Os últimos pescadores de Copacabana
Em meio ao aumento da pesca industrial e à redução dos cardumes, a quase centenária Colônia de Pesca Z-13 resiste em uma das praias mais famosas do Brasil.
De sua casa, o pescador Manuel Rebouças, o Manéu, tem uma vista espetacular. Vê ao longe as praias de Copacabana e Ipanema se estendendo em meio aos prédios enquanto, mais adiante, as Ilhas Cagarras pontuam o mar. Ainda é noite quando ele e outros pescadores deixam suas casas na comunidade do Pavão-Pavãozinho, Rocinha, Cantagalo e Vidigal para chegar na Colônia de Pesca Z-13, em Copacabana, no Rio de Janeiro. Ali, numa das praias mais famosas do mundo, a colônia fundada em 1923 resiste à expansão urbana e mantém vivo um estilo de vida cada vez mais ameaçado pela pesca predatória e poluição.
A luz crescente do dia revela uma dezena de embarcações atracadas na areia e inúmeras redes corvineiras pendendo como imensos véus de nylon. Antigas amendoeiras envolvem toda a colônia numa visão bucólica e interiorana de algum lugar distante de Copacabana. Os pescadores apressados caminham de um lado a outro carregando redes, espinhéis, boias e latas de combustível. Alguns trocam de roupa em silêncio, enquanto outros, em meio a gargalhadas debochadas, contam histórias de brigas e infortúnios, romances, futebol, pescarias e embates com peixes misteriosos. Alguém grita: “Vamos logo que vem vento aí!”
Um a um, os barcos são empurrados por vários homens com o auxílio de toras de madeira, colocadas à frente das embarcações. Num grande esforço, descem pela praia lentamente até o mar. Antes de investirem contra a arrebentação, algum pescador salta a bordo para ligar o motor a diesel, no centro do barco. O velho motor de um cilindro parece engasgar, até que num grande estrondo, como que de alívio, lança uma cortina de fumaça no ar e um ruidoso “téc-téc-téc” – típico dos barcos pesqueiros – que faz doer os ouvidos. Os pescadores lançam-se ao mar. Pego carona num dos barcos com Manéu e seu filho Manasi, o Maná. Copacabana vai ficando distante.
No dia anterior, Manéu havia me falado sobre as principais dificuldades enfrentadas pela pesca artesanal. Pescador há mais de 40 anos, e um dos líderes da colônia, ele acredita que a pesca industrial predatória com o uso de traineiras – barcos equipados com sonar e enormes redes – é a principal ameaça. “Todos os dias vemos traineiras fazendo pescas de arrastão e de cerco em áreas próximas à costa, aqui na zona sul mesmo, capturando cardumes inteiros. Isso gera um desequilíbrio grande, principalmente em épocas protegidas de reprodução das espécies”, diz ele.
Manéu lamenta que muitos pescadores artesanais estejam no limite, a ponto de ser comum irem até as traineiras para pedir “pelo amor de Deus” por um caixote de peixes. A pesca predatória tem consequências que já podem ser sentidas em vários lugares do mundo, levando espécies à beira da extinção e causando o colapso dos estoques pesqueiros. Os impactos socioeconômicos sobre as populações que dependem dos mares, são desastrosos.
Longe da praia
O mar tinha ficado mais agitado e, após uma hora navegando – com Copacabana já pequena no horizonte –, chegamos ao local onde a rede corvineira havia sido deixada no dia anterior. Manéu desligou o motor e Manasi começou a puxar a rede. O barco balançava com força. Fiquei observando, admirado, o equilíbrio dos dois em pé, enquanto removiam os peixes presos na rede e alimentavam os atobás-marrom, que voavam em rasantes atrás de peixes pequenos não aproveitados. Não demorei muito para ficar nauseado, e a espera para puxar a longa rede de 800 m me pareceu uma eternidade. Os peixes iam se acumulando no chão do barco. Havia corvinas, olhos-de-cão, anchovas, pescadas e robalos. A rede foi novamente lançada na água e, com o sol já alto, era hora de voltar para vender a pesca.
Chama a atenção a grande quantidade de lixo retirado do mar pelos pescadores – uma miríade de itens plásticos: sacolas, copos descartáveis, embalagens, óculos, e até mesmo itens como televisores e geladeiras. Enquanto costurava a rede utilizando mãos e pés para manter a malha esticada, o pescador Augusto de Oliveira, o Fominha, de 54 anos, lamenta que “tem dias que pegamos mais lixo do que peixe e passamos muitos dias limpando as redes. Isso impossibilita a pesca e gera prejuízos”. Além do lixo plástico, a poluição causada pelo despejo de esgotos e resíduos, principalmente na baía de Guanabara, gera um desequilíbrio nos ecossistemas marinhos, afetando diretamente as populações de peixes da região.
Dentro da Z-13, à beira do calçadão de Copacabana, funciona um centro de recepção e educação do Projeto Ilhas do Rio, que atua na preservação do Monumento Natural do Arquipélago das Ilhas Cagarras. As ilhas, localizadas a poucos quilômetros da praia de Ipanema, são fundamentais na manutenção dos ecossistemas marinhos e representam um berçário de peixes e aves que fazem seus ninhos ali. Além de pesquisas científicas e ações de sensibilização da sociedade, o projeto procura apoiar medidas de conservação e o turismo sustentável. Como faz todos os dias, após voltar da pesca, Manasi trabalha como um dos monitores no centro, recebendo turistas e estudantes para falar da importância da sustentabilidade nas ilhas e da parceria com os pescadores artesanais.
A pescadora e atual presidente da colônia, Kátia Janine – primeira mulher a assumir o cargo – acredita que o projeto é importante para a sociedade como um todo. Sobre o suporte que a Z-13 recebe do governo, afirma que é ínfimo. “A Z-13 deveria ser vista como um patrimônio cultural da cidade e receber maior suporte e valorização do governo”, diz ela. “Isso beneficiaria não só os pescadores, mas o bairro e o turismo do Rio.” Sobre ser uma das poucas mulheres num espaço tradicionalmente masculino, falou que no início sofreu com o preconceito, mas que ganhou o respeito dos homens e acabou sendo reeleita como presidente no ano passado. “Eles sabem que as mulheres são ótimas administradoras e dão mais atenção aos detalhes e à organização.”
Turistas entre barcos
A praia de Copacabana estava agora cheia de banhistas e vendedores ambulantes. Alguns nadadores cruzavam as águas em frente à colônia, obrigando Manéu a manobrar o barco com cuidado até atracar na areia. Saltamos na praia. A pesca do dia foi levada rapidamente para a feira na colônia, onde a maior parte do pescado é vendida para à população do próprio bairro. À medida que os barcos retornavam, o movimento da feira aumentava e as equipes de vendedores e limpadores de peixe assumiam o trabalho. Os pescadores deitavam nas redes macias de nylon para descansar ou contar histórias. Na praia, banhistas fincavam seus guarda-sóis na areia e deitavam entre as embarcações.
Na pequena sala da administração da colônia, Manéu procurava alguns documentos em meio às paredes tomadas por fotografias antigas e recortes de jornais – um mosaico da história da colônia e da abundância da pesca daqueles tempos. Numa das fotos, de 1923, pescadores e banhistas aparecem perfilados à beira-mar, após uma pescaria com centenas de peixes capturados. Pergunto o que ele sente ao olhar para aquelas fotos. “Essa é uma pergunta dolorida”, responde. “Fico triste que os grandes cardumes sejam coisas do passado.”
O dia de pesca chegava ao fim na Z-13. Manéu preparava suas coisas para deixar a praia de Copacabana e voltar para casa, no alto do morro. “Sonho que meus filhos vão continuar a tirar o sustento do mar.”