Quem é Raoni Metuktire, caiapó apontado como candidato ao Nobel da Paz

O cacique é uma das vozes mais importantes pela preservação da floresta desde os anos 1960. Este ano, atacado por Bolsonaro, Raoni voltou a se encontrar com líderes europeus, como o papa Francisco e o presidente Macron. 

Por João Paulo Vicente
Publicado 10 de out. de 2019, 20:00 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
Em artigo de opinião no jornal The Guardian, da Inglaterra, no começo de setembro, cacique Raoni disse: “Nós todos respiramos o mesmo ar, nós todos bebemos a mesma água. Nós vivemos nesse único planeta. Nós precisamos proteger a Terra. Se não fizermos isso, os grandes ventos virão e destruirão a floresta. E então vocês vão temer o que nós sentimos."
Foto de Marcelo Camargo, Agência Brasil

Na metade do documentário Raoni, lançado nos anos 1970, há uma cena emblemática. Após um grupo de indígenas flagrar homens com retroescavadeiras derrubando a floresta amazônica nas imediações do Parque Indígena do Xingu, caciques se reúnem para discutir como reagir. Eles vestem grandes cocares de penas que descem da cabeça até o chão e usam pinturas corporais que emulam padrões de animais por todo o corpo.

O clima é tenso e um deles sugere partir para o confronto e coloca a equipe de filmagem – composta por europeus e brancos do Sudeste – no mesmo balaio que os desmatadores. Em resposta, Raoni já mostra o discurso articulado e estratégico que o tornaria conhecido no mundo inteiro nas décadas seguintes. Numa fala metade em caiapó, sua língua, metade em português, promete encontrar o presidente da Funai e pedir que a área em perigo seja demarcada. Ele também defende o os cinegrafistas, cujo trabalho, segundo ele, poderia ajudar na luta dos indígenas na região.

Hoje próximo dos 90 anos de idade, o cacique Raoni não conversa mais em português. Indicado por um grupo de intelectuais e ambientalistas encabeçados pela Fundação Darcy Ribeiro ao Prêmio Nobel da Paz em 2020, Raoni virou o centro de um zum zum zum sobre a possibilidade de ganhar o Nobel já neste ano. O vencedor, no entanto, foi Abiy Ahmed Ali, primeiro-ministro da Etiópia que costurou um acordo de paz com a vizinha Eritreia e colocou fim a uma guerra de 20 anos com mais de 80 mil mortos.

Antes do anúncio, feito nesta sexta-feira (11/10), Raoni havia recebido uma força extra inesperada nas críticas do presidente Jair Bolsonaro, que não perde uma oportunidade de criticar a figura internacional do líder indígena. Depois de falar mal do cacique no seu discurso de abertura na Assembléia Geral da ONU, em setembro, Bolsonaro afirmou no começo de outubro que Roni é “outro que vive tomando champanhe por aí”.

[Veja também: Como os caiapós defendem seu modo de vida tradicional e a Amazônia]

Com ou sem champanhe, o presidente acertou: desde os anos 60, Raoni tem estado por aí junto com algumas das figuras mais importantes dos universos cultural, intelectual e político do mundo.

Raoni Metuktire nasceu entre o começo dos anos 30 e os 40 (em 32, de acordo com seu passaporte) em Krajmopyjakare, hoje Kapot, em Mato Grosso. Ele é filho do cacique Umoro, da tribo Metuktire (daí o sobrenome), da etnia Caiapó. Aos 15 anos, segundo a narrativa oficial, Raoni teve ajuda do irmão Motibau para instalar o labret, o adorno utilizado no lábio inferior que marca sua feição até hoje.

Em 1954, Raoni teve o primeiro contato com os homens brancos ao se deparar com uma expedição dos irmãos Villas-Bôas, com quem aprendeu português – no documentário sobre ele, o cacique se refere a Orlando como pai. Também foram os Villas-Bôas que apresentaram o cacique ao seu primeiro contato internacional de renome: o rei Leopoldo 3º da Bélgica, que fazia uma expedição pelo Mato Grosso em 1962.

Leopoldo – que reinou entre 1934 e 51 e se interessava por antropologia e fotografia – ainda encontraria Raoni outras duas vezes nos anos 1960. Mas foi na década seguinte que outro belga alavancaria de vez a imagem do líder indígena para o mundo. Encantada com o carisma do cacique, o documentarista Jean-Pierre Dutilleux gravou um filme que tinha como tema central a luta de Raoni pela defesa da floresta e dos modos de vida tradicionais dos povos indígenas.

Lançado em 1976, Raoni foi um sucesso no festival de Cannes e traz cenas da sua primeira visita a São Paulo, onde conhece uma aldeia Guarani, já naquela época quase engolida pela cidade. O burburinho em torno do filme fez com que Jean-Pierre produzisse uma versão em inglês no ano seguinte, narrada pelo ator Marlon Brando (em português, o filme tem a voz de Paulo César Pereio).

Brando – que não cobrou nada pelo trabalho – aparece em uma curta cena no começo do filme ao lado de índigenas norte-americanos, em uma aproximação da luta dos povos originais dos dois lados do continente. De qualquer forma, o estrago – para quem vê como estrago a luta por preservação ambiental – estava feito. Aos olhos do mundo, Raoni virou um símbolo dessa batalha no Brasil.

Foi essa fama que trouxe o cantor Sting ao Xingu para conhecê-lo, em 1987. Nos anos seguintes, Sting criou a ONG Rainforest Foundation para apoiar causas defendidas por Raoni, como a demarcação de terras indígenas Caiapó adjacentes ao Parque do Xingu (o que de fato aconteceu no começo nos anos 1990). Finalmente, em 1989, o músico levou o cacique junto de si para uma turnê por 17 países.

Desde então, Raoni se tornou uma espécie de embaixador global da necessidade de preservação do meio ambiente. Entre os destinos preferidos do cacique, que ainda mora numa aldeia caiapó em Mato Grosso, está a França, onde já se encontrou com diversos presidentes, de várias orientações políticas.

O último encontro foi com Emmanuel Macron, desafeto do mandatário brasileiro, com quem Raoni esteve em maio deste ano. O francês prometeu organizar em 2020 uma cúpula internacional de povos indígenas.

Do lado de cá, a conversa é outra. Uma das promessas de campanha de Bolsonaro – que ele tem cumprido até agora – é não demarcar mais um centímetro de terras indígenas. Pelo contrário, o atual governo defende a exploração mineral das reservas já demarcadas, assim como uma maior integração de índios ao estilo de vida ocidental.

Vale ressaltar que Raoni também não tinha uma relação fácil com os governos anteriores do PT. O cacique já lutava contra o projeto da Usina de Belo Monte no final da década de 1980. Em 2011, antes do governo Dilma inaugurar a hidrelétrica – cuja construção se iniciou no mandato do presidente Lula –, ele declarou guerra. Raoni chegou a afirmar que “a presidente Dilma vai ter que me matar em frente ao Palácio do Planalto. Só então poderá construir Belo Monte.”

Com ou sem Nobel, o cacique Raoni é uma figura indispensável para a história da luta indígena no Brasil. Em um artigo para o The Guardian no começo de setembro, ele a sintetiza:

“Nós todos respiramos o mesmo ar, nós todos bebemos a mesma água. Nós vivemos nesse único planeta. Nós precisamos proteger a Terra. Se não fizermos isso, os grandes ventos virão e destruirão a floresta.

E então vocês vão temer o que nós sentimos.”

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