Última geleira da Venezuela está prestes a desaparecer

O Pico Humboldt, nos Andes, está derretendo rapidamente e terá sumido antes que os cientistas tenham a chance de estudá-lo por completo.

Por Kyla Mandel
Publicado 3 de dez. de 2018, 20:50 BRST, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
O Pico Humboldt, nos Andes Venezuelanos, abriga a última geleira do país, mas não por muito ...
O Pico Humboldt, nos Andes Venezuelanos, abriga a última geleira do país, mas não por muito tempo.
Foto de Jorge Silva, Reuters

A PRIMEIRA VEZ que Carsten Braun visitou os Andes venezuelanos foi em 2009. Ele e sua esposa escalaram o Pico Humboldt—o segundo pico mais alto do país—e decidiram levar um GPS para medir uma geleira menor. “Foi uma operação com orçamento bem apertado”, disse ele sobre a desafiadora caminhada até o gelo.

Braun, professor de geografia na Universidade do Estado de Westfield, em Massachusetts, voltou a visitar a Geleira Humboldt algumas outras vezes desde então. Em sua viagem de pesquisa mais recente, há seis anos, a geleira havia encolhido de forma notável.

“Imagine despejar uma massa líquida de panqueca sobre uma ladeira”, era isso que parecia, disse Braun sobre essa “camada de gelo muito fina”, de no máximo 19 metros de espessura. Percorreríamos menos de 1,5 quilômetro para dar a volta em toda a sua circunferência.

Uma das cinco principais geleiras tropicais do país, Humboldt está localizada na Serra Nevada de Mérida, na parte ocidental do país. Graças às mudanças climáticas, a Venezuela está na frente de uma sinistra corrida junto a outros países, como a Tanzânia e a China, para ver qual deles perderá suas geleiras primeiro. O que vemos agora “talvez seja o último suspiro da Geleira Humboldt”, conta Braun.

Mas, devido a uma combinação de crise política e problemas de financiamento, ela foi totalmente esquecida. A previsão é que derreta dentro de uma ou duas décadas, sem que os cientistas tenham estudado por completo a última geleira da Venezuela.

Rápido recuo

Em escala global, diferentemente do que ocorre na Groenlândia e Antártida, as geleiras sem manto de gelo, como aquelas encontradas em montanhas, representam cerca de um por cento das geleiras do mundo, explica Alex Gardner, cientista pesquisador do Laboratório de Propulsão a Jato da NASA, que descreve sua especialização como “tudo o que está relacionado ao gelo”. Então, a contribuição dessas geleiras para coisas como o aumento do nível do mar não é tão significativa. Mas, como muitas delas estão em áreas com temperaturas frequentemente acima do congelamento, são mais sensíveis às oscilações de temperatura.

Os Andes abrigam mais de 95 por cento das geleiras tropicais do mundo. Em alguns países, como o Peru e a Colômbia, as geleiras constituem importantes fontes de água—para consumo, energia hidráulica e agricultura. Para eles, a perda desse recurso causará um impacto drástico. E, desde a década de 1970, as geleiras da região vêm apresentando rápido recuo.

“Sinceramente, fiquei surpreso com o fato de que ainda existam geleiras na Venezuela”, diz Gardner.

Até recentemente, os únicos estudos em campo realizados nas geleiras da Venezuela foram em 1971 e 1992, liderados pelo falecido Carlos Schubert, um dos principais especialistas na geologia venezuelana. Entre o intervalo de publicação dos dois estudos de Schubert, quatro geleiras desapareceram.

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    Em 2013, Braun e Maximiliano Bezada, pupilo de Shubert, foram coautores de um estudo sobre as medições mais recentes da Geleira Humboldt. Com base nas estimativas de 2011, a área da superfície da geleira era de apenas 0,10 quilômetros quadrados, cerca de 0,05 quilômetros quadrados a menos desde a primeira visita de Braun em 2009. Durante esse tempo, várias rachaduras surgiram ao longo da geleira e água de degelo fluía na base.

    Trinta anos atrás, o gelo tinha aparência forte, conta Bezada, ex-professor de geomorfologia do Instituto Pedagógico de Caracas, na Universidad Pedagógica Experimental Libertador, e um dos poucos cientistas na Venezuela a estudar a geleira Humboldt. “Agora, parece doente”, disse ele. “[Ela] vai morrer em breve”.

    De acordo com Gardner, o aumento da temperatura global é o principal culpado pelo encolhimento das geleiras. “As projeções do modelo indicam que elas vão recuar. A pergunta é quanto e em qual velocidade”, contou ele.

    Geleiras mais baixas, como a Humboldt, são menores e mais vulneráveis, e provavelmente desaparecerão mais rápido, acrescentou.

    Homônimo de Humboldt

    Em 1560, foram registrados pela primeira vez neve constante e camada de gelo nos Andes venezuelanos. Durante uma expedição em 1941 nos Andes, o geólogo de petróleo e ávido alpinista A. E. Gunther descreveu a Geleira Humboldt como a “maior nessas latitudes,” e observou que ela daria, “após neve fresca, uma excelente pista de esqui”.

    A montanha sobre a qual a geleira se encontra leva o nome de Alexander von Humboldt, um naturalista e explorador do século 19. Humboldt avistou a Venezuela pela primeira vez em 1799, quando navegava rumo à costa, repleta de palmeiras verdes e bananeiras, com uma série de montanhas cobertas por nuvens pairando à distância.

    Aqui, Humboldt testemunhou o devastador impacto do desmatamento na colônia espanhola para o desenvolvimento da agricultura. Consequentemente, ele foi o primeiro cientista a discutir a ligação entre a atividade humana e a mudança climática.

    O naturalista destacou a conexão entre os serviços fundamentais do ecossistema de uma floresta—passando por tudo, desde armazenamento de água à proteção do solo—e o sistema climático como um todo. Embora a maioria das pessoas da época argumentasse que a nossa dominação da natureza era necessária para os lucros, Humboldt alertava que precisávamos primeiro compreender a total extensão do impacto humano sobre a natureza.

    Como Andrea Wulf escreve em sua biografia de Humboldt, de 2015, A Invenção da Natureza, "os efeitos da intervenção da espécie humana já eram 'incalculáveis', insistia Humboldt, e poderiam ser catastróficos caso continuássemos a perturbar o mundo de forma tão 'brutal'".

    Já em 1925, e também nos anos 90, por Schubert, os cientistas vêm identificando a ligação entre a poluição proveniente da cidade venezuelana de Mérida e o possível impacto sobre as geleiras vizinhas, que retrocedem já há cem ou duzentos anos, desde os alertas de Humboldt.

    Acompanhando de perto

    Hoje em dia, os alpinistas são os únicos que chegam perto o suficiente para ver a geleira. Os cientistas internacionais são desencorajados ou simplesmente desistem de propor viagens de pesquisa em um país considerado perigoso demais para visitar.

    Acrescentemos a isso o fato de que a Geleira Humboldt não é a mais glamorosa das relíquias do planeta—uma anã se comparada aos campos de gelo da Patagônia—e ficará fácil entender por que é difícil obter financiamento para pesquisas.

    Em sua época, Schubert—cujas preciosas posses incluíam uma edição de 1815 do livro Viagens, de Humboldt—defendeu a criação de um programa de monitoramento para documentar o recuo glacial na Venezuela; algo que contou com o apoio de Bezada e Braun. Até hoje, não se criou nenhum programa do tipo. 

    É possível realizar parte do monitoramento da geleira via satélite. Mas a geleira ficou tão pequena que os dados públicos disponíveis dos satélites Landsat não têm resolução alta o suficiente para a análise de informações detalhadas, diz Braun.

    "Totalmente simbólica"

    Descrita como "anomalia glaciológica" por Braun e Bezada, a Geleira Humboldt já teria desaparecido há anos caso não estivesse localizada no lado da montanha com mais sombra. E, como a geleira já está tão pequena, qualquer impacto sobre os recursos hídricos locais será provavelmente insignificante.

    "Ela é completamente simbólica nesse momento", diz Gardner quanto ao derretimento da geleira. "Esse é o impacto do aumento de CO2 na atmosfera".

    Braun concorda. Mérida é conhecida por ser a Boulder, Colorado, da Venezuela. Então, para quem vive na região, a geleira faz "parte da identidade deles", afirma. "Faz parte do ambiente deles, olhar para as montanhas e ver o gelo”.

    “Quando desaparecer, será para sempre”.

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