Ondas estranhas percorreram o mundo – agora sabemos a causa
Fenômeno excepcional perto das pequenas ilhas de Mayotte pode ajudar a explicar um tremor de baixa frequência que se propagou pelo mundo em 2018.
Em 10 de maio de 2018, iniciaram agitações geológicas na pequena ilha de Mayotte. Milhares de terremotos abalaram a ilha francesa, localizada entre a África e Madagascar. A maioria era formada por pequenos terremotos, porém um dos fenômenos alcançou magnitude 5,8 em 15 de maio, o maior já registrado na região.
No meio desse enxame sísmico, um estranho tremor de baixa frequência percorreu o mundo, acionando sensores a uma distância aproximada de quase 18 mil quilômetros — e desconcertando cientistas.
Agora, os pesquisadores podem ter finalmente descoberto a origem da atividade inusitada: o nascimento de um vulcão submarino a cerca de 50 quilômetros de distância da costa leste de Mayotte. A uma profundidade de pouco mais de três quilômetros, o novo vulcão tem altura aproximada de 800 metros e mede quase cinco quilômetros de um lado ao outro.
As observações foram feitas após cientistas franceses lançarem uma missão multidisciplinar para desvendar a origem do enxame sísmico em curso. Coordenado pelo Centro Nacional de Pesquisa Científica da França (CNRS), o estudo inclui levantamentos do barco Marion Dufresne, liderado conjuntamente por Nathalie Feuillet, do Institut de Physique du Globe de Paris, e Stephan Jorry , do IFREMER, instituto francês de pesquisa.
Os dados ainda são preliminares e muitas perguntas permanecem sem resposta enquanto os cientistas ainda analisam os resultados e elaboram a publicação da pesquisa em um periódico especializado. Por ora, a equipe emitiu um comunicado conjunto à imprensa anunciando o novo vulcão e seu provável elo com a peculiar onda de terremotos.
“Em vista da descoberta, o governo está totalmente mobilizado para acompanhar e aprofundar nossa compreensão sobre esse fenômeno excepcional e tomar as medidas necessárias para classificar e prevenir quaisquer riscos que ele represente”, afirmam as agências no comunicado.
Stephen Hicks, sismólogo da Faculdade Imperial que analisou os peculiares fenômenos sísmicos de Mayotte, acrescenta que o anúncio oferece em parte os tão necessários esclarecimentos para os habitantes da ilha, profundamente chocados após meses de inexplicáveis tremores.
O mistério geológico
Mayotte faz parte do arquipélago das Comores, uma série de ilhas vulcânicas a noroeste de Madagascar. Embora o vulcanismo não seja novidade na região, Mayotte permanece adormecida há muito tempo, com sua última erupção ocorrida há mais de 4 mil anos. Contudo, no início de maio do ano passado, a atividade geológica em Mayotte entrou em ritmo acelerado. Desde o início do enxame, mais de 1,8 mil terremotos de magnitude superior a 3.5 abalaram a ilhota. Ao que parece, a própria superfície terrestre da região está em movimento, deslocando-se aproximadamente 1,5 centímetros para leste e afundando cerca de 1 centímetro a cada mês desde meados de julho.
Em novembro, os curiosos tremores de baixa frequência começaram a irradiar globalmente, persistindo por mais de 20 minutos. A uma frequência demasiadamente baixa para o ser humano perceber, apenas uma pessoa notou as curiosas ondas: um entusiasta de terremotos que usa o pseudônimo de @matarikipax identificou ziguezagues incomuns nas telas de sismógrafos em tempo real do Serviço Geológico dos Estados Unidos e os publicou no Twitter, atraindo uma legião de cientistas internacionais para o mistério.
Mesmo na época, a conclusão dos especialistas foi que os terremotos e o estranho sinal sísmico provavelmente estavam ligados à movimentação de rocha derretida. Talvez o enxame de terremotos fosse resultado de magma expelido através da subsuperfície e o tremor de baixa frequência tivesse sido causado por ondas ressoando com o desmoronamento de uma câmara magmática.
A ligação com a atividade vulcânica conquistou o apoio adicional de um estudo prévio publicado no servidor EarthArxiv em fevereiro de 2019. Essa pesquisa atribuiu o enxame a uma câmara magmática imensa que começava a escoar, no que poderia ser o maior fenômeno vulcânico submarino em alto mar já documentado.
No entanto, com o limitado monitoramento desses terremotos perto de seus epicentros mar afora e sem evidência direta de uma erupção, nada mais definitivo pôde ser afirmado na ocasião.
Terra grávida
Então, em 16 de maio, a colaboração francesa emitiu seu comunicado à imprensa e Robin Lacassin, do Institut de Physique du Globe de Paris, uma das organizações que participou da pesquisa, publicou duas imagens no Twitter. Uma imagem mostra o vulcão recém-nascido, observado por visualização acústica, que funciona, de certa forma, como um sonar usado pelos golfinhos para sentir seus arredores.
“É quase como um exame de ultrassom de uma mulher grávida... só que com barras de erros maiores”, afirma Lucile Bruhat, geofísica, que não integra a equipe da pesquisa, referindo-se à imagem do Twitter.
Na imagem, uma pluma retorcida se eleva a 1,9 quilômetros aproximadamente através da coluna d’água que sai do topo de uma formação cônica. Não se sabe ao certo a composição dessa pluma, porém as ondas sonoras podem estar ricocheteando fragmentos vítreos de maneira semelhante às cinzas que saem de vulcões em erupção em terra, observa Helen Robinson, candidata a Ph.D. em vulcanologia aplicada da Universidade de Glasgow, por e-mail.
A outra imagem revela uma série de estruturas irregulares no fundo do mar que parecem formar uma rota imprecisa ao novo centro vulcânico de onde estão partindo os terremotos, aproximadamente entre 4,8 e 14,5 quilômetros da costa da ilha Petite-Terre de Mayotte.
“Talvez esse centro vulcânico tenha se afastado da própria ilha”, especula Hicks, mas ele ressalta que são necessários mais dados para validar esses possíveis pontos de atividade vulcânica e confirmar esse mecanismo.
Há algumas semelhanças entre essa nova estrutura e o monte submarino Lō'ihi do Havaí, um vulcão submarino que surgiu ao sul de Kīlauea, acrescenta Ken Rubin, vulcanólogo da Universidade do Havaí em Mānoa, especializado em erupções submarinas.
O Havaí é formado do que é conhecido como vulcanismo por ponto quente; cada ilha representa uma erupção que se formou acima de uma profunda pluma de rocha derretida, estourando em cadeia conforme se move lentamente a placa tectônica que se sobrepõe. Lō'ihi é o mais jovem desses vulcões. Em 1996, ele explodiu em um surto de estrondos, ocasionando milhares de terremotos de modo semelhante ao que foi observado ao redor de Mayotte, afirma Rubin. Para Lō'ihi, o pulso de atividade foi resultado do magma esparramado de um reservatório que provocou o colapso da câmara vazia.
Nas Comores, entretanto, a situação é um pouco mais complexa. Alguns geólogos acreditam que a cadeia vulcânica da região é proveniente de uma atividade semelhante de pontos quentes. No entanto o arquipélago também está situado em uma fenda antiga — a formação como uma ferida aberta onde Madagascar se separou do oeste da África — e atividade vulcânica pode ocorrer ao longo das fissuras formadas a partir dessa ruptura. Curiosamente, as recentes atividades agitaram a costa de Mayotte, a mais antiga da cadeia de ilhas, destaca Rubin.
Poderiam ser obtidos indícios da origem das atividades vulcânicas recentes a partir dos minerais de eventuais lavas solidificadas no fundo do mar, acrescenta Hicks, mas sem mais dados de alta resolução, é impossível afirmar ao certo.
Também não está claro ainda se o vulcão é totalmente novo ou se é apenas uma atividade nova sobre uma estrutura antiga, salienta Rubin.
“Um novo depósito de erupção em uma estrutura vulcânica pré-existente é diferente de um verdadeiro vulcão novo”, afirma ele por mensagem direta no Twitter. Tal distinção pode parecer irrelevante, mas poderia ajudar os pesquisadores a entender melhor o mecanismo do vulcanismo e os futuros riscos de erupção.
Pura e empolgante
Então como exatamente a nova atividade vulcânica está ligada às atividades sísmicas, incluindo o estranho sinal de baixa frequência?
“Essa é a pergunta que não quer calar”, afirma Hicks.
A pesquisa apresentada em uma reunião recente da União Europeia de Geociências revelou que o longo sinal de baixa frequência notado em novembro não foi o único fenômeno do tipo em Mayotte, afirma ele. Pelo contrário, parece ser uma característica comum a esse enxame de terremotos. Entretanto os cientistas ainda não podem afirmar qual situação exatamente está causando os sinais de baixa frequência e o enxame sísmico — ou mesmo se a erupção do novo vulcão continua.
Por ora, a equipe de pesquisadores recusou-se a comentar o assunto enquanto prepara os dados para a publicação.
“Ainda resta tanta pesquisa a fazer”, afirma Mark Tingay, especialista em geomecânica da Universidade de Adelaide por mensagem direta do Twitter. “Mas é uma oportunidade para os cientistas estudarem o que pode ser o nascimento ou novo despertar de um vulcão submarino.”
Ainda assim, ter um indício promissor sobre o caso foi um conforto para aqueles ao redor do mundo que acompanham o enxame de terremotos nas mídias sociais. Os pesquisadores vêm publicando atualizações conforme os estudos avançam, oferecendo um vislumbre da “ciência em sua forma mais pura e empolgante,” afirma por e-mail Wendy Bohon, das Instituições de Pesquisa Incorporadas para a Sismologia.
É evidente que decifrar o mistério foi de suma importância para os residentes da ilha. As incertezas sobre a origem dos terremotos e a falta de comunicação adequada logo no início da série de fenômenos que fizeram tremer o chão causaram frustração e confusão entre os moradores. Isso, por sua vez, despertou uma onda de teorias extravagantes sobre o que poderia estar por trás da movimentação, conta Laure Fallou, socióloga do Centro Sismológico Euro-Mediterrânico, que estudou o papel da cultura na comunicação científica efetiva na região.
Por outro lado, o último anúncio trouxe outro sentimento: “Passou do temor à fascinação”, afirma Fallou. “Algo incrível estava acontecendo lá.”