Entre a exaustão e a esperança: médico fotógrafo registra a vida nos hospitais

O cirurgião Ary Bassous usa a fotografia para dar voz aos profissionais da saúde – enfermeiros, médicos, fisioterapeutas e serventes de limpeza – que atuam na linha de frente do combate à pandemia.

O médico Bruno Bordello no hospital Antônio Pedro, em Niterói, Rio de Janeiro. Além das longas horas tratando pacientes, Bruno conta que precisou se dedicar aos estudos para compreender a atuação do coronavírus. 

Foto de Ary Bassous
Por Gabi Di Bella
fotos de Ary Bassous
Publicado 20 de ago. de 2021, 07:00 BRT

Afinal, quanto vale um abraço, o aconchegante gesto que a pandemia da covid-19 quase extinguiu? Em 14 de junho do ano passado – quando publicamos reportagem sobre o trabalho dos profissionais de saúde com fotos do médico Ary Bassous – abraçar era quase proibido, e praticamente todas as grandes cidades brasileiras viviam sob regras de confinamento. Era difícil imaginar que algo pior ainda estava por vir.

Aquele dia, o Brasil perdia 598 vidas, totalizando 43.398 vítimas para o novo vírus. Em todo o mundo, a covid-19 já tinha deixado 420 mil famílias privadas para sempre do elo com algum ente querido. Hoje, pouco mais de um ano depois, outros 500 mil morreram em todo o país – mais da metade somente em 2021.

Por outro lado, as vacinas, desenvolvidas em tempo recorde e aplicadas a partir de janeiro de 2021, permitiram a volta da esperança. Em alguns países, como EUA e Inglaterra, parte da população já está liberada do uso de máscara e pode frequentar bares e restaurantes – apesar do aumento recente de casos em alguns locais. Entretanto, aqui, a demora para iniciar a imunização tem permitido um longo período com patamar alto de mortes. A média nos últimos sete dias ainda está próxima dos 1 mil mortos – em 2020, esse número nunca ultrapassou 1,1 mil. Tudo isso em meio a informações desencontradas, disseminação de notícias falsas e idas e vindas de confusos planos de quarentena.

É nesse cenário de dúvidas que voltamos a contar um pouco da luta dos profissionais de saúde contra esse inimigo invisível. Uma luta que Ary Bassous torna perceptível, mostrando a humanidade que há por trás de tantos números. Retratos de um limbo entre o sonho, onde podemos nos abraçar, e o pesadelo da interminável pandemia.

Deus não é mais brasileiro

A pandemia atropelou a vida da enfermeira Glória Maria de Moraes, 41 anos. “O que eu mais quero no mundo é acordar deste pesadelo, poder viajar, e achar que isso nunca aconteceu”, disse ela em entrevista à reportagem. Para Glória, aqueles que não estão na linha de frente não conseguem imaginar o que esses profissionais estão passando.  “Se Deus era brasileiro, não é mais. É até um pecado falar isso, mas tivemos um governo que diz para não usar máscara; as pessoas querendo usar cloroquina; a soma de tudo isso impacta diretamente na gente.”

Glória sofreu muitas perdas devido ao vírus. Ela já não pode abraçar alguns amigos próximos e nem a sogra, que faleceu de covid no ano passado. “Foi em maio, eu mesma fiz a tomografia, e ela estava com 75% o pulmão comprometido; ficou dez dias internada e não aguentou”, conta. Em agosto, a própria Glória se contaminou. O jeito foi mandar a filha para casa da avó e ficar isolada do marido no quarto. Após o isolamento em casa, a volta ao trabalho foi difícil. “Sentia muito cansaço e falta de ar, mas chegou um momento que tínhamos que ir mesmo no sacrifício pois muitos colegas estavam doentes, o capital humano estava escasso.”

A falta de ar e o cansaço também fazem parte do cotidiano de Cláudia Gomes Duarte, 46 anos, servente de limpeza do Hospital Antônio Pedro, em Niterói, no Rio de Janeiro. Ela acredita que foi contaminada dentro do ônibus, no intervalo de duas horas que leva para chegar ao trabalho. “Tinha uma menina passando mal, tossindo, com febre”, diz ela, “foi ali que peguei.” O bom humor dos filhos ajudou Cláudia a enfrentar os 15 dias em casa. “Eles cozinhavam e deixavam a comida na porta do quarto, em uma cadeira. Depois, toda vez que eu espirrava saía todo mundo correndo e borrifava álcool no ar, são uns comédias.”

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    A paciente Jacira Braz de Araújo, 64 anos, é afagada pela fisioterapeuta Natália Garbeto Rodrigues, 25. Jacira ficou internada por quatro meses devido à covid-19 e sua recuperação é considerada um milagre pela equipe médica que a tratou.

    Foto de Ary Bassous

    Cláudia faz parte de um corpo de 32 profissionais responsáveis pela limpeza do hospital. A equipe ensaboa os leitos do chão até o teto, mas é pouco lembrada pelas homenagens aos que vivem na linha de frente do combate à covid-19. “Quando falaram que iam fazer foto minha, e eu os colegas comentamos que finalmente lembraram da gente”, diz ela. Ainda que não tenha formação para tratar diretamente com os pacientes, Cláudia sentia muito a partida de cada um. “Muitos entravam conversando, falando, cantando e, de repente, eram intubados. Às vezes vinham a falecer, foi muito triste ver tudo isso.”

    O vínculo emocional com os pacientes também foi um fator que pesou para a fisioterapeuta Natália Garbeto Rodrigues, 25 anos.  Recém-formada, ela faz parte de uma categoria essencial na recuperação de doenças respiratórias. A pandemia foi um irônico ‘presente’ de formatura que a jovem recebeu do mundo. Após a colação de grau pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ela já sabia que iria trabalhar em unidades de tratamento intensivo, mas jamais imaginou começar a vida profissional enfrentando tamanho desafio. Mesmo assim, não se intimidou quando viu o anúncio convocando para o Hospital de Campanha Lagoa Barra, da Rede D’Or São Luiz, e decidiu se candidatar.

    “Eu pensei muito durante duas semanas, me formei para fazer isso: ajudar as pessoas. Então decidi ir. Foi um período ruim emocionalmente, mas no qual aprendi muito”, conta Natália. Ela diz que sentia o cérebro expandir de tanto estudar. Um período intenso, que também cobrou seu preço em termos de saúde física e mental. No final do ano, a jovem começou a ter diversas infecções devido ao esgotamento físico e emocional.

    Ironicamente, Natália acabou se infectando por covid pelo próprio pai, que, segundo ela, não leva a sério os protocolos recomendados pela Organização Mundial de Saúde (OMS). “Eu achava que se pegasse o vírus seria no hospital, mas peguei do meu pai, que não gosta de usar máscara. Ele contaminou a mim e a minha mãe”, conta. Por sorte, os três tiveram quadros leves da doença. “Me preocupei mais por eles do que por mim, que sou mais jovem. Eles agora estão vacinados e qualquer coisa é motivo para jogarmos essa história na cara dele”, conta rindo.  

    Entretanto, apesar do bom humor, Natália considera que boa parte de seu cansaço ocorre por (ainda) ter que ensinar as pessoas sobre as regras que devem seguir para se proteger da doença. “De que vale a sua homenagem e seu aplauso se você aglomera e anda sem máscara? Se você não se vacina? Vivemos uma mistura de exaustão com esperança; a gente chega aos plantões já cansado de ver as mesmas histórias se repetindo. Você chega no plantão sem saber o que vai acontecer, é uma doença de surpresas.”

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      A médica Tarlice Nascimento Peixoto Guimarães no Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Foi ela quem atendeu a primeira paciente com covid que chegou no hospital.

      Foto de Ary Bassous

      Recuperação milagrosa

      Mas no hospital também há algumas boas surpresas, como conta a divertidíssima paciente Jacira Braz de Araújo, 64 anos. Incluída pelos médicos entre os milagres operados pela equipe, ela venceu a batalha na UTI depois de ser observada de perto pela jovem Natália. A vida inteira de Jacira foi de luta, vivendo – como boa parte dos brasileiros – de trabalhos informais para garantir algum sustento.

      Ela atuava como babá quando sentiu os primeiros sintomas e demorou a acreditar que estava com covid-19. Levada por um dos filhos para o hospital de campanha, Jacira começava ali uma jornada de quatro meses de internação – e algumas viagens enquanto esteve intubada. “Eu fui para vários lugares: para os Estados Unidos, para a Europa – logo eu, que nunca sai do Rio de Janeiro”, conta, relembrando os sonhos que teve durante o período que passou sob sedação. “Tenho vagas lembranças de tudo. Quando abri os olhos, me lembro só que a doutora Joana pegou na minha mão e perguntou: ‘Minha princesa, como você está?’ Eu respondi: estou bem, com fome, quero arroz e feijão.”

      O ânimo de Jacira era tão contagiante que, quando teve alta, a equipe não queria deixá-la ir. Pesando 40 quilos, com sérias sequelas e sem conseguir caminhar direito, Jacira só podia ser liberada caso tivesse um aparelho de oxigênio em casa, cujo aluguel custa cerca de R$ 1,2 mil por mês. O Universo então lhe enviou um ‘abraço’ anônimo: alguém, que não quis se identificar, pagou pelo equipamento por um ano. “Não sei como aconteceu, mas só sei que o oxigênio chegou na casa do meu filho no dia que eu tive alta. Agradeço muito a quem mandou, preciso cada vez menos dele, mas tem momentos que ainda falta o ar.”

      Natália lembra que Jacira era uma paciente muito ansiosa, com dificuldade para se tornar independente do ventilador mecânico. “Quando me transferiram de posto e passei a cuidar dela, o quadro era gravíssimo e a equipe tinha feito de tudo. De repente, ela começou a melhorar. Acordava muito agitada, pedindo Coca-Cola”, conta a fisioterapeuta. Foi um período que Jacira viveu entre idas e vindas da sedação, até que pudesse respirar sozinha.

      Infelizmente, nem todos os casos evoluíam assim, como explica o médico Bruno Bordallo, 33 anos. “Os casos são muito parecidos, e um fato peculiar é a evolução rápida da doença. Você recebia um paciente que estava bem pela manhã e à noite ele era grave”, diz Bruno. Para ele, um dos fatores marcantes era ter que intubar pacientes totalmente lúcidos, como foi o caso de Jacira. “A gente explicava que ia intubar e as pessoas pediam para ligar para um parente, falavam que tinha dinheiro no banco tal, ou que o cartão de crédito está não sei onde. Ficou muito estigmatizado que se fosse intubado iria morrer.”

      O ineditismo da doença e o cruel jogo de desinformação fora dos hospitais levou o médico a estudar muito. “Fiz uma pesquisa focando justamente nestes fatores do nível molecular que faziam o quadro se tornar tão grave – o artigo chega a ter mais de 200 referências.” Esse esforço científico o deixou ainda mais decepcionado quando começou a enfrentar pedidos de pacientes por remédios que não tinham efeito comprovado. “Era muito triste ver as declarações oficiais sobre isso. Por acaso o médico tem liberdade para prescrever o tratamento que ele achar melhor? Como assim? Se um engenheiro quiser construir uma parede diagonal na minha casa, com risco de cair, ele tem liberdade para fazer isso? Nós temos que trabalhar com informações técnicas, a gente não pode simplesmente fazer o que acha certo.”

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        À esquerda: No alto:

        A técnica de enfermagem e instrumentadora Damiana no centro cirúrgico do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ela também trabalha no Hospital Municipal Souza Aguiar – lá, foi transferida, logo no começo da pandemia, do centro cirúrgico para a enfermaria de covid, apesar de fazer parte do grupo de risco.

        À direita: Acima:

        Para a servente de limpeza Cláudia Gomes Duarte, os profissionais de sua equipe costumam ser esquecidos durante as homenagens feitas aos trabalhadores na linha de frente no combate à pandemia. “Quando falaram que iam fazer foto minha, e eu os colegas comentamos que finalmente lembraram da gente”, diz ela.

        fotos de Ary Bassous

        A enfermeira Glória Maria de Moraes posa para foto em frente ao hospital Antônio Pedro, em Niterói, Rio de Janeiro. “Se Deus é brasileiro, não é mais. É até um pecado falar isso, mas tivemos um governo que diz para não usar máscara; as pessoas querendo usar cloroquina; a soma de tudo isso impacta diretamente na gente.”

        Foto de Ary Bassous

        Bruno também critica a falsa impressão de que a simples existência de leitos permitia a reabertura da economia. “Tivemos momentos que estava tudo aberto e as pessoas vivendo como se nada estivesse acontecendo, mas, em alguns hospitais, faltava tudo: bloqueador neuromuscular, sedativo. Você não pode considerar um leito de CTI só porque tem uma cama, tem que ter remédios e equipe.” Já vacinado, Bruno aguarda ansiosamente que a vacina permita a volta à convivência com pessoas queridas, que ainda seguem em isolamento. “Mesmo depois da vacina, ainda teremos o efeito psicológico e a demanda reprimida de quem ficou sem tratamento durante esse ano. Foi um pesadelo que eu só quero que acabe.”

        Essa sensação de falsa segurança com o fim da pandemia também preocupa a médica Tarlice Nascimento Peixoto Guimarães, 38 anos. Foi ela quem atendeu a primeira paciente que chegou com covid no Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Era uma funcionária do aeroporto do Galeão. Nós não sabíamos bem o que era, mas ela chegou com febre e já avisando que poderia ser coronavírus”, comenta. Para Tarlice, as consequências da pandemia ainda serão sentidas por muitos anos, e nunca fez tanto sentido se proteger, usar máscara e evitar aglomerações do que neste momento. “Passado aquele stress inicial, as pessoas começam a ir para a rua, pois elas acham que, se não se contaminaram até agora, não vão se contaminar mais."

        Tarlice destaca que é difícil para quem não é médico compreender a situação, e que o cansaço é a regra entre os colegas. “Estamos exaustos, eu nunca tinha visto isso antes. Nunca me imaginei tendo medo de paciente; jamais senti isso, mas na pandemia eu tive medo de me contaminar e acabar levando o vírus para casa”, diz ela. A médica se preocupa com a parcela da população que escolheu não se vacinar e com a impaciência da população em aguardar a vacina para voltar a aglomerar. “O inimigo, além de desconhecido, é invisível e muito contagioso. Com a vacina as pessoas relaxaram; foram muitas fases nesta pandemia e a gente vai se esquecendo, o ser humano tem uma tendência a esquecer o que é muito ruim.”

        Desde o fatídico dia em que o diretor da OMS Tedros Adhanom declarou oficialmente a pandemia – em 11 de março de 2020 –, já se passaram pouco mais de 500 dias. Dias que a enfermeira Glória espera que passem para poder voltar a viajar. Que a servente Cláudia conta para poder ir ao shopping passear e comer batata frita acompanhada dos filhos. São 500 dias que a fisioterapeuta Natália adia os planos para o seu casamento. Quinhentos dias de muito luto.  

        Desses 500 dias, os últimos 200 viram cada vez mais gente ser vacinada. Hoje, quase 20% da população do Brasil está completamente imunizada – doses de esperança para voltar a sonhar. A pandemia de covid-19 fez muitas pessoas repensarem suas vidas e seus valores, uma atitude evidente entre os profissionais de saúde que viveram cada segundo da pandemia.

        Talvez, se existisse uma bolsa de valores para medir carinho e calor humano, o valor de um abraço seria a ação hoje mais valorizada no mercado. Afinal, há 500 dias muitos de nós sentem falta do abraço de algum parente ou amigo. Tão genuíno quanto o carinho presente na foto de Ary Bassous entre a paciente Jacira e a fisioterapeuta Natália. Um respiro em tempos que abraçar e amar é coisa de valentes. Afinal, como bem expressou a fisioterapeuta: “Só quem viveu e estava lá sabe o que passou”.

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