Defensores de povos ameaçados alertam para crescente hostilidade na Amazônia

Ativistas de direitos humanos preveem calamidade com o enfraquecimento de órgão brasileiro que há anos protege as comunidades indígenas e suas terras.

Por Scott Wallace
Publicado 26 de nov. de 2019, 07:00 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
Membros de uma expedição de 2002 realizada pela Funai remam na descida do Rio Jutaí, na Terra Indígena Vale do Javari, no estado do Amazonas. A equipe, liderada por Sydney Possuelo, estava em uma missão de três meses para levantar informações sobre uma aldeia isolada chamada de flecheiros, mas sem fazer contato com o grupo.
Foto de Nicolas Reynard, Nat Geo Image Collection

ENQUANTO CAÇAVAM em sua reserva protegida, dois membros do grupo Guardiões da Floresta, composto por 120 voluntários da etnia guajajara, sofreram uma emboscada por cinco homens armados, em 1o de novembro. Um dos homens morreu na hora com um tiro de espingarda à queima roupa. O outro, ferido no braço e nas costas, escapou percorrendo quilômetros em meio à floresta densa e até o momento encontra-se escondido.

Os Guardiões da Floresta — que teve três membros mortos em um único mês no ano de 2016 — travaram intensa batalha com madeireiros ilegais que invadem seu território, a Terra Indígena Arariboia, no leste da floresta amazônica, no estado do Maranhão. Enquanto as outras mortes ocorreram fora dos limites do território protegido, a emboscada deste mês foi o primeiro ataque aos Guardiões dentro da reserva. Além dos guajajaras, a terra Arariboia abriga dezenas de nômades awás isolados, os quais os Guardiões declararam defender, juntamente às florestas de que dependem para sobreviver.

Os Guardiões da Floresta Laércio Souza Silva, à esquerda, e Paulo Paulino, à direita, nesta foto de 2017, na Terra Indígena Arariboia, no leste do estado do Maranhão, sofreram uma emboscada por madeireiros ilegais dentro da reserva, em 1º de novembro de 2019. Paulino foi morto no ataque e Souza Silva ficou ferido.
Foto de Scott Wallace

O homem que morreu, Paulo Paulino Guajajara, de 26 anos, e seus companheiros voluntários vinham alertando as autoridades havia meses sobre ameaças de morte constantes que estavam recebendo. Apesar de as intimidações serem anônimas, os Guardiões não tinham dúvidas de quem estava por trás delas: os mesmos criminosos que roubam madeira de suas terras e põem em risco a vida dos awás, uma etnia que vive isolada do mundo moderno e é especialmente vulnerável a doenças contagiosas e violência.

O Guardião que ficou ferido, Tainaky Tehetehar, também conhecido por seu nome em português, Laércio Souza Silva Guajajara, recebeu tratamento médico e posteriormente foi transferido para um local não divulgado para sua própria segurança.

Há dois anos, estive no Maranhão para fazer uma reportagem sobre os Guardiões e o destino dos awás para a National Geographic. Na época, Paulino disse estar usando seu pseudônimo, Lobo Mau, assim “eles não saberão meu nome verdadeiro". Mas seu rosto era conhecido pelos madeireiros — tinham uma foto dele em seus celulares. Ele contou que eles andavam pela cidade de Amarante, nos arredores da reserva, mostrando sua fotografia aos guajajaras nas ruas, perguntando se alguém sabia de seu paradeiro. O alerta de um amigo permitiu que ele escapasse de uma emboscada e voltasse em segurança para a reserva.

Paulino deixou um filho de quatro anos e sua esposa, que se preocupava com os perigos e privações impostos pelo trabalho do marido com os Guardiões da Floresta. “Minha esposa passa fome enquanto estou fora”, Paulino me contou. “Eu digo a ela que estou defendendo nossa terra para nossos filhos e futuros netos.”

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    Membros da expedição de 2002 de Sydney Possuelo, que contou com 20 patrulheiros indígenas, defumam carne sob folhagens de palmeira, na afastada Terra Indígena Vale do Javari.
    Foto de Nicolas Reynard, Nat Geo Image Collection

    Missão arriscada

    Defender a terra para as futuras gerações está se tornando cada vez mais arriscado para os povos indígenas do Brasil — e também para os oficiais que monitoram as regiões de fronteira, onde etnias sem contato e isoladas do país continuam a se movimentar. (Especialistas usam os termos “sem contato” e “isolado” de forma intercambiável para se referirem às comunidades indígenas que optaram por viver afastadas do mundo externo em quase total independência da economia industrial mundial).

    Em 31 de outubro de 2019, e novamente em 3 de novembro, um importante posto avançado que controla o acesso à Terra Indígena Vale do Javari, a mais de 2,5 mil quilômetros do território do povo guajajara, no estado do Amazonas, sofreu um ataque armado por caçadores ilegais de espécies selvagens. Madeireiros ou caçadores ilegais atacaram o posto de controle oito vezes nos últimos 12 meses.

    Fazer trilhas pela mata é cansativo. Durante a expedição da Funai em 2002 na Terra Indígena Vale do Javari, a equipe acampou em 39 locais diferentes.
    Foto de Nicolas Reynard, Nat Geo Image Collection

    O posto é operado por uma unidade especializada da Funai, a Coordenação-Geral de Índios Isolados e de Recente Contato, órgão indigenista cuja missão é proteger os povos indígenas isolados no Brasil do contato forçado por parte de invasores. Ao longo dos anos, por meio de árduas expedições em terra e reconhecimento aéreo, os agentes de campo do departamento confirmaram a existência de 28 etnias isoladas no Brasil, e estão investigando a presença de até mais de uma centena.

    Dez dessas 28 etnias vivem na Terra Indígena do Javari, o que faz dela o lar da maior concentração de comunidades indígenas isoladas do mundo.

    Nas últimas três décadas, a Coordenação-Geral conquistou a proteção legal de mais de 12 milhões de hectares de mata virgem em 11 Frentes de Proteção Etnoambientais, regiões onde atua com bases de linha de frente que se estendem por toda a Amazônia brasileira. A política trouxe benefícios que vão muito além da proteção das etnias, de acordo com Elias dos Santos Bigio, veterano há 37 anos das missões exploratórias da Funai que traçam as fronteiras dentro das quais os nômades indígenas se movimentam no interior da floresta amazônica.

    Sydney Possuelo, à época chefe da Coordenação-Geral de Índios Isolados, reúne suas ideias enquanto lidera a expedição exploratória de 2002 pela terra de uma aldeia isolada na Terra Indígena Vale do Javari.
    Foto de Nicolas Reynard, Nat Geo Image Collection

    “As terras das etnias isoladas são altamente preservadas”, contou Bigio, que se aposentou da Funai em janeiro e chefiou a coordenação de índios isolados por cinco anos na década de 2000. “Elas são importantes para o meio ambiente, a biodiversidade, o clima e para preservar fontes de água limpa. Essas terras são essenciais para os grupos isolados, mas também são importantes para todos nós.”

    Trabalho meticuloso em risco

    Agentes da Coordenação-Geral há meses vêm reivindicando mais proteção na reserva Javari. Em 7 de novembro, eles sentiram alívio quando a justiça federal determinou que o governo de Jair Bolsonaro fornecesse segurança armada à base principal e aos outros quatro postos avançados que protegem a reserva.

    Mesmo assim, servidores e ex-servidores da Coordenação-Geral — todos veteranos de campanhas rigorosas nas regiões mais afastadas da floresta amazônica — temem que a retórica e as políticas do atual governo arruínem décadas de trabalho diligente. De acordo com a equipe de campo, cortes orçamentários dos últimos três anos reduziram consideravelmente a capacidade operacional da Coordenação-Geral de Índios Isolados, forçando o fechamento de bases e a retirada de equipes de importantes focos de conflito. O orçamento proposto para a divisão da Funai que engloba a Coordenação-Geral de Índios Isolados prevê cortes ainda maiores — uma redução de 40% para o próximo ano.

    Membros do Grupo Especial de Fiscalização, uma unidade aérea de elite dentro do Ibama, agência de proteção ambiental brasileira, buscam por operações de garimpo ilegal na Reserva Indígena Roosevelt, em Rondônia.
    Foto de Felipe Fittipaldi, National Geographic

    Agentes veteranos ficaram desanimados no início de outubro,  quando o presidente da Funai indicado por Bolsonaro, Marcelo Augusto Xavier da Silva, substituiu 15 coordenadores na hierarquia da agência sem nenhum aviso. Eles ficaram particularmente preocupados com a destituição de Bruno da Cunha Araújo Pereira do comando da Coordenação-Geral de Índios Isolados e de Recente Contato. Pereira é veterano de trabalho há muitos anos no Vale do Javari. Alguns dias antes de sua demissão, ele ajudou a supervisionar uma ação por helicóptero, coordenada com a polícia federal e unidades do exército, que destruiu dezenas de dragas para garimpo de ouro que operavam ilegalmente na região leste do Javari.

    “Bruno estava desempenhando suas funções muito bem, mesmo com todas as limitações com as quais tinha que lidar”, conta Antenor Vaz, veterano por 25 anos que se aposentou da Funai em 2013 e agora presta consultoria sobre questões que envolvem etnias isoladas. “Não entendemos porque Bruno foi demitido”.

    Vaz estava entre um grupo de 15 líderes indígenas e ex-servidores da Funai que assinaram uma carta aberta em 5 de outubro protestando contra a demissão de Pereira. A carta alertava sobre um “genocídio em andamento”, resultante dos cortes no orçamento e promessas feitas por Bolsonaro de permitir garimpos e madeireiras em terras indígenas, incluindo territórios de algumas etnias isoladas.

    Um rio que passa pela Reserva Indígena Roosevelt. A reserva é o lar de 1,2 mil membros da etnia cinta larga e abriga umas das maiores reservas de diamante do mundo. O governo de Jair Bolsonaro quer legalizar a exploração de minério nos territórios indígenas em toda a Amazônia brasileira. Críticos alertam que o garimpo desmatará a floresta e poluirá os rios, incluindo aqueles dos quais aldeias isoladas dependem para sobrevivência.
    Foto de Felipe Fittipaldi, National Geographic

    Em abril de 2015, Bolsonaro já falava abertamente: “Não tem terra indígena onde não têm minerais. Ouro, estanho e magnésio estão nessas terras, especialmente na Amazônia, a área mais rica do mundo. Não entro nessa balela de defender terra pra índio”. Depois, quando estava em campanha para a presidência, em agosto de 2018, ele declarou, “Se eleito, eu vou dar uma foiçada na Funai, mas uma foiçada no pescoço. Não tem outro caminho. Não serve mais.”

    Um mês após essa carta aberta, foi realizada uma declaração de 33 agentes de campo atuais da Coordenação-Geral de Índios Isolados protestando contra a demissão de Pereira e um possível “efeito cascata” que poderia colocar em perigo o delicado trabalho dos 11 coordenadores de campo do departamento que fiscaliza as frentes defensoras de terras indígenas, onde estão presentes etnias isoladas. Os signatários alertam sobre o risco de uma “paralisação das atividades” nas bases da linha de frente, que poderia resultar na revogação dos deveres constitucionais do governo e de compromissos internacionais para assegurar a integridade de terras indígenas e a segurança das etnias.

    As famílias awás reúnem-se para provar mel silvestre colhido na floresta tropical.
    Foto de Charlie Hamilton James, Nat Geo Image Collection

    Mudanças

    No início do século 20, a Funai e seu órgão precursor, o Serviço de Proteção aos Índios, eram responsáveis por entrar em contato com os povos indígenas da Amazônia antes da expansão das fronteiras. “Equipes de contato” eram enviadas para atrair as etnias das selvas, seduzindo-os com presentes, como facões e machados, roupas e espelhos. Poderia levar meses, e até mesmo anos, para que uma etnia saísse de trás das moitas.

    Mas, apesar dos enormes esforços para resguardar seus protegidos indígenas, os agentes de campo — chamados de sertanistas — constataram que esses “primeiros contatos” quase que invariavelmente resultavam em epidemias dizimadoras. As etnias não têm defesas imunológicas contra doenças contagiosas ocidentais, como sarampo e gripe, e houve casos em que as taxas de mortalidade entre aldeias recém-contatadas chegaram a 90%. Os sobreviventes eram tomados por apatia, a maior parte de seu conhecimento ancestral e de suas crenças espirituais foi dilacerada pelo luto e pela extinção repentina em seu estilo de vida de caçar e coletar alimentos.

    Crianças awás brincam em uma lagoa na reserva Caru, no Maranhão.
    Foto de Charlie Hamilton James, Nat Geo Image Collection

    O sertanista veterano Sydney Possuelo, abatido pelo desgosto após supervisionar uma série de campanhas de contato no início dos anos 1980, liderou um movimento na Funai para traçar um novo rumo. O resultado foi uma drástica mudança de paradigma.

    A Funai não iria mais forçar o contato com etnias que ainda viviam em isolamento na floresta amazônica. Em vez disso, os agentes identificariam as terras ocupadas pelas etnias e buscariam reconhecimento formal desses territórios. Colocariam funcionários em postos de controle para bloquear invasões de caçadores, madeireiros e mineradores ilegais. Eles não fariam mais nenhum contato. De uma hora para a outra, a missão dos sertanistas mudou do “contato para salvar” para “salvar sem contato”.

    A abordagem definiu uma posição revolucionária copiada posteriormente por outros cinco países da América do Sul que abrigam etnias amazônicas nunca antes contatadas. Isso reconheceu o direito de os indígenas prosseguirem com seus antigos estilos de vida em suas próprias terras tradicionais — inclusive para comunidades isoladas que optaram por permanecer longe da sociedade moderna. Foi adotado o conceito de que esses grupos precisam de florestas intactas, vida selvagem em abundância, com rios e riachos sem poluição para sobreviverem como culturas vivas. Foi uma posição que culminou na confluência da proteção ambiental e defesa do direito à autodeterminação.

    Um grupo de Guardiões da Floresta Guajajara patrulha as florestas na Terra Indígena Arariboia. Os Guardiões são um grupo de ação local de voluntários indígenas que buscam e confrontam madeireiros e caçadores ilegais em suas terras.
    Foto de Charlie Hamilton James, Nat Geo Image Collection

    A Coordenação-Geral de Índios Isolados, posteriormente renomeada para incluir a proteção a grupos de contato recente, foi criada em 1987 para desempenhar as novas atribuições. Sydney Possuelo assumiu o comando da unidade.

    “A política que introduzi se baseia no respeito por aqueles que são diferentes de nós”, escreveu Possuelo por e-mail à National Geographic. Ao mesmo tempo, disse ele, é baseada em um compromisso de “preservar seus direitos humanos e seus territórios imemoráveis.”

    Combinação perigosa

    Todo esse esforço agora corre o risco de ir por água abaixo. O governo de Jair Bolsonaro está pressionando para a abertura das terras indígenas, incluindo as de algumas etnias nunca antes contatadas, à mineração e exploração de madeira. As invasões de territórios nativos estão em alta. Invasores, conta o ex-agente Bigio, estão ganhando confiança com a retórica antiambiental e anti-indígena de Bolsonaro e a desordem na Funai, criada pelos cortes orçamentários e inexplicável reestruturação de pessoal.

    Em uma declaração oficial após a reorganização, a liderança da Funai disse que era “natural com uma nova administração” fazer tais mudanças, que eram “necessárias para a implementação de novas metas de gestão.”

    Os agentes de campo se queixam da ordem de silêncio imposta pelo alto escalão da Funai e da agência de proteção ambiental, o Ibama. Mas Pereira, que ainda é servidor da Funai e planeja retornar ao seu trabalho defendendo etnias isoladas na fronteira amazônica, não se cala.

    “Minha maior preocupação é o avanço de invasores nos territórios isolados — seja para projetos autorizados pelo governo, seja para atividades ilegais por parte de madeireiros, garimpeiros e grileiros”, contou Pereira à National Geographic por telefone, de sua casa em Brasília. “Ao mesmo tempo, temos a devastação da Funai e do departamento para proteger as etnias isoladas. É uma combinação muito perigosa.”

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