Ação humana é responsável por quase todas as transformações nos biomas brasileiros, diz Tasso Azevedo

Área de garimpo em terras indígenas aumentou 495% em 10 anos; 20% do território brasileiro queimou pelo menos uma vez desde 1985; agropecuária avançou 81 milhões de hectares em 36 anos – em entrevista, coordenador geral analisa dados do MapBiomas.

Helicóptero sobrevoa garimpo ilegal durante operação do Ibama nos parques nacionais do Jamanxin e Rio Novo, no Pará, em novembro de 2018. Em dez anos, área de garimpo avançou 495% em terras indígenas e 301% em unidades de conservação.

Foto de Felipe Werneck, Ibama
Por Kevin Damasio
Publicado 22 de set. de 2021, 19:18 BRT, Atualizado 9 de dez. de 2021, 10:39 BRT

O Brasil perdeu 82 milhões de hectares de vegetação nativa de 1985 a 2020, enquanto a agropecuária avançou 81 milhões de hectares – um acréscimo de 44,6%. No período, houve perda da cobertura original em 24 das 27 unidades federativas, com destaque para Rondônia (queda de 28%), Mato Grosso (24%) e Maranhão (16%). Na Mata Atlântica, dois terços do bioma são ocupados pela agropecuária.          

Terras indígenas e unidades de conservação ainda atuam como escudos contra o desmatamento, mas a exploração avança sobre essas áreas protegidas.

Em 36 anos, a mineração sextuplicou no Brasil: de 31 mil ha para 206 mil ha. Quase três quartos da atividade no país ocorrem na Amazônia. Dos 149 mil hectares minerados no bioma, 101 mil ha (67,6%) consistem em garimpo. De 2010 a 2020, a atividade se expandiu ilegalmente para terras indígenas (495% de alta) e unidades de conservação (301%).

A cada ano, uma área equivalente ao território da Inglaterra, 150 mil km2, é queimada no Brasil – 35% do fogo ocorre por ação humana. O Pantanal foi o bioma que mais sofreu com incêndios e queimadas, com 57,5% do território afetado desde 1985, seguido pelo Cerrado (36%) e pela Amazônia (16,4%). E o mais preocupante em três décadas e meia: nesse um quinto de área queimada no país, 61% já queimou mais de uma vez e 65% da área consistia em vegetação nativa. 

O impacto também se estende para as bacias hidrográficas, neste país que guarda 12% das reservas de água doce do planeta. Desde o início dos anos 1990, o Brasil perdeu 15,7% da superfície de água: de 20 milhões para 16,6 milhões de hectares. Os destaques negativos são Mato Grosso do Sul, com 57% de redução dos corpos hídricos, sobretudo no Pantanal e na bacia do Paraguai, seguido por Mato Grosso e Minas Gerais.

Tasso Azevedo – engenheiro florestal formado pela Universidade de São Paulo e pesquisador visitante da Universidade ...

Tasso Azevedo – engenheiro florestal formado pela Universidade de São Paulo e pesquisador visitante da Universidade de Princeton, nos EUA – durante audiência da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado em 2018.

Foto de Pedro França, Agência Senado

Os dados são fruto das primeiras análises da série Brasil Revelado, do MapBiomas, iniciativa do Observatório do Clima e composta por uma rede colaborativa de diversas instituições de pesquisa. Desde agosto, o projeto lança uma série de mapeamentos que envolvem, por exemplo, o uso e a cobertura do solo, a água, o fogo e a mineração em todos os biomas brasileiros, no período de 1985 a 2020. Até novembro, pesquisadores destrincharão as descobertas preliminares do monitoramento do MapBiomas, em transmissões no YouTube.

Quem está à frente dessa empreitada é Tasso Azevedo, engenheiro florestal formado pela Universidade de São Paulo e pesquisador visitante da Universidade de Princeton, nos EUA. Azevedo trabalhou por uma década no Ministério do Meio Ambiente – dirigiu o Programa Nacional de Florestas (2003-2006) e o Serviço Florestal Brasileiro (2006-2009) e foi conselheiro sênior da pasta de 2009 a 2012. Desde 2013, coordena o Sistema de Estimativas de Emissões e Reduções de Gases de Efeito Estufa (SEEG), do Observatório do Clima. Fundou o MapBiomas em 2015, do qual é coordenador geral. Desde 2016, a rede publica monitoramentos anuais de uso e cobertura do solo, além de alertas de desmatamento, degradação e regeneração. Em agosto, lançou as plataformas MapBiomas Fogo, Água e Mineração. Em meio à maratona de lançamentos, Tasso Azevedo concedeu uma entrevista por videoconferência para a National Geographic.

Kevin Damasio: Os resultados do MapBiomas Fogo, Água, Mineração e da Coleção 6, de cobertura e uso do solo, são impressionantes. O que as descobertas que fizeram a partir dessas séries históricas dizem sobre a responsabilidade humana na transformação dos biomas e dos ecossistemas?

Tasso Azevedo: A primeira coisa é que praticamente todas as transformações que vemos estão acontecendo por ação humana, direta ou indireta. O Brasil é um território instável atualmente, quase um terço sofreu modificações, conversões do uso e cobertura da terra nos últimos 36 anos, que avaliamos. Essas transformações são basicamente causadas por nós mesmos.

Tem alguma coisa que não – quase irrisória em termos de área. Por exemplo, o que acontece no caso dos mangues: a variação de maré também causa variações dos mangues, ou mesmo de praias.

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    “Praticamente todas as transformações que vemos estão acontecendo por ação humana, direta ou indireta”

    por Tasso Azevedo
    Coordenador geral e fundador do MapBiomas

    Mas, em geral, quando você pega as grandes transformações que acontecem, por exemplo, na perda de floresta, conversão para uso agrícola, na urbanização que avança sobre áreas rurais – são todas transformações pautadas pela ação humana. E mesmo aquelas transformações que não são diretas, como a redução do volume de água, é indiretamente impactada pela ação humana.

    Por exemplo, a redução do volume de água no Pantanal, óbvio, tem um pouco de influência da mudança da temperatura do Atlântico – uma espécie de El Niño. Sem dúvida, isso deve ter algum impacto. Mas, mais importante que isso, é a mudança climática, causada por nós, que está prolongando períodos secos e reduzindo os períodos úmidos, associados ao desmatamento na Amazônia, que reduz a quantidade de floresta que tem para evapotranspirar e gerar os rios voadores, etc. Portanto, tem menos água. E também por estar desprotegendo as matas ciliares, que faz com que não esteja conseguindo armazenar bem a água. A água não está tendo o ritmo de reciclagem que precisa.

    Na questão fogo, poderia ser fogo natural? Sim. Mas, no caso do Brasil, não é. Fogo na Amazônia, no Pantanal e na Mata Atlântica não é natural. Pode ter fogo natural como um evento mais frequente no caso do Cerrado. Mas mesmo no Cerrado estamos com uma frequência de fogo muito maior, mais intenso e mais abrangente. Isso é causa humana. Ao ver esse mapa, identificamos as causas. Onde está pegando fogo? O fogo, via de regra, começa em áreas agrícolas ou recém-desmatadas e daí parte para dentro das áreas naturais. De novo: é a ação humana que está causando. O que não é ação humana nessas transformações é a exceção, e não o contrário.

    K.D.: Qual é a importância de ter uma análise histórica disso, para identificar o que está ocorrendo e a influência antrópica nesses eventos extremos climáticos, que vivenciamos cada vez mais no Brasil?

    T.A.: Ao olhar a história, conseguimos observar várias relações possíveis. Nem exploramos tanto isso, porque a ideia do MapBiomas é produzir e disponibilizar o dado rapidamente, de forma que o maior número de pessoas possível possa trabalhar em cima desses dados e fazer as necessárias análises. Não fizemos ainda um cruzamento entre as tendências que encontramos com a água e com as mudanças de uso da terra que aconteceram nas bacias, o que é perfeitamente possível. Os dois dados estão disponíveis e é um estudo bem interessante de fazer. Também tem grupos que fizeram trabalhos de analisar a regeneração da floresta – quanto está regenerando, como, qual é o critério de regeneração. Agora, na questão do clima, não há dúvida. O próprio relatório do IPCC deixa muito claro sobre isso. Nós estamos causando e está aumentando. No caso do Brasil, aumenta mais do que a média do mundo. A temperatura média de aumento global é de 1,07, 1,1 grau, e no Brasil já está próximo de 2 graus. Essas mudanças estão acontecendo em uma velocidade diferente em vários lugares do mundo.

    Por exemplo, fizemos um experimento recentemente em Princeton, com o pessoal que trabalha com modelagem. Rodamos o modelo climático do mundo sem a Amazônia. O que acontece? Se tira a Amazônia, a temperatura global aumenta em 0,25 e a no Brasil em mais 2 graus. O Brasil perde 25% da chuva. É uma soma de coisas que mostram que essas intervenções que estamos fazendo têm um impacto global, mas principalmente local.

    K.D.: Essa crise hídrica que vivemos neste ano mostra como faz falta a chuva que vem da Amazônia para o Centro-Oeste e o Sudeste. Um estudo da Luciana Gatti, do Inpe, apontou que algumas partes da Amazônia já estão emitindo mais, associado ao desmatamento que resulta em menos evapotranspiração e chuva para o resto do país. Como você observa esse cenário?

    T.A.: Tem dois fenômenos acontecendo. Um fenômeno que é: entre o que a gente emite e aquilo que captura, estamos próximos do zero e, em algumas regiões, já é negativo, estamos emitindo mais do que capturando. Agora, mesmo quando pega só a floresta, sem considerar o desmatamento, esse é um fenômeno que foi identificado. O professor Paulo Artaxo faz bastante pesquisa nessa área, a Luciana e outros também, que mostram que a floresta em pé, no geral, também está tendendo a zero, por causa da mortalidade [das árvores], da degradação e de outros aspectos que estão fazendo com que a floresta perca sua capacidade de absorver mais carbono do que emitir.

    K.D.: No MapBiomas Fogo, vocês identificaram que 61% da área queimada no país já queimou mais de uma vez. Por que esse dado chamou a atenção?

    T.A.: Foi queimado 20% do Brasil. Desse total, 61% queimou mais de uma vez. E ficamos muito impressionados. Na Amazônia, a gente achava que ia predominar mesmo o que queimou uma vez. Mas, de fato, predomina o que queimou mais de uma vez na Amazônia, em torno de 65%. E aí tem duas coisas. Uma é porque, quando se queima área que foi recém-desmatada, essa área acaba queimando mais vezes, por muitos anos. Mas também porque a floresta está recebendo fogo mais de uma vez.

    K.D.: Qual é a consequência dessa recorrência do fogo para a capacidade de regeneração dos biomas, como o Pantanal, a Amazônia e o Cerrado? O que já temos visto disso na capacidade de regeneração, de resiliência dos ecossistemas?

    T.A.: A vegetação do Cerrado tem uma capacidade adaptativa melhor ao fogo. Mas, mesmo no Cerrado, está tendo focos em dimensões e frequências maiores do que deveria ser o natural. Mais grave é o caso da Amazônia, do Pantanal, da Mata Atlântica. São ambientes em que o fogo é uma coisa mais rara, e deveria acontecer, se acontecer, em intervalos muito grandes, um evento extremamente raro, o que não é o caso. O que os experimentos mostram na Amazônia é que, se tem fogo uma vez na floresta, em cerca de dez anos tem uma recuperação paulatina. Se tiver duas vezes fogo nesse intervalo de dez anos, entre a primeira e a segunda, esse período dobra, se estende para 20 anos. E se tiver três, a gente ainda não sabe, porque em nenhum dos experimentos já chegou próximo disso. Mas há indicativos de que isso poderia significar que a floresta na Amazônia não conseguiria mais voltar ao estágio anterior. Então, esse é o dilema de agora para a questão do fogo. A Mata Atlântica é uma situação um pouco parecida com a da Amazônia, mas hoje tem menos fogo sobre vegetação nativa, porque tem menos conversão [de floresta para pasto]. No momento da conversão é que vem o fogo – na Amazônia, vemos isso claramente.

    O caso do Pantanal é um pouco diferente. Tem uma questão muito importante para os animais. Quando pega fogo, o negócio é muito rápido, porque aquilo é aberto e vai se espalhar rapidamente. A planta se recupera normalmente, mas os animais morrem aos montes. Quando acaba o fogo, não tem o que comer e morrem de fome. Para os animais, é um negócio bem dramático. Além disso, no caso do Pantanal, o fogo vai por baixo da terra também, então prejudica bastante a microbiologia do solo, a dinâmica. Esse processo de cheia e vazante faz com que se acumule uma matéria orgânica nos lugares onde a água subiu e depois desceu. Aí vem uma seca forte, e aquilo fica seco, mas com um monte de matéria orgânica no solo – é isso que pega fogo. É um tema para ter atenção.

    K.D.: As séries históricas mostram que os anos 1990 foram a década mais crítica em desmatamento e queimadas. Nos últimos anos, vínhamos bem no controle do desmatamento, mas, a partir de 2012, começou a ter um novo recrudescimento. Nos últimos dois, três anos, tem piorado numa escala muito acelerada. Nessa conjuntura da política brasileira e da ascensão do desmatamento e das queimadas, podemos caminhar para mais uma década tão crítica, como foram os anos 1990?

    T.A.: Eu acho que a gente só não soltou mais porque tem muitas amarras que foram feitas na gestão das políticas públicas desde lá. Tivemos mudança no Código Florestal. Temos sistemas de monitoramento que mostram os dados em tempo real, então a sociedade reage rápido. Isso é o que está segurando. Então, voltar aos níveis dos anos 1990, passando de 20 mil km2, é uma coisa muito improvável de acontecer no Brasil. Não dá para chegar nesse ponto, porque tem uma reação forte. É o limite em que estamos. Agora, mesmo assim, sendo 1 milhão de hectares, ou 10 mil quilômetros ao ano, é o dobro do segundo país que mais desmata, posição dividida entre o Congo e a Indonésia. O dobro, isso só da Amazônia, mesmo falando de um desmatamento bem menor do que acontecia naquela época.

    Devia ser uma coisa totalmente inaceitável. Para mim, é um pouco parecido com a questão da inflação. A gente não vai voltar a ter inflação de mil por cento ao ano. Agora, ter uma inflação de 10% ao ano, 12%, 15%, é um negócio absurdo, inaceitável. Tanto que estamos com 7% e está um escândalo. No desmatamento, é a mesma coisa. Já estamos em outra fase. Não dá para comparar com os 20 mil de antes.

    Por que é um escândalo? É um escândalo porque já foram 4 mil [2012] e agora está em 10 mil. Parece que desaprendemos a lição. Sabemos reduzir o desmatamento, mas precisamos ter a decisão de fazer. Se tem uma coisa diferente nesse momento é um comportamento importante de uma parte significativa do setor empresarial, econômico, de que esse é um tema fundamental para o Brasil também e que performar bem nessa área faz parte do jogo. Essa é uma das coisas que está ajudando a frear e colocar as coisas em outro patamar de discussão. Então, tem a Coalizão Clima, Floresta e Agricultura e outras iniciativas que estão nesse sentido de aproximar aqueles que são agentes da destruição, para serem agentes de um Brasil como exemplo de quem faz certo, não de quem está descuidando.

    K.D.: No atual governo, o Brasil perdeu a representatividade nas discussões da crise climática. Estamos nos aproximando da COP 26. Pensando nas metas do Brasil no Acordo de Paris e na conjuntura atual, o que precisa ser feito emergencialmente para as políticas públicas, apesar da atual ausência de política climática e ambiental, para reverter, frear ou cumprir objetivos como zerar o desmatamento ilegal?

    T.A.: O Brasil é o quinto maior emissor de gases de efeito estufa do planeta. Só fica atrás dos Estados Unidos, da China, da Rússia e da Índia. E a gente o é por conta da área rural, do que se chama de uso da terra. As mudanças da terra, que incluem o desmatamento, respondem por metade das nossas emissões, mais uns 21% vem das atividades agropecuárias – fertilizantes, animais, etc. Então, esse grupo junto é a área onde se tem que trabalhar com muito afinco. Eu diria que a primeira coisa é acabar com desmatamento. O desmatamento tem até 98% de indício de ilegalidade no Brasil. Não dá para conviver com uma atividade que é ilegal, que representa 1% das propriedades onde tem desmatamento. Nas outras 99% não tem. A quem interessa defender que se desmate por causa de 1%, se tem 99% que no ano passado, por exemplo, não desmataram? Acho que tem um exercício que a gente, como sociedade, tem que fazer e acabar com o desmatamento. É a primeira missão, porque cortaria as nossas emissões drasticamente. Vimos pela experiência do próximo MapBiomas que, quando para de desmatar, ou diminui o desmatamento, aumenta a regeneração, mesmo em áreas abandonadas. As sementes regeneram. E aí, se não tiver desmatamento nem de floresta secundária, isso tende a voltar e acrescentar. Além da gente não ter a emissão, teria mais remoção.

    O segundo tema é o que faremos com as nossas práticas agrícolas, em especial em relação às pastagens. No Brasil, existe uma parcela grande de pastagens com algum grau de degradação. Significa que estão perdendo carbono, ou seja, emitindo para a atmosfera. Quando se faz uma recuperação da pastagem, ela não só passa a capturar carbono, o que é muito importante, como permite ter mais animais em um menor espaço. Então, você concentra mais. O nosso rebanho tem 1,2 cabeças por hectare; podemos ir, sem grandes malabarismos, para dois ou três animais por hectare. Isso faria com que diminuísse bastante a demanda por terra para essa atividade. Mais terra poderia, por exemplo, ser alocada para agricultura, sem ter que pressionar as florestas.

    Eu diria que esses dois aspectos são os absolutamente fundamentais: acabar com o desmatamento e deixar a floresta regenerar é o tema central, e as boas práticas agrícolas, de recuperação de pastagem.

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