É preciso banir as barragens de rejeitos de minério no Brasil, dizem ambientalistas

Especialistas ouvidos pela National Geographic concordam que, após as tragédias socioambientais em Brumadinho e Mariana, novas tecnologias devem ser implementadas pelas mineradoras, independentemente do custo.

Por Gabriel de Sá
Publicado 28 de jan. de 2019, 21:39 BRST, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
Carro soterrado pela lama na Comunidade do Parque da Cachoeira em Brumadinho (MG). Por estar mais próxima ao córrego do Feijão, um dos leitos pelos quais os rejeitos escorreram, a região foi uma das mais afetadas.
Foto de Lucas Ninno

Apenas 1.177 dias separam os rompimentos das barragens de rejeitos de minério de Fundão, em Mariana (MG), e a da Mina do Córrego do Feijão, em Brumadinho, na região metropolitana de Belo Horizonte. No primeiro, em novembro de 2015, a lama tóxica expelida pela estrutura matou 19 pessoas, soterrou vilarejos, deixou milhares de moradores desabrigados e chegou ao mar, sendo considerado o maior desastre socioambiental do país no setor de mineração.

Em 25 de janeiro de 2019, às 13h37, a cerca de 125 km de Mariana, mais uma tragédia atingiu Minas Gerais. O impacto ambiental do acidente em Brumadinho ainda está sendo avaliado, mas pelo menos 99 pessoas morreram, vítimas da lama de rejeitos armazenada na Barragem I da Mina do Córrego do Feijão, e cerca de 260 estavam desaparecidas até a noite de quarta (30/01).

O rompimento das duas barragens, operadas respectivamente pelas empresas Samarco (joint-venture da BHP Billiton+Vale S.A) e Vale, e as tragédias humanas e socioambientais decorrentes dos desastres poderiam ter sido evitados — sobretudo as da última semana. Leis de licenciamento mais rígidas, fiscalização estatal severa e — principalmente — a adoção de tecnologia mais moderna poderiam transformar o setor de mineração brasileiro. É que o que defendem ambientalistas ouvidos pela National Geographic Brasil após a catástrofe de Brumadinho.

Leonardo Ivo, diretor da Associação dos Observadores do Meio Ambiente de Minas Gerais, responsável pelo observatório Lei.A, esteve em Brumadinho nos últimos dias e pôde sentir de perto o desespero das pessoas que, de uma hora para outra, perderam suas casas, familiares e todo um contexto de vida. “É necessário repensar essa história de estocar lama”, diz ele.

A antropóloga Andréa Zhouri, coordenadora do Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais da Universidade Federal de Minas Gerais (Gesta/UFMG), observa que tragédias como a de Brumadinho não são “desastres naturais”, mas sim “falhas político-institucionais”, fruto de uma lógica que tem simplificado tanto o processo de licenciamento ambiental quanto o monitoramento das barragens. “No Brasil e em Minas, é o minério acima de tudo e de todos”, considera a pesquisadora.

A importância histórica da mineração para a economia do estado e do país é inegável, observa Zhouri, mas ela defende que a atividade não pode ser colocada acima da vida humana e das questões ambientais, como considera ocorrer atualmente. “A questão não é criticar o minério em si, mas o modelo econômico de exportação de commodities minerárias que torna o país dependente enquanto subjuga a sociedade e os territórios de forma perversa e criminosa”, diz ela. A pesquisadora critica o afrouxamento da legislação em prol das mineradoras e as práticas institucionais que operacionalizam as normativas.

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    “Essas barragens são bombas-relógio que podem explodir a qualquer momento: aprendemos muito pouco com a tragédia de Mariana.”

    por Maria Dalce Ricas
    Superintendente da Associação Mineira de Defesa do Ambiente

    Para a superintendente da  Associação Mineira de Defesa do Ambiente (Amda), Maria Dalce Ricas, a confiança da Vale na segurança da barragem foi tão excessiva que as próprias instalações da empresa estavam próximas a ela. Edifícios e funcionários da mineradora foram atingidos e também estão entre as vítimas do desastre. “Essas barragens são bombas-relógio que podem explodir a qualquer momento”, defende a ambientalista. “Boa parte destas barragens está inativa, mas essa também estava e mesmo assim arrebentou”.

    Alteamento a montante

    Barragens de rejeitos são estruturas que guardam resíduos de mineração, que, por motivos ambientais, devem ser devidamente armazenados. Em nota à imprensa, a Vale informou que a Barragem I da Mina Córrego do Feijão estava inativa e que a empresa estava desenvolvendo o projeto de descomissionamento dela. Ainda de acordo com a Vale, a barragem possuía Declarações de Condição de Estabilidade emitida pela empresa TUV SUD do Brasil em junho e setembro  de 2018. As declarações, contudo, não foram suficientes para evitar a tragédia. “É preocupante que a barragem tenha sido avaliada pelos órgãos competentes e auditorias externas e disseram não haver risco de rompimento”, comenta Leonardo Ivo.

    Construída em 1976, pela Ferteco Mineração, a barragem utilizava o método de alteamento a montante, que, apesar de comum, é considerado pouco seguro, de acordo com especialistas. Este método era o mesmo presente na barragem de Fundão, em Mariana, e, segundo reportagem do G1, há outras 130 barragens deste tipo no país. O alteamento a montante é o processo em que a barragem utiliza os próprios rejeitos para erguer o barramento para cima, em degraus.

    Bombeiro observa o rio de lama que se formou depois do rompimento da barragem da mineradora Vale em Brumadinho (MG).
    Foto de Lucas Ninno

    Para Andréa Zhouri, as barragens a montante devem ser banidas do setor de mineração no Brasil. “Essa técnica é ultrapassada e obsoleta, empregada apenas em países em desenvolvimento. Ela não é segura para a população, mas é a mais barata. Como as empresas visam o lucro, elas acabam dominando, a despeito do alto risco para a população e o meio ambiente”, observa a pesquisadora. “Há alternativas, como a contenção a seco, e a Vale detém essa tecnologia. O Estado tem de cobrar”, defende ela. “Aprendemos muito pouco com a tragédia de Mariana. O rompimento da barragem de Fundão deveria ter sido um grande alerta”, acredita Maria Dalce Ricas.

    Ricas observa que as providências em relação às barragens devem ser “para ontem”, já que o que aconteceu em Mariana e Brumadinho pode ocorrer novamente a qualquer momento. “Os argumentos de altos custos não podem ser aceitos, mesmo a mineração tendo um papel econômico tão importante em nosso estado. Custos não podem justificar a flexibilização de medidas técnicas que garantam a segurança da população, da biodiversidade e do meio ambiente”.

    O risco de novos rompimento pode mesmo ser iminente: na manhã de domingo (27/01), houve suspeita de que a Barragem IV, também na Mina do Córrego do Feijão, poderia ruir. As sirenes na região foram acionadas pela Vale e a comunidade teve de abandonar suas casas. Ao longo do dia, contudo, a Vale informou que a Defesa Civil havia baixado o nível de criticidade da barragem de 2 para 1. As pessoas puderam retornar a suas casas e os bombeiros retomaram as buscas por desaparecidos.

    Em nota enviada à imprensa na terça (29/01), a Vale anunciou o descomissionamento de todas as barragens da empresa que utilizam o método de alteamento a montante. Segundo o texto, a Vale possui 10 barragens deste tipo, sendo que, segundo a empresa, todas estariam inativas. O custo da mudança está avaliado em R$ 5 bilhões e o descomissionamento ocorrerá ao longo dos próximos três anos.

    “A questão não é criticar o minério em si, mas o modelo econômico de exportação de commodities minerárias que torna o país dependente enquanto subjuga a sociedade e os territórios de forma perversa e criminosa.”

    por Andréa Zhouri
    Coordenadora do Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais da UFMG

    De que lado está a lei?

    Após a tragédia em Mariana, em novembro de 2015, uma iniciativa popular, coordenada pelo Ministério Público de Minas Gerais, obteve mais de 56 mil assinaturas e gerou o Projeto de Lei número 3695/2016, Mar de Lama Nunca Mais, protocolado na Assembleia Legislativa de Minas Gerais. O principal objetivo foi criar uma legislação específica sobre segurança de barragens de rejeito da mineração. Quatro pontos são considerados essenciais para que a legislação traga realmente mudanças para o setor. Primeiramente, a proibição do alteamento a montante, ou seja, as barragens não poderiam ser ampliadas para o lado na direção oposta ao barramento. O segundo ponto refere-se à obrigatoriedade de se contratar um seguro caução antes do início das operações, ou seja, haveria garantia pecuniária no caso de rompimento.

    Em terceiro lugar, o PL obrigaria os empreendedores a considerarem a alternativa de tratamento de rejeitos a seco; e, quarto, barragens não poderiam ser construídas onde exista a presença de mananciais para abastecimento público e populações em um raio de 10 km do barramento. Apesar de o projeto contar com o apoio do Ministério Público, Ibama e ambientalistas, ele foi substituído por um mais vago, o PL 3676/2016, que não contém os quatro pontos e seria, de acordo com Leonardo Ivo, mais condescendente com as mineradoras, permitindo  utilizar critérios econômicos na avaliação dos licenciamentos.

    “A gente percebe que este projeto, criado pela Comissão Extraordinária de Barragens, é menos rígido com o setor minerário”, comenta Ivo. O ideal, segundo ele, é que a lei fosse aprovada com os pontos levantados pela iniciativa popular. Nenhuma das duas, entretanto, foi aprovada ainda.

    Além disso, uma lei de licenciamento ambiental aprovada em Minas Gerais em 2017 permite que, em alguns casos, o licenciamento trifásico (licenças prévia, de instalação e de operação) seja aprovado concomitantemente, o que, no caso das barragens de rejeitos, pode ser extremamente perigoso, já que o risco socioambiental tem se provado altíssimo. “O ideal seria proibir as barragens de rejeito de minério de ferro no Brasil. Extinguir as que existem e não operar mais, contando com este tipo de estrutura”, pondera Ivo.

    Andréa Zhouri acredita que o “afrouxamento” da lei de licenciamento ocorre por que o setor de mineração está presente de forma consistente tanto no poder legislativo quanto no executivo, em níveis estadual e federal. “As mineradoras estão ocupando espaços importantes de decisão, onde as vozes da sociedade deveriam ser mais ouvidas”, critica ela.

    De acordo com Carla Sássi, membro da Comissão de Desastre do Conselho Regional de Medicina Veterinária, dois animais ilhados pelo rompimento da barragem em Brumadinho (MG) tiveram que ser sacrificados porque sofriam e não tinham possibilidade de serem resgatados. O Conselho coordena uma equipe de voluntários que está ajudando na busca e no tratamento dos animais afetados pela tragédia.
    Foto de Carlos Fabal

    A lei estadual que rege as diretrizes de segurança de barragens em Minas Gerais, a 15056/2004, diz que, em caso de acidente ambiental, as medidas emergenciais são assumidas pela empresa, de forma direta ou em ressarcimento ao estado. Já no âmbito federal, a lei  nº 12334/2010, conhecida como Política Nacional de Segurança de Barragens (PNSB), visa garantir que os padrões de segurança das barragens sejam devidamente seguidos, evitando a possibilidade de acidentes. Nenhuma das duas leis, contudo, conseguiu evitar as tragédias em Mariana e Brumadinho.

    Alternativas viáveis

    Para Andréa Zhouri, o Estado brasileiro é conivente com a inadequação tecnológica das mineradoras, já que não investiu em técnicas mais seguras. “A mineração tem que estar submetida à sociedade, e não o contrário”, diz ela. Quais seriam, então, as alternativas para as barragens de rejeitos de minério?

    Maria Dalce Ricas defende que o problema é complexo e não há soluções simples. Contudo, para ela, não é aceitável que a lama esteja armazenada acima das comunidades, pois, em caso de ruptura das estruturas, o rejeitos vão necessariamente atingir a população. Há ainda outras opções, como as pilhas de drenagem, em que o material é disposto em pilhas para secar; transformar os rejeitos em matéria- prima para a construção civil; e a britagem a seco. Ricas detalha, entretanto, que cada tecnologia seria aplicada para um determinado tipo de rejeito, a depender do minério, e que a viabilidade deve ser estudada em cada caso específico.

    “As mineradoras preferem correr o risco (de rompimento) por conta do aspecto econômico, mas estudos mostram que a tecnologia do tratamento a seco aumentaria o custo em cerca de apenas 20%.”

    por Leonardo Ivo
    Diretor da Associação dos Observadores do Meio Ambiente de Minas Gerais.

    Leonardo Ivo acredita que a tecnologia de tratamento a seco deve ser adotada o mais rápido possível pelas empresas de mineração no Brasil. “Eles preferem correr o risco (de rompimento) por conta do aspecto econômico, mas estudos mostram que a tecnologia do tratamento a seco aumentaria o custo em cerca de apenas 20%, o que é plausível para uma mineradora”, defende ele. Algumas empresas já fazem o tratamento a seco dos rejeitos de minério, em cidades como Ouro Preto e Nova Lima (MG).

    Ricas entende que haverá dificuldade de o governo fiscalizar as centenas de barragens que existem no país e que mesmo um processo de licenciamento mais rigoroso não necessariamente resolveria a questão. Ela acredita que a resposta está na tecnologia. “A barragem deve ser sempre a última opção”, garante ela.

    Morador de Brumadinho (MG) observa o estrago causado pelo rompimento da barragem do córrego do Feijão no Rio Paraopeba.
    Foto de Lucas Ninno
    Reportagem atualizada na quarta-feira (30/01), às 19h30.
     

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