Como os produtos químicos nos contaminam?

Cerca de 400 000 amostras de cidadãos alemães, coletadas ao longo de quatro décadas e armazenadas em um antigo bunker militar, traçam a ascensão – e às vezes a queda – de poluentes químicos em um país industrializado.

Por Florian Sturm
Publicado 4 de out. de 2022, 10:39 BRT
No Banco Alemão de Espécimes Ambientais, Dominik Lermen está entre os tanques de crio-armazenamento que contêm ...

No Banco Alemão de Espécimes Ambientais, Dominik Lermen está entre os tanques de crio-armazenamento que contêm milhares de frascos de sangue e urina. Cientista do Instituto Fraunhofer de Engenharia Biomédica, Lerman lidera a equipe que coleta amostras todos os anos de estudantes e as armazena aqui em nome da Agência Alemã de Meio Ambiente.

Foto de Esther Horvath National Geographic

Quinze minutos a sudeste da cidade universitária de Münster, na Alemanha, ruas residenciais dão lugar a campos agrícolas, margeados por estradas estreitas. Ao lado de um grande bosque, atrás de uma alta cerca de arame, encontram-se cinco velhos bunkers militares –  formando ondulações na paisagem, com telhados curvos cobertos de grama.

Dominik Lermen dirige-se a um bunker e tira um molho de chaves do bolso. O barulho é engolido pelo som dos pássaros e pelo vento soprando pelas árvores. Finalmente, ele encontra a chave certa, e eu o sigo pela porta verde lisa – para o melhor arquivo do mundo de como os humanos foram contaminados por poluentes químicos.

“Aqui”, diz Lermen, “temos cerca de 400 000 amostras de mais de 17 000 pessoas. Principalmente sangue total, urina e plasma.”

Estamos de pé em uma sala enorme, sem janelas, mal iluminada, com paredes de concreto com cerca de um metro e oitenta de espessura. Pilares brancos sustentam o telhado curvo. Está frio—um pouco mais de 10°C – mas não tão frio quanto dentro das 42 cubas criogênicas de aço inoxidável que enchem a sala em fileiras organizadas. Cada uma tem cerca de 1,80 m de altura, 60 cm de largura e está conectada a tubos de metal que percorrem todo o comprimento do edifício.

Este é o arquivo de amostras humanas do Banco Alemão de Espécimes Ambientais (ESB, na sigla em inglês), um esforço do Ministério Federal do Meio Ambiente “para monitorar e analisar sistematicamente a exposição humana a produtos químicos como chumbo, mercúrio, plastificantes e outros”, explica Lermen. Com mais de quatro décadas, é o melhor e mais longo arquivo do gênero.

O banco de amostras está alojado em um bunker que já serviu como depósito médico para o exército alemão, fora da cidade de Münster.

Foto de Esther Horvath National Geographic

Todos os anos, Lermen e seus colegas do Instituto Fraunhofer de Engenharia Biomédica coletam e analisam amostras de sangue e urina de voluntários dos quatro cantos da Alemanha e armazenam as amostras aqui para pesquisas futuras. O projeto tem dois objetivos: revelar quais substâncias já se acumularam em grandes quantidades e que são potencialmente perigosas nos órgãos alemães, e verificar se as proibições e regulamentações de algumas dessas substâncias realmente funcionaram.

A regulamentação claramente pode funcionar: os níveis sanguíneos de chumbo e mercúrio caíram nas últimas décadas na Alemanha, assim como em outros países industrializados. Ao mesmo tempo, a proliferação de compostos orgânicos sintéticos como o PFAS (também conhecido como “produtos químicos para sempre”) criou novas ameaças inquietantes que tornam o trabalho realizado nesta instalação obscura ainda mais urgente.

Lermen, 44 anos, careca, com barba cheia e uma voz agradavelmente sonora, coloca um protetor facial, sobe uma escada móvel e levanta a tampa de uma das altas cubas de armazenamento criogênico. Uma névoa branca jorra da abertura e se dissipa enquanto cai no chão de concreto.

“Todos esses tanques são preenchidos com cerca de 160 litros de nitrogênio líquido”, diz Lermen. “Somente nessas temperaturas extremas podemos garantir a longevidade de nosso arquivo.”

mais populares

    veja mais

    Dentro dos tanques, o nitrogênio líquido mantém as amostras congeladas abaixo de -160ºC. Os frascos são armazenados em racks que ficam na nuvem de nitrogênio gasoso acima do líquido.

    Foto de Esther Horvath National Geographic

    Com as mãos e antebraços protegidos por luvas especiais, Lermen enfia a mão no tanque e levanta uma prateleira cheia de frascos da nuvem de nitrogênio. A temperatura na nuvem está abaixo de -160°C. Depois de alguns momentos, ele abaixa a prateleira de volta no recipiente e fecha a tampa.

    “Quando tiramos as amostras do tanque, os frascos experimentam uma rápida mudança de temperatura de cerca de 170°C”, diz ele. “É claro que queremos manter isso no mínimo.” Se você está tentando preservar um registro para a eternidade, cada segundo conta.

    'Os alunos são o nosso alerta precoce'

    Embora os cientistas da Universidade de Münster tenham começado a traçar planos para o ESB na década de 1970, ele foi lançado oficialmente em 1985. As primeiras amostras foram coletadas de pessoas perto de Münster, no oeste da Alemanha. Depois que a Alemanha Ocidental e Oriental foram reunificadas, em 1990, o programa de amostragem anual foi expandido para Greifswald, no norte, Halle, no leste, e Ulm, no sul. A ideia era obter um quadro verdadeiramente nacional da contaminação química.

    O ESB também coleta amostras ambientais – ovos de pássaros, plantas, peixes, mexilhões, veados, minhocas e solo – de 14 locais diferentes, incluindo cidades, reservas naturais e fazendas. Mas apenas amostras humanas são armazenadas no bunker de Münster, um antigo depósito médico do exército. 

    O arquivo foi transferido da universidade para cá em 2012. As paredes grossas, fortes o suficiente para resistir a uma bomba ou a um acidente de avião, também protegem as amostras da radiação cósmica que poderia degradá-las a longo prazo.

    As amostras no bunker não são retiradas de alemães de todas as idades, mas apenas de estudantes entre 20 e 29 anos – em parte para excluir pessoas que possam ter alta exposição ocupacional a produtos químicos.

    Till Weber, um cientista da Agência Ambiental Alemã, administra o banco de espécimes. Começou a operar em 1985 e mantém o registro mais consistente do mundo – e um dos mais longos – de mudança da carga química dos seres humanos.

    Foto de Esther Horvath National Geographic

    “Nós deliberadamente amostramos estudantes” como indicadores da ameaça enfrentada pela população em geral, explica Marike Kolossa-Gehring, cientista-chefe e gerente de projetos do ESB na Agência Ambiental Alemã em Berlim.

    “Os alunos não são expostos a certas substâncias devido ao seu trabalho. E supondo que a exposição a substâncias persistentes tende a aumentar e acumular com a idade, se encontrássemos altos níveis de substâncias já em jovens estudantes, saberíamos que devemos prestar muita atenção a essas substâncias em particular.

    “De certa forma, os alunos são nosso sistema de alerta precoce.”

    Sangue novo para o bunker

    Anjuli Weber, uma estudante de medicina de 21 anos da Universidade de Ulm, é uma recruta recente para esse sistema. Depois de saber sobre o biobanco por um e-mail de todo o campus, ela “estava curiosa para saber mais sobre ele, bem como sobre o estado do meu corpo”, diz ela. Os participantes eventualmente recebem alguns de seus resultados de teste.

    Em uma manhã de maio, Weber se reporta ao grande laboratório móvel do Instituto Fraunhofer, que parou em um estacionamento nos arredores de Ulm para três dias de testes. Antes de entrar, um membro da equipe analisa detalhes do histórico médico e da situação de vida de Weber, incluindo seus hábitos alimentares e uso de medicamentos e cosméticos. Um dentista verifica seus dentes para obturações de amálgama, que contêm mercúrio e outros metais.

    Dentro do caminhão, Weber encontra uma instalação médica de última geração, com um laboratório de biossegurança 2 blindado para seis trabalhadores, um tanque criogênico móvel para armazenamento de amostras e um escritório. Ela entrega uma grande garrafa de plástico marrom contendo sua urina das últimas 24 horas. Um técnico imediatamente começa a analisá-la.

    Em seguida, outro técnico extrai cerca de 180 mililitros do sangue de Weber – cerca de seis vezes mais do que você pode entregar em um exame médico comum, mas muito menos do que o litro que você desiste ao doar. Em 45 minutos, o sangue foi analisado quanto aos parâmetros de rotina e dividido em 16 alíquotas de sangue total e 24 de plasma. Registradas e com código de barras, as amostras são colocadas no recipiente de nitrogênio líquido para serem entregues a um dos maiores tanques criogênicos do bunker perto de Münster.

    Cerca de 400 000 amostras são armazenadas no bunker fora de Münster, e novas são adicionadas todos os anos a partir de quatro locais de amostragem na Alemanha.

    Foto de Esther Horvath National Geographic

    De lá, eles viajarão para laboratórios externos para serem analisados ​​quanto a produtos químicos tóxicos – por meio de uma cadeia de frio ininterrupta que mantém as amostras profundamente congeladas, limitando assim o risco de serem alteradas.

    Existem cerca de duas dúzias de bancos de espécimes ambientais em todo o mundo: a mais antiga, em Estocolmo, data da década de 1960. O que torna o ESB alemão único é a qualidade e consistência de seus dados. Enquanto alguns ESBs trabalham de forma oportunista – quando uma lontra ou baleia morta aparece na praia, seus tecidos também vão para o banco – o arquivo alemão segue um protocolo rígido e procedimentos padrão. O mesmo laboratório móvel viaja para todos os quatro locais de amostragem na Alemanha todos os anos.

    “Temos usado os mesmos métodos padronizados de amostragem e armazenamento por mais de três décadas. Isso torna nossos dados realmente comparáveis ​​e nos permite fazer análises e previsões confiáveis”, diz Kolossa-Gehring.

    Boas e más notícias

    De volta ao bunker, outro cientista da agência ambiental chamado Till Weber (sem parentesco com Anjuli Weber) me disse que pesquisadores de muitos países estudaram os dados alemães. Os resultados foram animadores e preocupantes.

    Um estudo mostra que os níveis de mercúrio no sangue e na urina caíram 57% e 86%, respectivamente, entre 1995 e 2018”, diz Weber. “Uma das razões para esse declínio contínuo é a diminuição do uso de amálgama na odontologia e provavelmente a conscientização da exposição ao mercúrio de peixes e frutos do mar”, complementa.

    Uma bancada criogênica no bunker permite que as amostras sejam verificadas e analisadas sem interromper a cadeia de frio – o que é essencial para preservá-las como um registro de longo prazo.

    Foto de Esther Horvath National Geographic

    O chumbo seguiu uma tendência semelhante. Dados derivados de 3851 jovens adultos em Münster mostram que o nível médio de chumbo no sangue diminuiu cerca de 87%, entre 1981 e 2019. O principal motivo: a proibição da gasolina com chumbo na Alemanha entrou em vigor em 1988 e, portanto, o escapamento dos carros não polui mais o ar com chumbo.

    “Nenhum fabricante coloca deliberadamente no mercado substâncias nocivas”, acredita Weber. “Mas, às vezes, só com o tempo aprendemos sobre a verdadeira toxicidade de certos produtos químicos. É isso que torna o biomonitoramento como o nosso tão importante para toda a sociedade.”

    Embora certos testes sejam obrigatórios antes do uso de novas substâncias em produtos comerciais, os dados sobre os efeitos a longo prazo na saúde são escassos para a maioria deles. O número de produtos químicos sintéticos está crescendo tão rápido que é quase impossível acompanhar seus efeitos individuais, muito menos seus efeitos combinados.

    A União Europeia provavelmente tem as regulamentações químicas mais fortes. Em abril, a Comissão Europeia publicou um “roteiro de restrição”: até 12 000 substâncias ligadas a distúrbios hormonais, câncer, obesidade ou diabetes podem ser proibidas, disseram autoridades. Seria a “maior proibição de produtos químicos tóxicos” até hoje, de acordo com o European Environmental Bureau (EEB), uma rede de grupos de cidadãos, e pode ser um duro golpe para a indústria petroquímica.

    Um alvo principal são os PFAS (produtos químicos para sempre) porque levam centenas de anos para se degradar naturalmente. Embalagens de alimentos e retardantes de chama, roupas impermeáveis ​​e equipamentos para atividades ao ar livre, guarda-chuvas e panelas antiaderentes – todos usam substâncias PFAS tóxicas.

    Traços dessas e de outras substâncias, como ftalatos, que são usados ​​como solventes e plastificantes, foram encontrados em literalmente todas as amostras desde que o ESB começou a procurá-los, dizem Lermen e Weber. Os produtos químicos são onipresentes e é impossível rastrear com segurança sua origem. É por isso que regular seu uso é extremamente importante.

    A Europa baniu ou regulamentou os ftalatos individuais, identificados como desreguladores endócrinos que podem interferir na reprodução, desde 1999. Os fabricantes responderam alterando ligeiramente a fórmula das substâncias proibidas para inventar novos produtos químicos não regulamentados com características semelhantes. Estudos derivados do ESB alemão mostram que a exposição geral aos ftalatos aumentou.

    “Isso indica claramente que o número de produtos químicos substitutos continua aumentando – e ainda não sabemos muito sobre seus efeitos”, diz Kolossa-Gehring.

    “É importante que as pessoas saibam o máximo possível sobre os produtos químicos aos quais estão expostas”, enfatiza Till Weber antes de fechar a porta verde do bunker para o dia.

    “Não queremos assustar ninguém ou dizer para não usar mais plástico na vida. Mas todos nós precisamos construir uma consciência do que está ao nosso redor e, eventualmente, também dentro de nossos corpos.”

    Esther Horvath é uma fotógrafa alemã que documenta regiões polares. Siga-a no Instagram. O jornalista freelance Florian Sturm também está baseado na Alemanha.

    mais populares

      veja mais
      loading

      Descubra Nat Geo

      • Animais
      • Meio ambiente
      • História
      • Ciência
      • Viagem
      • Fotografia
      • Espaço
      • Vídeo

      Sobre nós

      Inscrição

      • Assine a newsletter
      • Disney+

      Siga-nos

      Copyright © 1996-2015 National Geographic Society. Copyright © 2015-2024 National Geographic Partners, LLC. Todos os direitos reservados