Pantanal: último grande refúgio de fauna do Brasil tem futuro incerto

Com índices de chuvas cada vez menores, maior área úmida do mundo pode tornar-se um quase deserto. Reportagem acompanhou a última temporada de incêndios e conversou com pantaneiros e pesquisadores sobre o que ainda pode ser feito.

Pela primeira vez desde sua construção, em 1965, as vigas de sustentação da ponte Marechal Rondon, em Cáceres (MT), ficaram completamente expostas devido ao baixo nível do rio Paraguai.

Foto de Rogério Florentino
Por Juliana Arini
fotos de Juliana Arini e Rogério Florentino
Publicado 12 de nov. de 2021, 09:28 BRT

De Porto Jofre, Poconé e Cáceres, em Mato Grosso | O Pantanal é um bioma que se originou de um rio, o Paraguai. Portanto, se há algo errado nesse rio, todo o bioma vai mal. E a situação desse curso de água em Cáceres, a 220 km da capital de Mato Grosso, é um sinal de emergência. Na ponte Marechal Rondon, a cena é catastrófica para a maior área úmida do mundo, com 195,7 km2, parte de um dos maiores sistemas hidrológicos, a Bacia do Paraná/Paraguai. Com chuvas irregulares há três anos, pesquisadores alertam sobre o que poderá acontecer se nada for feito.

As vigas de sustentação da ponte são vistas pela primeira vez desde a sua construção, em 1965. Ali, o pequeno barco de alumínio mal navega entre tantos bancos de areia. Na maior parte de seu leito, o antes gigante Paraguai não cobre os joelhos de quem tenta atravessá-lo. Uma tempestade de poeira – algo cada vez mais corriqueiro na região – silencia um grupo que faz um churrasco no meio do rio. Como se caçoassem da doma das águas, os homens rapidamente retomam à churrasqueira assim que o vento desaparece.

Em minutos, um pequeno incêndio surge na margem esquerda do rio, na forma de um redemoinho de fogo. Mas nem a ventania ou o fogo interrompem por completo a população que busca algum alívio para o calor de 40ºC daquela tarde de outubro, um dos meses mais quentes do Pantanal.  

A grande praia que alegra a população é resultado da pior seca já registrada no ponto conhecido como Tramo Norte do rio Paraguai, entre as cidades de Corumbá, em Mato Grosso do Sul, e Cáceres, Mato Grosso. A seca nessa região é um alerta importante para quem não acredita nos sinais de esgotamento do bioma.

A falta de chuvas é um dos primeiros problemas. O bioma – que conecta três países: Brasil, Bolívia e Paraguai – padece há três anos sem chuvas regulares. Estudos indicam que a região enfrenta a pior seca dos últimos 50 anos.

[Relacionado: Por que o Brasil secou?]

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    Bombeiros combatem fogo no Pantanal.

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    Imagens de animais mortos são cada vez mais corriqueiras no Pantanal.

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    Fogo consome o Pantanal próximo ao km 35 da rodovia Transpantaneira, em agosto de 2021.

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    Nem o pouco de água que começa a cair em outubro pode ser considerado uma boa notícia. Até o dia 20 do mês passado, as chuvas em Cuiabá, capital de Mato Grosso, foram 12% abaixo da média histórica de 30 anos. Em Cáceres, havia chovido 39% abaixo da média história para o mês. Na região de Chapada dos Guimarães, 17% a menos. Em Poconé a situação é menos crítica, com 7% abaixo da média histórica.

    A seca prolongada é um problema para todo Pantanal, pois, do ponto de vista geográfico, o bioma não deveria existir. “Toda parte central de um continente tende a ser semiárido, porque está longe do efeito da costa dos oceanos”, explica Cátia Nunes Cunha, pesquisadora do Instituto Nacional de Áreas Úmidas (INAU), em entrevista à reportagem. “O Pantanal existe porque é uma situação geomorfológica, seus rios transbordam devido ao estreitamento da foz do rio Apa, já em Porto Murtinho, em Mato Grosso do Sul.”

    A seca ali preocupa devido à importância ambiental da área para o Pantanal. É nessa região que nascem 70% das águas que formam a área alagada, que normalmente não recebe muitas chuvas dentro dela.

    “O balanço hídrico entre o que chove e o que evapora no Pantanal já é negativo naturalmente”, explica Ibraim Fantin, engenheiro sanitário e ambiental e pesquisador de recursos hídricos da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), em entrevista à reportagem. “Como o bioma inunda? É justamente porque as chuvas vêm da parte alta da bacia, escoam nos rios e, quando chegam à planície pela falta de declividade, levam o rio ao transbordamento lateral. Esse é o Pantanal, uma esponja que inunda. Esta é a função de uma área úmida: concentrar água.”

    Mudanças climáticas

    Os cientistas ainda são reticentes em apontar a crise climática como única explicação para a seca dos últimos anos. Mas se o Pantanal é uma sinfonia orquestrada pelo relevo e o clima, com o ritmo das águas ditando a vida da flora e da fauna, já podemos afirmar que foi o dedo do homem que criou os primeiros ruídos.

    O alerta dos cientistas do clima para o futuro do Pantanal também é pouco animador. Até o final do século, a emissão de toneladas de gases que aquecem o planeta impactará o elemento mais vital para a existência do Pantanal, a chuva. E os estudos mostram menos chuvas principalmente na porção norte do bioma, tão fundamental para os pulsos de inundações.

     “Seria bom que os pantaneiros trocassem conhecimento com os povos do semiárido, como do Ceará. As pessoas vão precisar viver com menos chuva nas próximas décadas. Ali eles têm iniciativas como o Monitor de Secas, que presta um grande apoio à população”, aconselha Walter Collischoon, pesquisador do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS), que lidera estudos de modelagens climáticas e hidrológicas para o Pantanal e todo o continente desde 1999. 

    Segundo Collischoon, mais de 25 estudos sobre o possível efeito das mudanças do clima no planeta mostram que grande parte do Pantanal terá perda no volume de água nos rios devido a confluência de menos chuvas e aumento da evaporação. Quando se analisa a atual situação do rio Paraguai em seu Tramo Norte, é difícil imaginar que ele poderá ter ainda menos água. 

    “Fizemos um levantamento de vários cenários possíveis, mas, nessa região, os efeitos globais do aquecimento global, somados à degradação ambiental, serão sentidos com mais força”, diz o pesquisador.

    O último relatório (AR6) do IPCC também indica redução de chuvas para o Pantanal. Considerando um cenário otimista, de aumento da temperatura de 1,5ºC até ao final deste século em relação aos níveis pré-industriais, haverá redução das chuvas nas latitudes entre 5 e 20 graus da porção sul do planeta – o Pantanal está entre as latitudes 15º e 22º Sul. 

    No estudo liderado por Collischoon, as análises também mostram que existe um entendimento geral entre os cientistas de que a região da sub-bacia do Alto Paraguai – entre Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia, e Cuiabá, no Brasil – receberá menos precipitação no futuro. 

    Para os cientistas, isso tudo pode ser traduzido em um futuro com mais secas, fogo e impactos na pesca e na pecuária. “Teremos problemas com a pesca, o turismo”, diz Collischoon. “Menos pesca, menos fauna, menos tudo que se conhece por Pantanal.” 

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        Lourenço Pereira Leite é pescador tradicional, nascido às margens do rio Sapetuba, em uma comunidade ribeirinha do Pantanal. "Foi a pior temporada de pesca dos meus 50 anos no rio. Eu nunca vi uma seca tão forte", disse.

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        "Já teve seca assim, quando eu era criança, me lembro bem. Meu pai tinha que fazer uma cacimba de água para o gado, se não morria tudo. E os bichos do Pantanal acabavam bebendo ali também", diz seu Tutu, de 87 anos, um dos mais antigos fazendeiros na região da Transpantaneira em Poconé (MT).

        À direita: Acima:

        O pescador Edésio de Oliveira, integrante da colônia Z8, de Porto Jofre, em Mato Grosso, é testemunha do desastre ambiental que foi a construção da UHE Manso. "O rio não encheu mais, e daí acabou o peixe. Quanto tem água, tem peixe, ele sobe o rio, vem lá das baías", diz.

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        Turistas fazem um churrasco praticamente no meio do rio Paraguai.

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        Mais seca, mais fogo 

        Na região da estrada Transpantaneira, em Poconé, a 300 quilômetros da capital mato-grossense, é possível compreender o impacto da dinâmica de menos água, mais fogo e menos fauna. O município abriga três importantes unidades de conservação: o Parque Nacional do Pantanal, a Estrada Parque Transpantaneira e o Parque Estadual do Encontro das Águas. A rica fauna da região a fez ganhar status de um dos melhores locais do mundo para o turismo de observação de onças-pintadas. Mas a seca e os incêndios recorrentes têm levado os animais ao esgotamento. 

        Poconé foi o município campeão de queimadas em agosto de 2020, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). E pior: a fauna não tinha sequer se recuperado dos incêndios que consumiram 30% do Pantanal no ano passado quando enfrentou novos episódios de fogo em 2021. Isso somado a uma estiagem muito mais rigorosa.

        O Parque Encontro das Águas voltou a perder áreas para as queimadas. Até 20 de outubro, um milhão de hectares da unidade de conservação tinham sido novamente atingidos, segundo dados do instituto SOS Pantanal, compilados pelo Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais do Departamento de Meteorologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em 2020, o parque teve 80% de sua área queimada. 

        Ali, a fauna é a principal vítima. No ano passado, duas onças foram resgatadas com graves ferimentos no corpo – apenas uma conseguiu ser reintroduzida. A fêmea Amanaci nunca mais poderá voltar a viver livre na natureza, pois perdeu parte de suas patas nos incêndios de 2020. Ela vive em um refúgio de fauna em Goiás. 

        Um ano depois, no mesmo local onde foi encontrada Amanaci, no quilômetro 100 da rodovia Transpantaneira, novas vítimas das queimadas. Corpos de quatis carbonizados foram registrados pela equipe do Grupo de Resgate de Animais em Desastres (Grad).

        Para Carla Sássi, veterinária e coordenadora do Grad, ver a região de Porto Jofre queimar novamente, mesmo que em menores proporções, é a repetição de um pesadelo. “As pessoas não aprendem. Estamos aqui novamente, depois de termos trabalhado por meses em 2020”, diz Sássi. “Dá uma imensa frustração perceber que os animais sofrem por algo que poderia ser evitado.” 

        Independente das questões climáticas, a veterinária tem razão quando aponta a origem humana dos incêndios. Diferente do Cerrado, no Pantanal não tem combustão natural – a seca amplia o fogo que o homem produz. 

        “As pessoas fazem má gestão do fogo e insistem em queimar pastagens. Elas não percebem que, com a seca, o que seria algo menor no passado fica fora de controle e se torna um grande incêndio neste momento”, explica Leonardo Gomes, diretor de projetos do SOS Pantanal, instituição que lidera 28 brigadas voluntárias para atuar em pontos estratégicos do Pantanal em Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.  

        O tamanho do problema se revela quando o fogo chega ao Parque Estadual do Encontro das Águas. O local de difícil acesso, refúgio de grande parte da fauna da região, é um desafio mesmo com três equipes diferentes, entre brigadistas do Prevfogo, voluntários e bombeiros militares. Em alguns momentos, o fogo é tão intenso que não há o que fazer. Nem os aviões conseguem extinguir por completo os focos, e as equipes atuam com redução de danos. 

        O resgate atende aos animais que, por sorte, são encontrados a tempo de receberem algum socorro. Outros ficam carbonizados na paisagem. A reportagem viu veterinários socorrerem uma sucuri, enquanto outra cobra foi abandonada no barranco do rio por não suportar os ferimentos. Ossos do incêndio passado e carcaças recentes tornam-se imagens habituais.

        Um levantamento feito por um grupo de 30 cientistas, liderado por Walfrido Tomas, da Embrapa Pantanal, revelou que cerca de 17 milhões de animais vertebrados podem ter morrido nos incêndios no Pantanal em 2020. A pesquisa, ainda não publicada em periódico científico, foi feita a partir da contabilização de carcaças por amostragens nas áreas queimadas.

        No Encontro das Águas também estão muitos animais que sobreviveram aos incêndios do ano passado. Ousado, uma onça-pintada macho, é um dos que lutam para resistir a um Pantanal mais seco. O animal será monitorado por um rádio colar pela equipe que o resgatou até o fim de novembro. “Nos próximos dias, o colar dele vai cair. Daí vamos ter que torcer por ele", explica Jorge Aparecido Salomão, médico veterinário da Ampara Silvestre, ONG que participou do resgate em 2020 e acompanha a reintrodução do animal de volta a Porto Jofre. 

        O efeito que o estresse de incêndios recorrentes pode gerar é outro fator de preocupação. “Os animais estão ainda abalados e a fauna está bem longe de se recuperar do que aconteceu ano passado”, diz Salomão. “Por isso, mesmo os incêndios em menor proporção são muito preocupantes. E a seca agrava tudo. Nas últimas idas ao Pantanal, não achamos ponto de água e os bichos literalmente estavam sucumbindo com sede.” A Ampara está montando dois centros de tratamentos para bichos vítimas de fogo no Pantanal. As unidades serão no Mato Grosso do Sul e Mato Grosso, e ambas contarão com apoio do Instituto Homem Pantaneiro

        Animais domésticos também são vítimas dos incêndios. A pecuária é a principal atividade econômica do Pantanal, e cidades como Cáceres tem um rebanho de mais de um milhão de cabeças. Ver o gado sucumbindo sem água ou pelo fogo tornou-se uma cena recorrente, e que também remonta ao semiárido brasileiro. 

        Em Poconé, os veterinários do Grad passaram os primeiros dias de outubro resgatando bezerros que agonizavam atolados na lama. “Eles chegam ali desesperados por água. Muitos tinham queimaduras graves por todo o corpo. Não é justo deixar um animal passar por isso”, diz a veterinária Carla Sássi. Nem todo gado tem a mesma sorte, a grande maioria acaba morrendo de sede ou por ferimentos e é contabilizada no seguro de perdas da produção pago por bancos. 

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          Quati morto em incêndio no Pantanal, em setembro de 2021. Pesquisa estimou que nos incêndios de 2020, mais de 17 milhões de vertebrados morreram no bioma.

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          Veterinários do Grupo de Resgate de Animais em Desastres resgatam um bezerro coberto por ferimentos de fogo em Poconé (MT).

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          Brigadista tenta resgatar uma sucuri vítima do fogo no Parque Estadual do Encontro das Águas, em Mato Grosso, setembro de 2021.

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          Impacto na flora e menos peixes

          Os prejuízos na flora não são menores. Pesquisadores de botânica explicam que a paisagem pantaneira pode mudar se a seca persistir. “O Pantanal está em uma encruzilhada fitogeográfica. No norte, temos a Amazônia, a oeste, o Chaco, que é mais seco, um semiárido. Do outro lado, o Cerrado, e, no Sul, alguma influência da Mata Atlântica”, explica Solange Ikeda Castrillon, pesquisadora de ecologia vegetal do Pantanal e professora da Universidade do Estado de Mato Grosso. “Se retiramos as chuvas, quem vence pela adaptação são as espécies das áreas mais secas, como as do Chaco e do Cerrado.”

          Essa disruptura pode fazer todo sistema pantaneiro perder suas características. “Me dá um tucum que eu te dou um pacu, dizem os pescadores quando falam do fruto dessa palmeira, que usam como isca”, diz Castrillon. “Essa é a cadeia fundamental. São essas mudanças muito simples que podem degradar uma cadeia alimentar inteira, e também chegar lá no pescador. Temos que lembrar que os impactos ambientais estão todos relacionados ao econômico e social.”

          Os pescadores tradicionais, que vivem boa parte do ano no rio, confirmam a redução do pescado. “Foi a pior temporada de pesca dos meus 50 anos no rio. Eu nunca vi uma seca tão forte”, diz Lourenço Pereira Leite, que nasceu às margens do rio Sepotuba, em uma comunidade ribeirinha do Pantanal. “Não tinha quase peixe. Pacu, então, nem se fala, e depois não tinha água mais para navegar direito. Na verdade, colocamos dinheiro do bolso para estar no rio, não sei como será se isso continuar.”

          Outras comunidades pantaneiras devem ser impactadas pela redução das chuvas. “Algumas fazendas ficarão distante dos rios e vai ter gente que irá empobrecer muito”, diz Collischoon, da UFRGS. Apesar de todas as indicações pessimistas, o pesquisador também confirma uma tese recorrente entre os pantaneiros mais antigos: esta ainda não é a pior seca do Pantanal.

          “A régua de Ladário ainda não zerou. O local hoje conhecido como lagoa Uberaba, em Mato Grosso do Sul, já foi uma pastagem em 1965, durante um dos episódios de seca do passado”, diz Collischoon. Segundo a medição realizada pela Marinha desde o início do século 19, a régua que define a estiagem para todo o bioma já esteve na cota zero em ao menos três ocasiões: 1920, 1940 e na década de 1960, o período mais recente. Desde então, o Pantanal passou por quase cinquenta anos contínuos de cheia. “Agora, o correto é nos preparamos para um período mais seco, que pode durar por anos.”

          Lição dos antigos

          Os pantaneiros mais velhos confirmam que já enfrentaram secas similares. No passado, sobreviveram construindo refúgios de água para os animais. “Já teve seca assim, quando eu era criança, me lembro bem. Meu pai tinha que fazer uma cacimba de água para o gado, se não morria tudo. E os bichos do Pantanal acabavam bebendo ali também”, relembra Ulises Falcão de Arruda, o seu Tutu, de 87 anos, um dos mais antigos fazendeiros da Transpantaneira, em Poconé.  

          Ele concorda com os cientistas: a seca vem para ficar por mais algum tempo. “O Pantanal é assim, depois de trinta anos tem seca. E vai ser uma grande seca. Vai durar muitos anos, não vai ter água não. E depois vem a enchente”, alerta seu Tutu.

          A pesquisadora Cátia Nunes, que nasceu no Pantanal, afirma que o homem terá que mitigar um pouco do equilíbrio que o afetou para enfrentar os próximos anos. “Precisamos de um plano de adaptação às mudanças climáticas, isso já foi debatido antes no passado e abandonado”, diz a pesquisadora do INAU. “As adaptações são necessárias para a sobrevivência das comunidades tradicionais, os usuários da bacia e todos que vivem no Pantanal. Fazendeiros, independente do tamanho e origem, precisam pensar nessa situação.”

          Entre as propostas de mitigação, Nunes diz que, para a flora, é fundamental a criação de bancos de sementes para proteção das espécies que podem desaparecer. As plantas aquáticas, que dependem de áreas mais úmidas, são as mais ameaçadas. “Os animais vão precisar de apoio na alimentação e na água, essa é uma discussão que terá que existir com a sociedade”, diz ela. 

          Mas os órgãos ambientais ainda não chegaram a um consenso sobre o que fazer com os animais afetados pela seca e o fogo. A Secretaria de Estado de Meio Ambiente de Mato Grosso chegou a proibir que os animais fossem alimentados na Estrada Parque Transpantaneira. Depois, com o agravamento da seca em setembro, a alimentação foi liberada e, agora, novamente suspensa por um parecer técnico publicado no início de outubro.

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            Avião tenta controlar as chamas do incêndio no Parque Estadual Encontro das Águas, em Mato Grosso, setembro de 2021.

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            Fogo avança pela paisagem ressecada do Parque Estadual Encontro das Águas, em Mato Grosso.

            fotos de Rogério Florentino

            O sol se põe no Pantanal Matogrossense. Pesquisadores e população local temem que a seca que atinga o bioma nos útlimos três anos chegou para ficar e defendem medidas de adaptação para as novas condições climáticas.

            Foto de Rogério Florentino

            Efeito humano

            Além das mudanças climáticas, a atual seca pode ser agravada – duplamente – por ações humanas. Há 40 anos não havia desmatamento, nem fogo criminoso ou barragens nos rios, fatores que catalisam os efeitos das crises climáticas e ambientais no Pantanal. “É o uso errado. Se você desmatar, vai reter menos água, vai ter mais assoreamento nos rios e tudo piora, inclusive a seca”, diz Ibraim Fantin, o engenheiro sanitário e ambiental da UFMT.  

            Historicamente, o Pantanal é o mais afetado por incêndios no Brasil. Cerca de 57,5% da área natural do bioma já foi atingida pelo fogo, uma área superior a do Cerrado, que teve 36% de sua área atingida, e da Amazônia, 16,4%, considerando o início das medições oficiais pelo Inpe em 1990. O levantamento foi feito pelo MapBiomas, uma iniciativa que envolve uma rede colaborativa de especialistas nos biomas, usos da terra, sensoriamento remoto, sistema de informação geográfica, ciência da computação e mais de 15 instituições de pesquisas e entidades do terceiro setor.

            O estudo mostra que, mesmo sem as mudanças climáticas, o Pantanal também já teria perdido 29% de superfície de água e campos alagados entre a cheia de 1988 e a última, em 2018. Se continuar neste ritmo, em 70 anos o bioma pode secar.

            Apesar de todos os estudos e alertas publicados, ainda não há planos nacionais de mitigação para a situação do Pantanal. A Agência Nacional de Águas reconhece os efeitos das mudanças climáticas como um evento crítico para a bacia do rio Paraguai, mas lançou a discussão para o Plano Nacional de Recursos Hídricos de 2022 a 2040.

            Barramentos 

            Nas propostas do governo federal para o Pantanal, constam apenas os barramentos nos rios. Mesmo com a seca de três anos, há novas hidrelétricas em debate para a bacia do Alto Paraguai. Um relatório do WWF apontou que o Alto Paraguai está entre os dez rios mais ameaçadas no mundo por projetos de hidrelétricas.

            Muitas dessas novas barragens concentram-se no rio Cuiabá, onde as modelagens climáticas indicam a possível maior perda hídrica futura. O rio também já é altamente impactado pela Usina Hidrelétrica (UHE) de Manso, construída há 20 anos no rio Manso, principal afluente do Cuiabá, para gerar 90 MW/h de energia firme. 

            A hidrelétrica alterou completamente o pulso de inundação da bacia do rio Cuiabá. O projeto de Manso foi justamente idealizado para acabar com as enchentes e interferir no pulso da inundação do Pantanal. Isso porque, em 1976, a capital mato-grossense foi assolada por uma grande inundação, e os ciclos do rio passaram a ser considerados nocivos. Mas os reais impactos dessa interferência na pesca, atividade que garantia o sustento de boa parte da população local, não entraram na conta.

            “Aqui não tinha essa baía. A gente encostava com um bote grande na beira da colônia. Esse Manso acabou com todos nós”, diz Edésio de Oliveira, pescador de 59 anos, integrante da colônia Z8, de Porto Jofre, localizada às margens do encontro do rio São Lourenço com o Cuiabá, ao relembrar a construção da hidrelétrica, há 20 anos. “O rio não encheu mais, e daí acabou o peixe. Quanto tem água, tem peixe, ele sobe o rio, vem lá das baías. Com essa barragem ficou tudo muito difícil para o pescador. Temos que ir longe, gastar com gasolina.”

            A UHE Manso é apenas uma entre as 47 hidrelétricas em operação na Bacia do Alto Paraguai. Há planos para construção de mais 133. Só no rio Cuiabá, um dos principais afluentes do Paraguai, estão em discussão seis projetos de geração de energia. 

            “Se esses projetos forem colocados em prática, o rio Cuiabá vai tornar-se um curso de água artificial, sem pulso de inundação. Naturalmente, todo o ciclo que acontecia para alimentar o Pantanal, e que já foi muito afetado pela usina de Manso, vai deixar de acontecer”, diz Lúdio Cabral, deputado estadual de Mato Grosso e um dos proponentes da audiência Pública que debateu os projetos  Angatu I, Angatu II, Iratambé I, Iratambé II, Guapira II e Perudá, nos municípios de Nobres, Rosário Oeste, Jangada, Acorizal, Várzea Grande e Cuiabá. “Esses projetos terão um impacto enorme para os pescadores que já sofrem com a seca.” 

            Levantamento apresentado na audiência pública mostrou a importância econômica da pesca profissional para as populações locais. Cerca de 13 mil pessoas praticam a pesca de subsistência para manter suas famílias. Apesar de todos os impactos, conseguem uma renda total de R$ 26,1 milhões por ano somente no rio Cuiabá. Em toda a bacia que alimenta o Pantanal, os mais de 7 mil pescadores faturam R$ 69,8 milhões por ano. Além desse valor, há toda uma cadeia de insumos e de revenda do pescado que movimenta a economia regional.

            Com impactos crescentes e menos chuvas, os pescadores temem pelo futuro da profissão. “Não sei o que será do pescador e do Pantanal”, diz Lourenço Pereira Leite. “Nós vamos continuar no rio, porque amamos ele, mas dói muito ver tanta coisa errada acontecendo com a natureza.”

            Para Walter Collischoon, além das mudanças climáticas e da redução das chuvas, as escolhas definirão o futuro no Pantanal. “Também precisamos lembrar que, além de hidrelétricas, existe o projeto de uma hidrovia em curso no Tramo Norte do rio Paraguai, justamente onde hoje já há pouca água”, diz o pesquisador. “Se nos próximos anos chegarmos em todo bioma com o mesmo cenário de 1960, nem uma dragagem contínua do rio Paraguai seria suficiente para evitar encalhamento de comboios de navios. Como justificam o investimento feito nesse tipo de projeto?”

            Outro alerta da ciência é que os impactos no rio Paraguai também afetarão regiões fora do Pantanal. A redução mais drástica de águas no rio Paraguai pode aumentar a vazão no rio Paraná. Dessa forma, as cheias em Assunção, no Paraguai, e em Santa Fé, na Argentina, tendem a se intensificar. Como em todo ciclo da natureza, um movimento vai reger o outro.

            Esta reportagem foi produzida com apoio do Rainforest Journalism Fund, do Pulitzer Center. Os repórteres viajaram para Porto Jofre com apoio da iniciativa Observa – MT.

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