Aumento de antissemitismo na Europa obriga judeus franceses a fugirem de seu país

Diante de níveis recordes de racismo, membros da maior população judaica do continente europeu estão buscando vida nova em Israel.

Por Yardena Schwartz
fotos de William Daniels
Publicado 27 de nov. de 2019, 07:30 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
Imigrantes judeus, principalmente da França, recebidos calorosamente em Tel Aviv, em 17 de julho de 2019.
Foto de William Daniels

EM SUA INFÂNCIA E JUVENTUDE em Paris, Esther Coscas sentia-se segura. Sua casa ficava no coração de “Pequena Jerusalém”, um bairro no subúrbio de Sarcelles, repleto de restaurantes kosher e lojas com nomes hebraicos. Judeus e árabes viviam lado a lado. Apesar dos ocasionais atritos, Coscas, que é judia, nunca temeu por sua vida.

Isso mudou no verão de 2014, quando as manifestações a favor da Palestina resultaram em ataques à comunidade judaica. Aos gritos de “morte aos judeus”, os manifestantes quebraram janelas e incendiaram estabelecimentos comerciais judeus. Chegaram até a atear fogo em uma sinagoga, impedindo a saída dos religiosos com barricadas. Coscas, agora com 30 anos, acabara de se tornar mãe. Ela começou a temer pelo futuro de sua família na França. Seus irmãos já haviam se mudado para Israel, mas ela queria ficar perto de seus pais.

Jovem judeu brinca no pátio da Grande Sinagoga de Sarcelles, subúrbio da classe operária de Paris. A sinagoga foi atacada em 2014 durante uma manifestação em favor da Palestina.

Então, um ano atrás, a onda de antissemitismo se aproximou tanto de sua casa que não é mais possível evitá-la. Sua melhor amiga, que morava na mesma rua, foi atacada a caminho de casa por um grupo de jovens que a chamou de judia suja e lhe deu um soco no rosto, quebrando seu nariz. Naquela noite, Coscas soube que se mudaria.

Diante dos níveis recordes de antissemitismo, muitos judeus franceses estão se juntando em um êxodo para Israel. Um terço de todos os judeus franceses que emigraram para Israel desde seu estabelecimento em 1948 se mudaram nos últimos 10 anos, segundo dados da Agência Judaica, que facilita a imigração judaica para Israel. A Lei do Retorno de 1950 permite que qualquer judeu de qualquer lugar do mundo se torne um cidadão israelense com direito a inúmeros benefícios governamentais, como auxílio financeiro, incentivos fiscais, cursos de hebraico gratuitos e voos grátis para Israel. Somente em 2015, quase 8 mil judeus franceses fizeram o que é conhecido como Aliyah — ascensão à Terra Santa — o maior número de qualquer nação ocidental em um único ano.

Esther Elfersi termina de arrumar as malas para a viagem na manhã seguinte.

Em uma tarde escaldante de julho em Paris, um voo da Agência Judaica Aliyah está pronto para decolar para Tel Aviv, com Coscas a bordo. “Queremos virar a página”, afirma ela. O bebê de dois meses dorme no berço, enquanto as filhas de quatro e seis anos brincam pelos corredores. Sua família empacotou o que acumulou durante a vida inteira em 130 caixas de papelão e 24 malas “porque queria viver o judaísmo livre e abertamente, longe do antissemitismo”. Agora, os pais dela e os do marido não têm mais filhos na França.

“Espalhando-se como veneno”

A França abriga a maior população judaica da Europa, a terceira maior do mundo, depois de Israel e dos Estados Unidos. No entanto essa comunidade histórica — que remonta à conquista romana de Jerusalém e à expulsão da população judaica há 2 mil anos — está no meio de uma crise existencial.

O ministro do interior da França alertou que o sentimento antijudaico está “se espalhando como veneno”. O Presidente Emmanuel Macron declarou que o antissemitismo atingiu os níveis mais altos desde a Segunda Guerra Mundial. Em meio a uma série de ataques, o primeiro-ministro Edouard Philippe admitiu que o antissemitismo está “profundamente enraizado na sociedade francesa”.

Segundo um levantamento publicado em março, 89% dos estudantes judeus na França relatam ter sofrido abusos antissemitas. Em 2017, os judeus foram alvo de quase 40% dos incidentes violentos classificados como de motivação racial ou religiosa, apesar de constituírem menos de 1% da população francesa. Em 2018, os atos antissemitas aumentaram quase 75%.

Homens se reúnem para orações matinais na Grande Sinagoga de Sarcelles. Milhares de residentes judeus deixaram a França nos últimos anos.
Um portão metálico fechado marca a entrada da Grande Sinagoga de Sarcelles, na França.

A atual onda de imigração passou a se intensificar depois do massacre de Toulouse em 2012, em que um extremista islâmico nascido na França abriu fogo em um externato judaico, matando um jovem rabino que protegia seus filhos de três e seis anos, e depois matando a tiros ambos os meninos e uma menina de 8 anos. Três anos depois, um atirador que prometeu lealdade ao ISIS matou quatro clientes em um supermercado kosher em Paris. “Nos dias seguintes, recebemos milhares de ligações de pessoas dizendo que queriam ir embora”, conta Ouriel Gottlieb, diretor da Agência Judaica em Paris. “Dentre as quatro pessoas assassinadas em Hyper Casher, três de suas famílias se mudaram para Israel.”

Em quase todos os anos seguintes, assistimos a outro ataque antissemita mortal, como o ocorrido com Sarah Halimi, à época com 65 anos, espancada e atirada pela janela em 2017, e o terrível assassinato de Mireille Knoll, sobrevivente do Holocausto, em 2018. Menos assustadores, mas igualmente prejudiciais a essa comunidade frágil, são os constantes incidentes em menor escala, como a profanação de cemitérios memoriais judeus, ou ataques a meninos que usam quipás. Tais ataques levaram muitos na França a ocultar demonstrações de sua fé na aparência externa. Outros optaram por ir embora.

Aqueles que ficaram afirmam que é só uma questão de tempo antes da próxima manchete apavorante. “A situação só piorou”, afirma Samuel Sandler, pai do rabino morto em Toulouse. Sentado em uma cafeteria em Paris, Sandler lembra como seus pais fugiram da Alemanha nazista em busca de um futuro melhor para seus filhos na França. Sua avó, primo, tias e tios foram mortos em Auschwitz. “Eu pensava: ‘a guerra acabou. Agora estamos na França. Estamos a salvo’”, afirma ele.

Samuel Sandler, de luto pelo filho Jonathan e dois netos, Gabriel, de três anos, e Aryeh, de seis, mortos em um ataque terrorista a uma escola judaica em Toulouse, em 2012. A esposa e a irmã de Jonathan se mudaram, desde então, para Jerusalém, onde Jonathan e seus filhos estão enterrados.

Uma nova forma de ódio?

Da expulsão dos judeus em 1306, ao Caso Dreyfus em 1894 e à cooperação do governo Vichy com o extermínio nazista de 75 mil judeus franceses, a França tem uma história de antissemitismo de longa data. Hoje, o ódio vem da extrema direita e da extrema esquerda. Alguns manifestantes do movimento Coletes Amarelos abordaram judeus franceses proeminentes e chamaram o presidente Macron de “prostituta dos judeus”.0 a

No entanto a comunidade judaica também teve vitórias na França. A França concedeu direitos iguais aos judeus em 1791, inspirando outras nações a seguirem seu exemplo. A França teve três primeiros-ministros judeus. Um deles, Leon Blum, ajudou a estabelecer a Agência Judaica com outros ilustres judeus, como Albert Einstein.

Yael Zeitoun se despede dos familiares no aeroporto Charles de Gaulle, em Paris, antes de se mudar para Israel com o marido e dois filhos adolescentes.

Hoje, entretanto, muitos judeus franceses estão notando uma nova forma de ódio. Afirmam que esse novo antissemitismo está profundamente ligado ao conflito israelense-palestino. Ao listar todos os ataques antissemitas mortais desde 2003, Robert Ejnes, diretor-executivo do Conselho Representativo de Instituições Judaicas na França (Crif), conclui: “doze pessoas foram assassinadas pelo único motivo de serem judias. Todas por muçulmanos radicais.”

As duas principais organizações muçulmanas da França se recusaram a comentar esta matéria. Contudo, em carta aberta publicada no jornal Le Monde no ano passado, 30 imãs condenaram o crescente extremismo e os ataques antissemitas, ao mesmo tempo em que defendiam sua fé. “Também somos muçulmanos, como o resto de nossos religiosos, muçulmanos pacíficos que sofrem com os criminosos que se apropriam de nossa religião”, escreveram eles. “Esse radicalismo ou radicalização deve ser combatido de forma inteligente por todos os envolvidos, de políticos a imãs, por meio de famílias, escolas e segurança”.

Os irmãos Gabriel e Netanel Zeitoun descansam em seu voo de Paris a Tel Aviv.

“Era totalmente diferente”

Sarcelles, um subúrbio com conjuntos habitacionais rústicos, foi construído para abrigar os imigrantes do norte da África — judeus, muçulmanos e cristãos — que chegaram em massa de antigos territórios franceses nas décadas de 1950 e 1960. Os novos imigrantes falavam a mesma língua, vinham dos mesmos países e compartilhavam a mesma cultura. Embora muitos judeus fugissem da violência nos países muçulmanos, por algum tempo, todos se entendiam.

Mas não durou muito. “As relações entre essas duas minorias mudaram notavelmente à medida que os judeus foram integrados como cidadãos no estado francês, enquanto os muçulmanos foram integrados como estrangeiros”, afirma Maud S. Mandel, historiador e autor de Muslims and Jews in France: History of a Conflict (“Muçulmanos e judeus na França: a história de um conflito”, em tradução livre). Já havia uma comunidade judaica na França com organizações que podiam ajudar os judeus em sua integração, ao passo que os muçulmanos que chegavam não recebiam esse tipo de boas-vindas. “Isso estabeleceu muitas diferenças entre eles”, afirma Mandel, que também é presidente da Faculdade Williams em Massachusetts. “Surgiram vários fatores (como o conflito israelense-palestino) que os deixaram em lados opostos.”

“O que mais dói é o fato de termos crescido juntos”, conta Moise Kahloun, que emigrou da Tunísia em 1969 e é presidente da comunidade judaica de Sarcelles. Em pé na sinagoga onde ele teve sua saída impedida por barricadas colocadas pelos manifestantes em 2014, ele lembra: “quando chegamos, era totalmente diferente. Por 40 anos, a vida comunitária em Sarcelles foi o exemplo da vida judaica ideal na França.”

Novos imigrantes desembarcam em meio a acaloradas boas-vindas.

Após o ataque ao supermercado kosher em 2015, a França enviou 4,7 mil soldados para proteger 717 instituições judaicas em todo o país. Embora essas medidas certamente tenham impedido mais massacres, elas também perpetuaram sentimentos de insegurança. Esther Coscas evitava a sinagoga em Sarcelles porque não suportava a visão de soldados armados do lado de fora.

Embora as autoridades francesas tenham reconhecido a crise do antissemitismo, muitos judeus franceses sentem que suas palavras são vazias. Em julho, um juiz francês determinou que o homem que assassinou Sarah Halimi em 2017 não poderia ser julgado porque estava sob o efeito de drogas na ocasião do crime. A determinação encontrou eco em outra decisão de 2010, em que o homem que matou um DJ judeu foi considerado mentalmente instável para ser julgado.

No primeiro dia em Jersulem, Yael, Gabriel e Netanel Zeitoun exploram o telhado de seu novo prédio de apartamentos.

“O governo não está fazendo nada para combater o antissemitismo”, afirma Yohanane Elfersi, com 64 anos, que está deixando a França porque o êxodo em curso esvaziou a sinagoga de sua vizinhança. “No momento dos acontecimentos, dizem: ‘oh, não, é tão triste, apoiamos os judeus’. Mas então o cara vai a julgamento e dizem: ‘oh, não, ele era louco, não é culpa dele’.”

Alguns dizem que a negligência do governo está provocando a saída dos judeus, mesmo quando prefeririam ficar. Stella Bensignor fugiu de um subúrbio de Paris para outro depois de ter sido vitimada duas vezes. Na primeira vez, sua casa foi invadida e todos os seus objetos judaicos roubados. Dois meses depois, a lateral de seu carro foi riscada com a palavra “JUDEU” em letras gigantes. A polícia mandou que ela se mudasse para outro bairro. Uma organização de combate ao racismo sugeriu que sua família se mudasse para Israel. “Não queremos fugir da França, mas isso aconteceu há dois anos e a situação só piorou”, afirma Bensignor. “Tenho certeza de que acabaremos em Israel.”

Padarias francesas e aulas de hebraico

“Bem-vindo ao lar na terra de Israel”, anuncia o capitão quando o voo aterrissa em Tel Aviv. Os passageiros aplaudem. Alguns beijam o chão enquanto descem para a pista, onde uma barraca gigante com centenas de pessoas espera para comemorar sua chegada.

Uriel (direita) e Isabelle (esquerda) Herzberg comemoram seu primeiro jantar de Shabat como cidadãos de Israel com seus dois filhos, Yohanne e Alex, e a namorada de Alex, Valentine, que haviam imigrado vários anos antes.

A França é o terceiro país com mais imigração para Israel, atrás apenas da antiga União Soviética e dos Estados Unidos. O enorme afluxo de imigrantes franceses em Israel deu origem a bairros repletos de padarias, cafeterias e corretores imobiliários franceses que atendem à clientela francesa. Contudo, a Aliyah da França está em declínio gradual. Em 2018, 23% menos judeus franceses se mudaram para Israel do que em 2017, o que já tinha sido 25% menor que 2016, segundo dados da Agência Judaica.

Este declínio não é por falta de vontade. As dificuldades enfrentadas pelos imigrantes em Israel levaram muitos a permanecer na França. De acordo com uma pesquisa recente da Qualita, organização que atende imigrantes franceses em Israel, 10% deles voltam à França em um período de três anos. Muitos têm dificuldades para se adaptar a uma sociedade tão diferente. A Agência Judaica está ciente do problema e está intercedendo com o governo para melhorar seus serviços e facilitar a integração, afirma Isaac Herzog, presidente da Agência Judaica. “Os franceses vivem em um país muito desenvolvido e esperam ter a mesma qualidade de vida aqui”, conta ele. Essa expectativa geralmente está muito distante da realidade.

Muitos dos imigrantes que estavam no voo de julho planejaram, nos mínimos detalhes, como evitar os erros daqueles que retornaram à França. Yael e Thierry Zeitoun, que imigraram com dois filhos adolescentes, passaram três anos se preparando. Economizaram dinheiro, pesquisaram oportunidades de trabalho e agora planejam passar um ano se concentrando em aprender hebraico e levar uma vida mais econômica. “Sabemos que não será fácil”, afirma Thierry.

Uriel Hertzberg encontrou dificuldades antes mesmo de chegar. Ele e sua esposa pensaram que haviam fechado a compra de um apartamento em Tel Aviv meses atrás, mas, no último minuto, o negócio não foi fechado por questões burocráticas. Duas horas após o pouso, ele desmaiou por insolação e teve que deixar a barraca em uma maca. Agora está enfrentando dificuldades para se manter com o custo de vida de Tel Aviv, recentemente classificado como a 10a cidade mais cara do mundo.

“Tudo é mais caro e todo mundo ganha menos em Tel Aviv. Não entendo”, lamenta Hertzberg, enquanto caminha para o apartamento de seu filho para o jantar do Shabat, passando por prédios em situação precária, cobertos de pichações e com aparelhos de ar-condicionado pingando.

Apesar de tudo, ele se alegra por voltar a encontrar os filhos, que tinham se mudado nos últimos anos. “Para mim, Israel é esperança. Esperança de que tudo seja possível para os judeus”, afirma Hertzberg, com os olhos brilhando. Seus pais fugiram da invasão nazista da Polônia e os pais de sua esposa fugiram da Argélia e do Marrocos. “Nossos pais e avós não tiveram escolha”, prossegue ele. “No momento, viemos por opção, ao menos por enquanto. Espero que continue sempre assim.”

Oria Vidal, uma nativa de Israel cujos pais emigraram da França há 20 anos, brinca na praia em Netanya com seus primos Eden e Lena, que estão visitando de Estrasburgo, na França. Netanya, uma cidade costeira ao norte de Tel Aviv, abriga uma grande comunidade de imigrantes franceses.
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