Produtores mostram que a agricultura na Amazônia não precisa ser destrutiva
Nova Califórnia, Rondônia | A construção de novas estradas na Amazônia geralmente vem acompanhada de desmatamento, criando paisagens de céu amplo e pastagens verdes com vacas brancas. Mas nas estradas vicinais em torno da cidade fronteiriça de Nova Califórnia, em um canto remoto do noroeste do Brasil, uma renovada cobertura vegetal desponta no horizonte.
Conforme percorremos uma estrada escorregadia e coberta de lama vermelha em uma camionete 4x4, Dielison Furtunato, nosso guia, nos mostra os açaizeiros, cujas folhas delgadas tocam os troncos robustos de castanheiras imponentes. Sob a copa, cupuaçus de gosto ácido pendem como batatas inchadas dos galhos da árvore pequena e arredondada. Embora esses trechos de floresta pareçam naturais, eles não são; possuem espécies comestíveis da flora amazônica que foram cultivadas.
Geandre Berkembrock colhe açaí usando uma peconha, tipo de tira colocada nos pés para ajudá-lo a subir na palmeira. “Eu aprendi isso sozinho. Tentei várias vezes até conseguir. Acho que tinha uns 10 anos. Nunca caí de uma palmeira”, conta ele. “Em um único dia, já cheguei a subir em até 30 árvores.”
Essas florestas existem porque o empregador de Furtunato, uma cooperativa agroflorestal local chamada Reca, transformou o plantio e a manutenção dessas árvores em uma atividade economicamente viável, um feito importante em uma época na qual o desmatamento ocorre em um ritmo alarmante. Há décadas, a pecuária é a principal atividade econômica na Amazônia, sendo responsável por 80% da perda florestal.
Os pecuaristas ficam presos em um ciclo vicioso: derrubam a floresta para formar pastagens que rapidamente esgotam os nutrientes do solo tropical. Sem nutrientes, a produção de carne por hectare diminui. Então, os criadores de gado procuram outro lugar, transformando outros trechos de floresta em pastagens até que aqueles solos também sejam destruídos. Até agora, quase um quinto da Amazônia foi desmatado. Mas como os sistemas agroflorestais requerem muito menos terra do que o gado, eles poderiam aliviar a pressão sobre o que ainda resta da floresta – se fossem mais difundidos.
O Reca, uma cooperativa fundada em 1989, mostra como isso pode ser feito. A floresta natural preserva a biodiversidade, protege o solo e a água, e sequestra carbono em suas árvores, aliviando os impactos das mudanças climáticas. Os agricultores do Reca se aproximam desse ecossistema, plantando densamente até 40 espécies em seus trechos de floresta tropical recriada.
Em 1984, Sérgio Roberto Lopes, de 60 anos, conseguiu um empréstimo com a irmã e comprou 78 hectares de terra em Nova Califórnia.
Arnoldo Berkembrock, 66 anos, e Arlete Maria Berkembrock, 68, vieram para a região de Nova Califórnia em 1986 e compraram terras em 1989. Arlete conta: “gostamos de viver no campo. Podemos nos alimentar das frutas que crescem no nosso próprio quintal, sabendo que temos acesso a alimentos mais saudáveis.”
Dielison Furtunato De Souza, de 24 anos, em sua casa no Reca. Filho de um criador de gado, o jovem escolheu a agricultura em vez da pecuária.
Jersiane Berkembrock, 24 anos, sempre ajudou a família e acompanhou seus pais nas reuniões do Reca. “Estar envolvida com a natureza é uma grande satisfação”, diz ela.
A cooperativa transforma cerca de uma dezena dessas espécies em produtos alimentícios vendidos em todo o Brasil: suco de frutas, palmito, óleos. O restante, incluindo plantas medicinais, abastece os mercados locais. Outras são plantadas simplesmente para beneficiar o solo e a vida selvagem. Parte da colheita é até mesmo exportada. O principal cultivo do Reca é o cupuaçu, um parente do cacaueiro. Suas sementes são prensadas para extração do óleo, que é comprado pelo conglomerado de cosméticos Natura, proprietária da Avon e da The Body Shop. A L’Occitane, empresa francesa de cosméticos com lojas nos Estados Unidos, compra as sementes da árvore cumaru, que confere a sua colônia Cumaru Raiz uma fragrância de baunilha e amêndoa.
As mais de 300 famílias envolvidas na cooperativa ganham cerca de cinco vezes mais a cada meio hectare por ano com seus lotes agroflorestais do que os pecuaristas locais com suas pastagens. “Trinta anos atrás, muita gente achava que o pessoal do Reca era louco”, diz Furtunato. “Ainda hoje, as pessoas pensam que os sistemas agroflorestais não fornecem um meio de vida viável. Mas sabemos que é possível.”
O próprio Furtunato é um exemplo dessa mudança. Filho de um criador de gado local, ele se afastou dos negócios da família pela visão alternativa do Reca sobre a Amazônia, que valoriza árvores em vez de pastagens, cultiva frutas em vez de criar gado.
Recuperando a terra
Paramos na casa de Maria e Raimundo de Souza, primeiros cooperados do Reca que se mudaram do nordeste do Brasil para a região em 1977. Tiveram que enfrentar a pobreza extrema e moraram em uma barraca de lona quando chegaram. “Nós sobrevivemos por causa do Reca”, relata Maria, sentada em uma cadeira de balanço em sua varanda bem cuidada, onde latas de café utilizadas para plantar flores foram colocadas na parede da casa de tábuas e ripas. “Sofremos muito, mas hoje estamos confortáveis”, diz Raimundo, um homem grisalho de botas de cano alto e boné. Ele aponta para uma mangueira no quintal sob a qual algumas das primeiras reuniões do Reca foram realizadas.
Cláudio Maretti, ex-presidente do ICMBio, instituto vinculado ao Ministério do Meio Ambiente responsável pelas unidades de conservação no Brasil, acredita que projetos agroflorestais como o Reca representam um modelo para recuperar partes da Amazônia, especialmente pastagens que foram abandonadas por não mais serem capazes de sustentar o gado, o que corresponde a mais da metade das terras desmatadas. “O sistema agroflorestal é um sistema que promove a recuperação, atrai polinizadores e animais selvagens nativos e presta serviços ecológicos”, afirma Maretti.
Ele explica que a agrofloresta também ajuda a manter os rios voadores da Amazônia – correntes de ar carregadas de umidade liberada pelas árvores no processo de transpiração, que garantem chuvas em grande parte do continente. Esses rios provavelmente desaparecerão se grande parte da floresta for derrubada.
Processamento do cupuaçu em uma fábrica. A maior parte da polpa produzida é vendida a outras empresas fabricantes de sucos e produtos derivados. O óleo das sementes da planta é usado como base para produtos cosméticos, como batons e hidratantes.
As agroflorestas também proporcionam benefícios globais. De acordo com o Projeto Drawdown, que analisa as soluções climáticas mais promissoras, os sistemas agroflorestais sequestram até 11 toneladas de carbono por acre a cada ano, oito vezes mais do que o retirado da atmosfera se fosse permitido às florestas tropicais se recuperarem sem intervenção humana.
“Isso ocorre porque nos sistemas agroflorestais, as espécies não competem com plantas daninhas, recebem fertilizantes e são irrigadas”, explica Eric Toensmeier, pesquisador sênior do Projeto Drawdown.
O fascínio da pecuária
Apesar dos evidentes benefícios dos sistemas agroflorestais, forças poderosas favorecem o gado em vez das árvores na Amazônia. Nova Califórnia, uma cidade de três mil habitantes, fica no estado de Rondônia, ao longo da rodovia BR-364, importante corredor do narcotráfico onde veículos serpenteiam para desviar dos buracos que marcam o asfalto a cada poucos metros em alguns trechos (na verdade, os buracos podem ser chamados de crateras, pois muitos são do tamanho de uma cama de casal). Serrarias alinham-se na rodovia de um lado da cidade, com nuvens de fumaça penetrante subindo de seus fornos. Com suas ruas de terra seca e fazendeiros em botas de cowboy, Nova Califórnia parece o Velho Oeste, com a crescente fama de ser uma cidade sem lei.
Nos últimos cinco anos, pelo menos 20 pessoas foram assassinadas em conflitos de terra envolvendo madeireiros locais, que estão por trás de grande parte do desmatamento ilegal na região. De acordo com relatos de jornalistas investigativos no Brasil, em uma área ao norte da cidade, próximo onde está concentrada a maioria das propriedades do Reca, pequenos agricultores foram sistematicamente expulsos sob a mira de armas, tendo suas casas saqueadas e incendiadas.
Alice Berger e seu sobrinho João Pedro Chaves são produtores de cupuaçu, açaí, rambutã, castanha-do-brasil e andiroba.
Pedro Soares, gerente do programa de mudanças climáticas do Idesam, organização não governamental, conta que esses incidentes são comuns em regiões de fronteira em toda a Amazônia. Os madeireiros intimidam os residentes, derrubam as árvores mais valiosas, ateiam fogo para abrir espaço na terra, formam pastos e se apossam de determinadas áreas por meio da grilagem, um processo que envolve a falsificação de documentos. Segundo uma lei de 1996, os proprietários de terras na Amazônia não podem desmatar mais de 20% de seus lotes, mas a grilagem, violenta e fraudulenta, permite que a floresta tropical seja derrubada em um ritmo muito mais acelerado.
Na verdade, Rondônia tem o terceiro maior índice de desmatamento na Amazônia, segundo dados do Inpe, Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. No extremo oeste do estado, onde está localizado o Reca, grandes extensões de floresta nativa ainda podem ser encontradas a alguns quilômetros da rodovia, mas estão desaparecendo rapidamente. “A pecuária está chegando a essas áreas”, diz Soares, cujo trabalho inclui fornecer suporte técnico a projetos de desenvolvimento sustentável na Amazônia, incluindo o Reca. “O Reca é uma iniciativa única – está muito à frente de cooperativas semelhantes na Amazônia – mas está sob grande pressão.”
Os agricultores do Reca sofrem incursões recorrentes em suas florestas. Jersiane Berkembrok, a filha de 24 anos de uma das famílias fundadoras do Reca, relata que no ano passado uma pessoa entrou pelos fundos da propriedade de sua irmã e começou a cortar árvores de roxinho, uma espécie cujo cerne tem cor de vinho e é valorizada para a marcenaria de alto nível. A família notificou as autoridades ambientais, mas “nada aconteceu”, conta Berkembrok.
Milhares de incêndios têm sido provocados em toda a Amazônia para limpar a terra para o gado, virando notícia em todo o mundo. Em setembro, Genecilda Lima Maia, agricultora do Reca, de 38 anos, ficou preocupada ao descobrir que um incêndio provocado por um vizinho havia se alastrado até sua propriedade. O corpo de bombeiros mais próximo fica a quase 160 quilômetros de distância, mas em resposta à constante ameaça de incêndio, o Reca adquiriu recentemente equipamentos de combate ao fogo e organizou sua própria brigada, formada pelos próprios agricultores que atuam como voluntários. O incêndio na propriedade de Maia foi um dos primeiros testes da equipe. “O caminhão-pipa chegou, todos se juntaram e conseguimos apagar”, lembra ela. Mas não antes de 2,4 hectares de árvores recém-plantadas serem destruídos.
Os incêndios foram ainda piores em 2020, e o distrito de Abunã, em Rondônia, onde está localizado o Reca, teve o terceiro maior número na Amazônia. Fábio Vailatti, que supervisiona os esforços de combate a incêndios do Reca, culpa Bolsonaro, que a certa altura sugeriu que grupos ambientalistas estavam ateando fogo para gerar publicidade. “Nunca me preocupei com incêndios no passado”, comenta Vailatti. “Tínhamos alguns todos os anos, mas eram poucos. Agora, há uma sensação de impunidade que tem levado muitas pessoas em nossa área a usar essa prática”.
Os primórdios dos sistemas agroflorestais
O ar fresco que nos recebe quando entramos no bosque de castanheiras de 25 metros de altura de Bernadete e Sérgio Lopes faz com que o dia escaldante pareça repentinamente suportável. “É como se tivéssemos ligado o ar-condicionado”, brinca Sérgio.
Ao contrário da maioria das pessoas que fundaram o Reca, Bernadete e Sérgio conseguiram estudar. Ela era técnica de enfermagem, ele professor. Na década de 1980, o casal quis voltar para o campo, deixando sua vida no sul do país em direção à fronteira amazônica. A maioria dos cooperados iniciais do Reca era agricultores sem terra de outras partes do país que deixaram para trás uma vida de pobreza pela promessa de terras baratas na época da ditadura militar, que tinha como objetivo promover a ocupação na Amazônia.
Agricultora segura um cupuaçu, principal produto de sua fazenda.
A castanha-do-brasil, também conhecida como castanha-do-pará, é muito comum na região de Nova Califórnia e cooperados do Reca colhem o fruto para comercializá-lo. A castanha que consumimos é uma semente, abrigada em um fruto de aparência semelhante a um coco.
O rambutã, também chamado de lichia-peluda, não é um dos protudos comercializados pelo Reca. Os próprios produtores vendem as frutas diretamente para para pequenos e grandes mercados em Porto Velho e Rio Branco.
Com sua coloração roxa, o açaí é amplamente utilizado em pratos típicos e bebidas. A fruta é repleta de antioxidantes que ajudam a proteger as células humanas de doenças.
As milhares de pessoas que migraram para a região nas décadas de 1970 e 1980 executavam, sem saber, o plano do governo de impulsionar a economia nacional explorando os recursos da Amazônia, que na época era uma floresta tropical intacta. Os primeiros assentados receberam empréstimos do governo para derrubar a floresta e, em alguns casos, foram obrigados a desmatar como condição para receberem terras gratuitamente. Eles plantaram arroz e outras culturas anuais que conheciam das comunidades agrícolas das quais saíram, mas a produtividade logo diminuiu nos solos pobres da floresta tropical. Muitos, incluindo aqueles que mais tarde formaram o Reca, ficaram desamparados.
No início, Sérgio colocava nas costas as sacas de arroz que cultivava e as carregava por cerca de 2,5 quilômetros por uma trilha até a estrada, ainda não pavimentada, onde os compradores as recolhiam. Na época, a estrada ficava praticamente intransitável durante a estação chuvosa, isolando a comunidade do resto do mundo — e impossibilitando-a de comercializar suas safras — por quase metade do ano. A eletricidade chegou em 1987, embora por apenas quatro horas por dia. O serviço de telefonia só chegou aos redores da cidade depois da virada do milênio.
A família Lopes sobreviveu a diversos surtos de malária, mas muitos de seus vizinhos sucumbiram à doença. Tomados por dificuldades, os primeiros assentados partiram em massa. “As pessoas venderam suas terras pelo preço de uma passagem de ônibus para casa”, diz Sérgio. “Eles aceitavam qualquer coisa para ir embora. Percebemos que tínhamos que fazer algo”.
Por isso, alguns dos primeiros moradores de Nova Califórnia começaram a colher plantas silvestres após conversas com os seringueiros locais, membros de comunidades florestais que se difundiram pela Amazônia no século 19. Algumas famílias de assentados começaram a organizar grupos de trabalho, ajudando uns aos outros a plantar essas espécies em suas terras degradadas, e assim nasceu a cooperativa, que atualmente está organizada em dez associações de bairro. Em 1989, uma instituição filantrópica católica doou dinheiro para que as 86 famílias fundadoras do Reca ampliassem suas plantações de árvores e comprassem equipamentos de processamento. A grande chance veio em 2003, quando eles fecharam um contrato com a empresa de cosméticos Natura.
Um sistema de compostagem que processa os resíduos sólidos provenientes das fazendas do Reca produz fertilizante orgânico que volta para a floresta e também é comercializado externamente. Nesta foto, Furtunato inspeciona o composto.
Conforme as vendas aumentaram, os cooperados reformaram suas casas de barro e palha e construíram estruturas de alvenaria. Na década de 1990, o grupo construiu um posto de saúde, uma escola e uma emissora de rádio em Nova Califórnia. Um auditório foi construído para eventos comunitários e aulas para adultos, que variam desde gestão de negócios a agricultura orgânica e empoderamento feminino. Quando o Programa de Desenvolvimento da ONU concedeu ao Reca seu Prêmio Equador em 2010, eles notaram que a cooperativa não apenas havia preenchido muitas das “lacunas de serviço social deixadas pelo governo”, como também “era a fonte da maioria dos investimentos na infraestrutura local”.
Atualmente, na sede do Reca, na BR-364, trabalhadores equipados com máscaras e redes para cabelo separam a polpa comestível do cupuaçu das sementes que são prensadas para extração do óleo, utilizado em cremes faciais e géis de banho. Na loja da cooperativa, os moradores da comunidade podem comprar produtos diretamente do Reca: mel, ovos, chips de mandioca, castanha-do-brasil com cobertura de chocolate e uma variedade de vinhos e licores caseiros. Hoje, o Reca emprega 70 pessoas e sua receita anual é de cerca de R$ 10 milhões.
O Reca não é o único projeto do tipo na Amazônia. Há uma série de iniciativas agroflorestais que trabalham com uma combinação diversificada de espécies nativas – não há um acompanhamento efetivo do governo, por isso é difícil quantificar a disseminação ou o impacto econômico desses projetos – mas o Reca é um dos maiores e mais estudados. Cerca de 1,5 mil representantes de ONGs, funcionários do governo, estudantes e pesquisadores visitavam o local todos os anos, incluindo Jéssica Puhl Croda, engenheira florestal que estudou o impacto ecológico do Reca.
Karen Ana Júlia Lemos Araujo, 20 anos, é sócia de Geandre Berkembrock e auxilia na produção de cupuaçu.
Ela diz que os sistemas agroflorestais mantêm a fertilidade do solo e a qualidade da água quase tão bem quanto as florestas nativas da Amazônia. Eles não apresentam o mesmo nível de biodiversidade – um hectare de floresta virgem pode abrigar centenas de espécies de plantas – mas ainda assim são o habitat de uma infinidade de insetos, aves e animais selvagens nativos. “A diversidade de espécies cria um equilíbrio que mantém as pragas e doenças sob controle”, explica Croda.
Sistemas agroflorestais considerados não tão vantajosos
Os 30 milhões de habitantes da bacia amazônica têm dois caminhos pela frente. Podem desenvolver uma economia baseada na floresta em pé ou uma que a transforme em uma fazenda tropical. A balança pende muito para a segunda opção.
Os sistemas agroflorestais podem ser mais lucrativos por hectare de terra do que o gado, mas Judson Valentim, pesquisador da Embrapa, cita uma longa lista de razões pelas quais não são mais amplamente adotados: não há subsídios do governo; não há assessoria técnica e capacitação amplamente disponível; há pouca infraestrutura e redes de distribuição em comparação com a indústria pecuária; e o retorno do investimento é mais demorado, dificultando a obtenção de financiamento. “O gado é visto como uma poupança confiável”, observa ele. “Se você tem uma vaca este ano, no próximo, terá duas.”
As normas culturais também influenciam. A criação de gado simboliza a saída de um estilo de vida de subsistência. “O gado está associado ao orgulho”, diz Valentim, que vem de uma família de agricultores amazônicos e passou a maior parte da vida na região. “O pecuarista é visto como alguém que trabalha muito e é próspero. Uma pessoa com uma floresta ao redor de sua casa é vista como preguiçosa.”
Nos primeiros anos do Reca, a criação de gado não era uma grande tentação porque a indústria ainda não havia se consolidado na região. Mas, à medida que as estradas foram sendo construídas, os criadores de gado se mudaram, queimando e limpando a floresta ao redor. Hoje, as florestas do Reca estão cada vez mais cercadas por um mar de pastos. Hamilton Condack, o atual presidente da cooperativa, revela que, à medida que o valor das exportações de carne bovina disparou nos últimos anos, alguns dos cooperados até se tornaram pecuaristas. “Não gosto, mas é compreensível”, diz ele. “Por aqui, se você tem uma vaca prenhe, há cinco pessoas na sua porta querendo comprar o bezerro antes de ele nascer.” O caminho da pecuária, salienta ele, é “sedutor”.
Berkembrok reconhece que o Reca precisará seguir buscando mercados novos e mais bem remunerados para os produtos da cooperativa se quiser que os sistemas agroflorestais continuem sendo atrativos para a comunidade. “É uma batalha contínua para demonstrar que podemos sobreviver e ter uma boa qualidade de vida sem cortar e queimar a floresta”, diz ela.
Túlio Lemos, pecuarista de Nova Califórnia proprietário de cinco mil cabeças de gado e mais de 24 mil hectares de terra, tem uma visão diferente da economia dos sistemas agroflorestais. Ele apoia a ideia de plantar árvores, mas não acredita que haja um mercado grande o suficiente para que a economia amazônica seja sustentada por produtos florestais. “A pecuária é um ramo de negócio escalonável – não importa se você tem 100 ou 100 mil vacas, sempre terá alguém para quem vender a carne”, afirma ele. Mas com as frutas, “40 hectares são suficientes para atender o mercado”.
Ele está exagerando, mas é verdade que o mercado global de carne bovina, que movimenta US$ 300 bilhões, é muito maior do que o mercado de safras como o açaí – o principal produto de exportação agroflorestal da Amazônia – que vale apenas cerca de US$ 1 bilhão. (Ao contrário do que acontece com o açaí colhido em algumas áreas da Amazônia, o Reca não tolera o trabalho infantil – seus produtos são certificados pela União para o Biocomércio Ético e, apesar de as crianças do Reca estarem envolvidas em atividades agrícolas “como uma forma de aprendizagem”, ressalta Condack, “não há exploração de trabalho infantil aqui”.)
Lemos, no entanto, não considera a arma secreta dos sistemas agroflorestais: os consumidores estão dispostos a pagar mais por produtos que promovem a biodiversidade e sequestram carbono. A Natura, por exemplo, paga à cooperativa o dobro do valor de mercado pelo óleo de cupuaçu, cobrindo esse custo por meio de um programa de crédito de carbono baseado no trabalho de reflorestamento do Reca.
“Pagamos para que produzam ingredientes para nós e mantenham a floresta em pé – é um serviço que eles prestam ao planeta”, diz Luciana Villa Nova, gestora da Natura que supervisiona as cadeias produtivas florestais. A empresa compra um total de 39 ingredientes florestais de 34 comunidades amazônicas. “Acredito que este seja o futuro da Amazônia.”
Hamilton Condack, 51, é diretor e gerente comercial do Reca. Ele cultiva cupuaçu, açaí e andiroba. Também planta frutas locais, como graviola, abacaxi e tangerina.
Um futuro diferente
Esse futuro também dependerá das próximas gerações, como Furtunato. Os agricultores do Reca estão envelhecendo e, embora alguns de seus filhos estejam dando continuidade ao trabalho, a cooperativa atrai apenas alguns novos membros. Furtunato comprou recentemente um hectare de terras degradadas, onde em breve plantará sua própria floresta de alimentos.
Ele passou a infância em uma região próxima dali e morava em um barraco de chão de terra com sua família, cuja atividade era a agricultura de subsistência. Sua situação melhorou em meados da década de 2000, quando o governo criou linhas de crédito para ajudar moradores pobres da Amazônia a comprar gado, permitindo que a família obtivesse um pequeno rebanho. À medida que o rebanho crescia, a condição econômica da família melhorava. Muitos de seus vizinhos também aproveitaram o financiamento. Quando Furtunato se matriculou no colégio do Reca para cursar o ensino médio em 2010, onde estudaria ecologia e agricultura orgânica, enormes trechos de floresta já haviam desaparecido. “Aconteceu do dia para noite”, conta ele. “O incentivo para a pecuária era muito grande.”
Estamos sentados ao redor de uma mesa de plástico na varanda do restaurante Bodega do Norte; não há muito no cardápio além de arroz, feijão e carne. Na escola, Furtunato ficou fascinado pelo Reca. Ele voltou para casa por alguns anos após se formar e então conseguiu perceber onde realmente era o seu lugar. “Sinto falta da minha família, mas não do lugar. Viver lá é horrível – tem muito incêndio, fumaça e pesticidas.” Os agrotóxicos, explica ele, são pulverizados por aviões para desfolhar a floresta em preparação para o desmatamento. “Cheguei à conclusão que não era o que eu queria para mim.”