenha sido a natureza dos movimentos indígenas e suas ideias, de algum modo esses elementos se associavam às próprias técnicas estilísticas das cerâmicas. No passado, no baixo rio Amazonas, os lugares e as identidades eram definidos pelos arranjos variáveis dessas redes de relações.

                Diferentes pesquisas organizadas no livro Koriabo, from the Caribbean Sea to the Amazon River (Koriabo, do mar do Caribe ao rio Amazonas, em tradução livre), de 2020, debatem o real significado de Koriabo. Afinal, se tudo se deu por uma grande dispersão de grupos falantes da língua Karib; se as coisas se basearam, como liquidificador, em múltiplas trocas inter-étnicas no tempo espaço; se houve algum traquejo por imitação artística-estética entre etnias; ou ainda se podemos constatar um rijo processo de aperfeiçoamento e feitura duma tecnologia tão singular que carregaria consigo uma série de significados cosmológicos; o que é Koriabo? Ainda não há um consenso acadêmico, mas se vislumbra essa cultura como um acontecimento em si, etnológica e cientificamente incontestável, corrente temporal da história antiga amazônica.

                O arqueólogo Stephen Rostain, do Centro Nacional de Pesquisa Científica, da França, acha que Koriabo seria “um produto único das Guianas”, sendo lá o berço desse estilo, que, como já reforçado, se espalharia para o baixo Amazonas e às ilhas caribenhas. Rostain sustenta que “somente com o surgimento de povos semissedentários, a partir de 8 mil anos atrás, vimos emergir a cerâmica”.

                A Guiana Oriental foi ocupada por indígenas da baixa e média Amazônia a partir de 350 d.C até a era colonial. Koriabo se espalhou por todas as Guianas. “Assim, a cultura Koriabo apareceu no interior em 750 d.C. e, na costa, em 1.100 d.C., mantendo-se por longos períodos em certos lugares”, escreveu Rostain em artigo sobre a cerâmica das Guianas. “A partir de 1.000-1.200 d.C., se produziram alterações culturais que se manifestaram pelo desaparecimento ou surgimento de sociedades e que afetaram a Guiana.”

                Outros pesquisadores creem que a cerâmica era usada quase que apenas de modo cerimonial em rituais compartilhados por diferentes ocupações humanas, mais sedentárias ou não, na Amazônia. 

                O que é Koriabo?

                Fica sempre uma dúvida acadêmica a ser resolvida, uma problemática de pesquisa, como sempre é o universo das hipóteses, na tão interdisciplinar arqueologia: nos primórdios do tempo, essas cerâmicas foram produzidas em aldeamentos especiais nas Guianas ou foi uma tecnologia compartilhada por trocas e escambos? Será que os artesãos e artesãs especialistas viajavam em longas jornadas de aldeia em aldeia transmitindo profundamente aquele fazer cerâmico como super saberes tradicionais? Parece que não há de se olhar somente para a cerâmica em si, como artefato ensimesmado passível de análises curatoriais tão somente. É interessante enxergamos como ela foi utilizada e depositada em cada sítio ao longo do tempo, no espírito do espaço no qual se misturou localmente. A isso, cunha-se um termo: ceramofagia.

                “Se virmos o Koriabo dentro de uma cronologia final mais curta na escala de tempo, ou seja, um fenômeno de alto florescimento cultural após o ano 1.000 d.C., se percebe que se espalharam muito rapidamente, por apenas 800 anos”, diz Bruno Barreto, o pesquisador do MAE/USP e NuPArq/Iepa.

                Realmente, parece mesmo ter sido uma hiperdistribuição de gente e de técnica cerâmica muito homogênia sobre uma área territorial muito ampla. “Será que foram tão grandes as migrações ou houve um processo mais lento de transição de cultura em um curto espaço de tempo?”, polemiza Barreto.

                Amplas escavações têm revelado diversos contextos de sítios Koriabo no Amapá, um lugar, aliás, característico pela sociobiodiversidade. São deposições funerárias simples, poços funerários, locais cerimoniais, abrigos em cavernas e cachoeiras ancestrais, cada qual em um ponto. Nos sítios do rio Jari, a cerâmica Koriabo aparece enterrada em poços cerimoniais; próximo à capital Macapá, no sítio multicomponencial – ou seja, que contém artefatos de pelos menos duas ocupações – Curiaú-Mirim, os vestígios brotam em poços funerários; no rio Oiapoque, extremo norte do estado, a cerâmica ocorre novamente em locais ritualísticos; ao norte do Oiapoque, Koriabo é encontrado no âmbito subaquático, junto às cachoeiras, com os achados aparentemente depositados inteiros; no limite entre a Guiana Francesa e o Suriname, a cerâmica se destaca ao lado de sepultamentos simples ou primários, com os potes, vasilhas ou urnas colocadas dentro da fossa dos próprios sepultamentos. E, curiosamente, ao longo desse enorme território de passagens e modos de vida desses grupos Koriabo, as outras cerâmicas que o acompanham também não são as mesmas, aparecem muitas vezes misturadas com artefatos ainda mais distintos, como as cerâmicas Marajoara, Caviana ou Aristé. Tudo isso indubitavelmente acontecendo a partir do ano 1.000 d.C.

                Koriabo, portanto, pouco se assemelha ou se insere diretamente a alguma outra cultura arqueológica conhecida do passado amazônico. Tampouco parece ser real aquela ideia que formava uma simples e passiva identificação étnica, se instalando no que se imaginou como um vazio do rio Araguari. Supõe-se que os traços estilísticos das cerâmicas dessa cultura tenham ricos símbolos sociais, que poderiam estar coligados a grafismos e formas de antiplásticos (cauixi, caraipé, caco moído, conchas e areia na função de maior resistência à cerâmica na hora da secagem e queima) ou ainda através das bordas.

                E os outros elementos estéticos que não são relacionados com os Koriabo? Serão os mesmos desde o Caribe até o Xingu? Uma analogia contemporânea pode ajudar a explicar.

                Suponhamos que uma pessoa na China esteja usando uma calça jeans aparentemente igual, em termos tecnológicos, à nossa. No entanto, isso não implica que essa pessoa chinesa, uma mulher da Tasmânia ou um sul-africano partilhem conosco aspectos culturais particulares e densos, implícitos ou especialmente externos. O mesmo acontece – com as ressalvas imaginárias – entre grupos que utilizavam e partilhavam o tipo de manufatura da cerâmica Koriabo.

                Assim como a universal e versátil calça jeans – que pode ser tingida ou produzida de diferentes maneiras em distintos lugares do mundo e, ainda assim, continuar sendo uma calça jeans –, pode ser que tenha existido um típico Koriabo do Jari (sítio escavado nas imediações do rio jari, Amapá); um tipo Koriabo Macapá (do sítio Curiaú-Mirim); ou um Koriabo-Oiapoque (lugar multilinguístico e multiétnico das adjacências do rio Oiapoque, norte do Amapá); um Koriabo fronteiriço entre Guiana Francesa e o Suriname; e, claro, um Koriabo do Araguari, tanto encontrado em pontas de cachoeiras quanto nos barrancos de terra preta. A diversidade impera. Ela importa porque existe um imaginário metafórico de elasticidade Koriabo.

                Entendendo a cultura como um processo dinâmico, híbrido, onde as pessoas agem de forma mais fluída, a impressionante presença desse conjunto do patrimônio material que até aqui nomeamos Koriabo, como uma manifestação estética de padrões criativos – nos diversos sítios já mapeados por pesquisadores, do Caribe ao Amapá –, por vezes misturado com outros objetos de diferentes estilos, pode também ser explicado como uma forma de expressão ancestral de conjunção e invenção artística onde a transformação de um grupo social possa se estruturar mais no tempo, e, daí, simbolicamente, com um valor de salvaguarda.   

                Fica-se vislumbrando como foram esses contatos. Quem será que se apropriou de um feitio do tipo floriforme (formato típico de bordas Koriabo) e recriou uma outra vasilha, um prato ou uma urna funerária a partir dessa base estilística na argila? E por que o povo marajoara, tão perto do Amapá, não lhes transmitiram a sofisticação de sua própria cerâmica?

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                  À esquerda: No alto:

                  Tampa de urnas, ou cabeça, da tradição Maracá, datada a partir do século 11. O patrimônio arqueológico associado a Maracá compreende pelo menos dezenove sítios arqueológicos – quinze deles sítios-cemitério em abrigos e cavernas e quatro sítios a céu aberto, um indício da densidade dos assentamentos indígenas na região.

                  Acervo Coleção Arqueológica Reserva Técnica Mario Ferreira Simões/Museu Paraense Emílio Goeldi

                  À direita: Acima:

                  Essas cavernas podem ter sido locais sagrados ou ‘necrópoles’ – a deposição das urnas nos salões e piso da gruta favorecia relações afetivas e de cuidado com os antepassados assentados nos recintos. O conhecimento já difundido sobre as urnas Maracá fizeram delas um modelo, ou até um cânone, para o antropomorfismo da cerâmica amazônica. 

                  Acervo Coleção Arqueológica Reserva Técnica Mario Ferreira Simões/Museu Paraense Emílio Goeldi

                  fotos de Maurício de Paiva

                  Consciência arqueológica

                  Na região de Maracá – também um nome dado a uma tradição arqueológica do século 11 de muitas urnas funerárias impressionantes deixadas em cemitérios de salões de cavernas, ao sul de Macapá –, moradores perceberam que a arqueologia, desde décadas pesquisada por ali, é hoje um argumento político favorável a eles, junto a autoridades, para fortalecer o mosaico de suas comunidades quilombolas como vetor de conservação dos patrimônios ambiental e cultural.

                  “Nós temos o sítio do Buracão, uma caverna muito antiga e que serve para o trabalho de pesquisa de arqueologia. Podemos ter turismo também. Nós somos ricos nisso”, nos diz Anastácio Trindade de Sousa, morador do vilarejo Conceição do Maracá. “E, daqui pra frente, [devemos] melhorar e preservar aquilo que degradamos no passado, por nosso desconhecimento do patrimônio. Hoje a gente tem essa consciência de que todo esse valor das coisas pode ser preservado.”

                  Em meio à organização de baldes e peneiras, chapéus de sol e perneiras, caderno de notas e espátulas a guardar para o trabalho do dia seguinte, nos veem algumas questões de soslaio, que viram divagações profícuas de sentenças escritas em caderninhos de campo: por que a presença das decorações Koriabo são muito tímidas no rio Araguari em comparação com outros sítios do Amapá e Guiana Francesa?

                  Seria porque esses homens e mulheres antigos não queriam expressar suas conexões sociais com os outros grupos, mantendo-se, assim, isolados? Como viviam, como se deslocavam e qual a relação desses grupos das cachoeiras do Araguari com os que vieram depois?

                  Será que as flutuantes hipóteses arqueológicas atuais estariam efetivamente contrariando a principal hipótese socioambeintal determinista do casal de arqueólogos americanos que por lá perambularam no século passado, a de que o Araguari tenha sido uma espécie de fronteira oca e inumana sem adensamento cultural?

                  Talvez não totalmente. As beiras de água do seu curso não eram desabitadas como sugeriu precocemente os arqueólogos estrangeiros em suas teses, mas sim uma espécie de fronteira aberta. Esse conceito pode ser marcado pelo bom senso de entender que, na condição de exploradores e mantenedores do rio, aqueles indígenas pseudo-batizados Koriabo, podem não ter desejado se expressar fortemente de modo identitário, como na individuação de um artesão ou artesã, seja na criação ou na dinâmica natural da vida, o que supostamente podia lhes flexibilizar a manutenção de boas relações e proporcionar escambos de alguns artefatos, tanto com grupos ao norte ou ao sul do Amapá, pela linha sinuosa do rio, no meio, acima ou abaixo da linha do equador.

                  Entre canoeiros, roceiros em vigília, lume de corredeiras noturnas e lajeiros expostos, o Amapá herdou para sempre o Araguari como um rio de encontros, desde seu passado qualificado. Alguns protagonistas desse passado se mantém: descendentes de índios, afrodescendentes, famílias de caboclos pescadores – agricultores migrantes ou enraizados à terra, flertando com dignidade em levar em frente associações de base comunitárias no trabalho extrativista de distribuição de produtos feitos de recursos da floresta de forma sustentável –, imigrantes e retirantes nordestinos em áreas de assentamento, ex-garimpeiros não arrependidos que fizeram família, guias turísticos conscientes, vigilantes de unidades de conservação no entorno dos igarapés e rios, assim como os recém-chegados do Sudeste do Brasil que, entre outras coisas, vieram minerar solos férteis, milenares, e construir usinas hidroelétricas que afetam muito do que é o substancial patrimônio arqueológico que estávamos resgatando antes da sua própria destruição – sob a concessão de licenciamento ambiental.

                  A floresta já serviu para tirar borracha, castanha, ouro, fazer monocultura, desmatar e agora tirar energia. Uma ameaça que engloba os projetos panfletários ditos desenvolvimentistas, já desde antes dos idos de 1970 na Amazônia.

                  “Se ficar apegado a uma folha, não enxergará a árvore. Se ficar apegado a uma árvore, não enxergará a floresta”, diria o Monge Takuan, um guerreiro samurai de espírito de combate adepto ao instinto e à força natural, na épica série dos quadrinhos de mangá japonês VagabondA História de Miamoto Musashi.

                  Naturalmente, já houve mais abundância de peixes em águas araguarinas, de caça em seus vales e barrancos, de pássaros em seus ares, de colheita em seus campos e várzeas. Mas de inteligência aguda na lida com a floresta, houve aquele tempo presente, daquele passado, simplesmente. Dá pra dizer que agora o nosso presente contemporâneo pode ser transcultural, se puxarmos essa raíz.

                  O enigma é como se arranja isso tudo. Os índigenas e caboclos atuais ainda pregam poder escutar as vozes da mata, das montanhas e dos pulsos dos rios. O que elas podem dizer?

                  “O tempo presente é ancestral”, dizem os xamãs sobre o legado da floresta cultural para todos. A Amazônia como nos aparece hoje foi transformada por antigos grupos indígenas e povos tradicionais. Eles são indispensáveis para a existência da mata e das águas, a mesma coisa da floresta ser naturalmente crucial para a existência desses habitantes. Desde pelo menos 11 mil anos, há evidências de uso resiliente de algumas plantas consumidas até hoje, como castanha-do-brasil, mandioca, palmeiras do açaí, tucumã, bacaba, murumuru e buriti.

                  No primordial do primeiro milênio da era cristã, Koriabo talvez visse o mundo como a simbiose de possíveis ‘mundos plurais’, um saber e pensamento mágico indígena que provavelmente os afetava.

                  Apegar-se à fruição de encontros, nada fortuitos, é o que parece ser o destino do rio Araguari, cenário de inovações culturais.

                  João Saldanha é um dos fundadores do Núcleo de Pesquisa Arqueológica do Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do Estado do Amapá. Nasceu na fronteira com o Uruguai e já trabalhou em regiões da Guiana Francesa. Atualmente em Portugal, é pesquisador associado na Universidade de Évora, no Centro de História e Investigação Artística, referência nos estudos de megalitismo. 

                  Mauricio de Paiva é fotógrafo colaborador da National Geographic Brasil desde 2004 e conta histórias em jornalismo visual sobre temas como arqueologia sul-americana, antropologia visual, direitos humanos e bioantropologia. Há mais de 15 anos cobre questões socioambientais nas comunidades tradicionais da Bacia Amazônica. Conheça seu trabalho no Instagram.

                  Contribuíram para a reportagem Emerson Nobre (MAE/USP), Cristiana Barreto (Museu Paraense Emílio Goeldi), Lucio Costa Leite (NuPArq/Iepa), Bruno Barreto (NuPArq/Iepa) e Ernades Mello (Museu Joaquim Caetano da Silva).

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