De onde vem esta iguaria dos botecos brasileiros?
Pouco antes de uma tempestade, caiçaras puxam rede de arrasto durante pesca tradicional de manjuba (Anchoviella lepidentostole) nas margens do rio Ribeira de Iguape, em Iguape, litoral sul de São Paulo. A cidade é a única no Brasil com pesca comercial da iguaria.
Iguape, São Paulo | O Rodrigo passou o pé. Debaixo de chuva, próximo à Barragem do Valo Grande, em Iguape, no litoral sul de São Paulo, um grupo de pescadores faziam festa. Naquele sábado de março, já no final da safra da manjuba, as redes de uma dezena de barcos que se revezavam no rio Ribeira saíam da água cheias.
No dia anterior, Rodrigo de Nina fazia às vezes de caloeiro, o pescador responsável por segurar a ponta da rede no barranco enquanto a canoa a espalha ao longo do rio. No sábado, havia subido de posto. “É sua primeira vez como popeiro Rodrigo?”, perguntou um colega. “É sim”, respondeu Rodrigo, depois de tirar um lanço com quase 500 kg de manjuba.
“Passar o pé é pegar muito peixe de uma vez só”, explica Édino Pereira, o Repolho. Com a rede cheia, os pescadores precisam colocar um pé dentro do barco para conseguir despejar os peixes dentro dele. Essa é uma de muitas expressões típicas ouvidas entre eles: popeiro é o chefe em cada canoa, lanço, uma jogada de rede. Todos esses termos, mais uma profusão de apelidos como Baby, Debinha, Marreta, Foguinho, Pancinha, Paçoquinha e Coroinha, são o pano de fundo de uma espécie de balé que acontece ali e mais em alguns outros pontos do Rio Ribeiro próximos aos municípios de Iguape e Ilha Comprida.
E em nenhum outro lugar do mundo.
É só nessa região que ocorre a pesca em escala comercial da manjuba, um peixinho de pouco mais de 10 cm, íntimo dos cardápios de tira-gosto Brasil afora. A exclusividade mexe com os brios de Iguape – há uma estátua de pescador na entrada da cidade – e com os bolsos. “A manjuba é nosso ouro aqui, não é nem a prata, é o que gira o dinheiro”, diz Abner Lima, o Cuica. “Pedreiro, carpinteiro, pintor, todo mundo larga para pescar na hora certa.”
Manjubas pescadas tradicionalmente por arrasto no rio Ribeira de Iguape. Do mesmo gênero das anchovas e algumas espécies de sardinha, a manjuba também é encontrada em outras regiões do Brasil e até é pescada no Rio de Janeiro, Espírito Santo e alguns locais do Nordeste, mas apenas em Iguape há a pesca direcionada.
Disnei de Jesus Cordeiro, o Foguinho, é caiçara nascido e criado em Iguape, vive da pesca durante a temporada de manjubas e, nos outros meses, faz bicos como pedreiro.
Paulo Moura, presidente da Colônia de Pescadores de Iguape. “[Pescar] é uma coisa que gosto de fazer, toda vida gostei. O cara me convidou para pescar, tô lá. Hoje sou aposentado pela pescaria e criei meus filhos na pesca”, diz ele em entrevista à reportagem.
Paulo Moura, o Quati, presidente da Colônia de Pesca de Iguape, chuta que a manjuba é responsável por 70% da renda local. Apesar de não existir uma estatística oficial sobre o peso da atividade para a economia do município, são 1,5 mil pescadores registrados na Colônia (o número real deve estar próximo de 2 mil), numa cidade onde os habitantes não chegam a 32 mil. Como muitos dos entrevistados para esta reportagem afirmam, não existe uma família na cidade sem um pescador. E ainda há toda a cadeia produtiva de peixeiros, motoristas, atravessadores, vendedores e por aí vai.
Mas essa história tem mudado. Ainda que o estoque pesqueiro da espécie se mantenha estável nos últimos anos, alterações ambientais e geográficas, o uso de novas técnicas de captura e disputas regulatórias sobre a atividade criam entre os pescadores uma sensação constante de ‘antigamente era melhor’.
E se a manjuba é um símbolo de Iguape, esse cenário a faz também de todas as transformações pelas quais a cidade passou em pouco mais de um século: de um polo econômico estadual a uma região que sequer reconhece a devida importância do seu maior tesouro.
A cidade que vive de um peixe
A manjuba (Anchoviella lepidentostole) não é um peixe endêmico do litoral sul de São Paulo. Do mesmo gênero das anchovas e algumas espécies de sardinha, ela também é encontrada em outras regiões do Brasil e até é pescada no Rio de Janeiro, Espírito Santo e alguns locais do Nordeste.
“Mas a pesca direcionada para essa espécie é praticamente só aqui em Iguape”, diz Jocemar Tomasino Mendonça, pesquisador do Instituto de Pesca de São Paulo. Baseado na sede de Cananéia do instituto, 90 km distante de Iguape por via terrestre, Jocemar acompanha a atividade há mais de duas décadas.
Canal do porto, no munícipio de Iguape, litoral sul do estado de São Paulo.
Caiçaras praticam a pesca tradicional de manjuba (Anchoviella lepidentostole) com redes de arrasto, na margem do rio Ribeira de Iguape.
Garças e urubus sobrevoam canoas e redes de pesca utilizadas para a pesca tradicional da manjuba (Anchoviella lepidentostole) na região da Barragem do Valo Grande, no rio Ribeira de Iguape, em Iguape, São Paulo.
Caiçaras erguem para fora da água a rede de arrasto com manjubas (Anchoviella lepidentostole), durante pesca tradicional.
Caiçaras puxam as redes de arrasto depois de pescar manjubas nas margens do rio Ribeira de Iguape.
Ele explica que a safra – e esse é o termo utilizado – da manjuba acontece durante o verão, entre setembro e outubro até março e abril, com uma proibição de pesca durante o defeso, do dia 26 de dezembro a 25 de janeiro.
“A safra acontece no momento da desova, quando os adultos buscam a água doce para reproduzir”, conta Jocemar. “Então é um momento crítico, mas também é o único momento que dá para pescar. Depois a manjuba vai para o mar e ninguém sabe direito onde ela vai parar.”
E essa pesca acontece há muito tempo. Segundo Jocemar, já no início do século 20 os caiçaras da região capturavam a manjuba para subsistência. Na época, Iguape era um polo econômico importante no estado. Fundada em 1538, a cidade fica às margens do Mar Pequeno, um braço do Oceano Atlântico que separa Ilha Comprida do continente e forma um estuário – com Iguape na ponta Norte e Cananéia na ponte Sul.
A localização fez com que o porto de Iguape se tornasse o local perfeito para escoar a produção agrícola da região, em especial o arroz plantado no Vale do Ribeira. No entanto, os agricultores precisavam fazer um contorno grande pelo rio Ribeira até chegar ao porto. Para se improvisar uma solução, em meados do século 19, foi aberto uma espécie de atalho entre o rio e o Mar Pequeno: o canal do Valo Grande.
Planejado como um córrego de pouco mais de quatro metros de largura por onde atravessariam canoas carregadas de arroz, o Valo Grande começou a se alargar. E alargar. E alargar. Até chegar a 300 metros de largura. O volume de água doce do rio Ribeiro transformou a ecologia da região e assoreou o porto de Iguape, onde os navios do início do século 20 já não conseguiam mais atracar. Somado a proeminência do porto de Santos, fundado em 1892, a cidade entrou num ocaso econômico. E a manjuba ganhou importância.
“À medida que foi passando o tempo, foi diminuindo as condições agrícolas, começou uma migração, passou-se a abandonar o litoral sul e a manjuba começou a ser muito importante para a população economicamente”, diz Jocemar, sobre um processo que se concretizou na década de 1930. “Ela passou a ser o principal produto econômico de Iguape.”
Valdoniro Colaço, proprietário de uma peixaria no município de Iguape. Valdoniro tem seis barcos de pesca e os pescadores que os utilizam vendem os pescados para ele com exclusividade.
O caiçara Roberto se prepara para partir após encher canoa com manjubas (Anchoviella lepidentostole) nas margens do rio Ribeira.
Pescadores carregam furgão frigorífico com caixas com manjubas após pesca tradicional realizada por caiçaras no rio Ribeira de Iguape. Vendidas pelos pescadores por R$ 5 ou 6 por quilo, as manjubas são vendidas no Ceagesp, centro de distribuição de alimentos na Zona Oeste da cidade de São Paulo, por R$ 15/kg.
No entanto, um dos resultados dessa mudança foi uma alteração na dinâmica econômica da pesca. Como a atividade se intensificou e profissionalizou, os custos subiram e os donos das indústrias de beneficiamento e peixarias acabaram dominando os meios de produção. Eles pagavam o transporte para os pontos de pesca, assim como cediam barco, rede e o restante dos materiais utilizados. Em contrapartida, os pescadores só podiam vender a manjuba para o ‘patrão’ que os patrocinava. Com preço pré-definido.
Foi para contornar essa situação e melhorar a renda dos pescadores que, no final da década de 1980, pesquisadores do Instituto de Pesca e padres da Pastoral da Pesca sugeriram uma novidade como promessa de autonomia. Um modelo de rede mais barato, fácil de manejar sozinho e que transformaria a captura da manjuba nas décadas seguintes.
Da manjubeira ao corrico
“Onde tem água, a gente tá dentro”, diz André Dias, o Uru, enquanto ajuda a puxar um lanço que renderia cerca de 250 kg de manjuba. Numa sexta, um dia antes e no mesmo local da cena que abre esta reportagem, André explicava o que esse volume de pescado significa na prática. Em março, já no fim da safra, um lanço de 500 ou 600 kg é muito bom.
No pico da safra de manjuba, um pouco antes do defeso, no final de janeiro e fevereiro, uma rede boa vem com mais de uma tonelada de peixes. O recorde pessoal de Uru? 1,5 mil kg de uma só vez. Mas um tio dele – sempre um tio! – foi muito além em meados dos anos 90: “ele pegou cinco toneladas em um lanço”, conta Uru.
Exagero ou não, de fato houve uma supersafra da espécie em 1995 e 1996. Apesar do Instituto de Pesca não ter dados para a época, Jocemar Tomasino fala em 5 mil toneladas por ano. Para se ter uma ideia, entre 1998 e 2021, a temporada com maior volume de manjuba pescada em Iguape foi 2003, com 1,28 toneladas. No ano passado, foram 827 toneladas.
De qualquer forma, as redes capazes de capturar mais de uma tonelada de manjuba de uma única vez são chamadas de manjubeiras. É o método tradicional de pesca da espécie: uma grande rede de arrasto, de até 150 metros de comprimento, manuseada por, no mínimo, três pescadores.
A manjubeira é uma rede cara – hoje, custa em torno de R$ 15 mil. “Com o passar do tempo, o pescador não adquiria a rede, quem adquiria eram os armadores, peixeiros, as empresas”, conta Jocemar. Como alternativa a esse modelo, o Instituto de Pesca e a Pastoral da Pesca passaram a incentivar a pesca com um outro tipo de rede, que já era utilizada na região, mas de forma tímida: o corrico.
Jocemar Tomasino Mendonça, pesquisador científico do Instituto de Pesca, localizado em Iguape, São Paulo. Segundo ele, a pesca da manjuba é uma das principais atividades econômicas dos caiçaras da região desde o início do século 20.
Ao contrário da manjubeira, o corrico é uma rede de emalhe. Ele fica solto no rio, boiando acompanhado por um pescador que, após determinado tempo, recolhe o material e vai retirar o pescado na margem. É mais barato e pode ser utilizado sozinho. Resolveu um problema, mas criou outros. “A coisa é feita com boa vontade e depois não sai como se imaginou”, brinca Jocemar. “O que aconteceu, com o passar do tempo, foi que muitos peixeiros também compraram corrico.”
O uso do corrico foi além do esperado. Em 1995, o Ibama regularizou esse tipo de rede, com um comprimento máximo de 150 metros por pescador. “Nessa época, o pessoal já trabalhava com rede 800”, diz Jocemar, sem esconder o riso. Em 2004, uma nova instrução normativa do Ibama discutida em conjunto com pesquisadores do Instituto de Pesca e pescadores de Iguape aumentou o tamanho permitido do corrico para 300 metros.
O corrico é modular – a rede é composta por vários pedaços menores que podem ser ligados um ao outro. “Trezentos metros são cinco panos de rede”, explica Paulo, da Colônia de Pesca. “Tem gente andando com 20, 25 panos dentro do barco.” Em outras palavras, há pescadores que, sozinhos, trabalham com mais de 1,2 mil metros de rede.
Isso é dividido em vários corricos menores e um só pescador acaba acompanhando diversas redes. Soma-se a isso um número crescente de pessoas que dependem da atividade, e o resultado é que, em alguns trechos do rio Ribeira e Mar Pequeno, chega a ser difícil transitar com um barco, conta Paulo.
Mesmo assim, o presidente da Colônia é categórico. “Trezentos metros é pouco”.
Há uma articulação inicial para revisar o tamanho permitido para uso do corrico. Para Jocemar, a solução seria aumentar um pouco o comprimento, mas garantir que o limite fosse respeitado e que o número de pescadores fosse controlado.
“Trezentos metros muitas vezes não é suficiente mesmo”, diz Jocemar, o pesquisador do Instituto de Pesca. “Só que aumentar muito mais que isso no número de redes que existem é um risco para o próprio recurso nos próximos anos.” Por enquanto, pelo menos, esse recurso está seguro.
Pesca pesada
Paulo Quati começou a pescar no início dos anos 1980. Eleito presidente da Colônia em novembro de 2021, ele espelha uma história comum em Iguape: o pai era pescador, e Paulo seguiu a carreira. “É uma coisa que gosto de fazer, toda vida gostei. O cara me convidou para pescar, tô lá. Hoje sou aposentado pela pescaria e criei meus filhos na pesca”, conta.
Caiçaras sacodem e batem com a rede no chão para soltar as manjubas presas após pesca por 'corrico' em Iguape. O corrico é uma rede de emalhe que fica solta no rio, boiando acompanhada por um pescador que, após determinado tempo, recolhe o material e vai retirar o pescado na margem.
Luzes no meio do rio Ribeira de Iguape, à noite, indicam ação de caiçaras durante a pesca tradicional de manjubas através da técnica de corrico. A técnica é mais barata que as redes de arrasto e permite que um pescador trabalhe sozinho.
Em mais de 40 anos, ele experimentou a transformação da captura da manjuba. Quando começou, conta, os barcos não tinham motor, e era preciso remar por quilômetros ou ir nos caminhões de peixeiros até os pontos de pesca. Ficava-se o dia inteiro na água, ou quando a rede vinha cheia logo cedo, era preciso voltar para descarregar e refazer o trajeto de novo.
“Era dificultoso”, diz Paulo. “Hoje ficou mais fácil.”
Com a chegada do corrico, aconteceu uma transformação, continua Paulo. Muitos abandonaram a manjubeira em favor do novo método. O trabalho com a manjubeira precisa de muitas mãos – e o lucro é dividido entre todas elas. O corrico, por sua vez, pode ser manuseado sozinho.
Há outras diferenças: a manjubeira é mais fácil, explica Paulo. Jogar a rede do corrico na água e esperar também é tranquilo. “O ruim é que, no corrico, a hora que você para de pescar, é que você começa a trabalhar”, conta. Como a manjuba fica presa no corrico, é necessário bater a rede para soltar os peixinhos. Um trabalho demorado, repetitivo, chato e, não raro, terceirizado “para uma molecada por 50 conto”, nas palavras de um outro pescador.
O problema da manjubeira, por outro lado, é o esforço físico. A depender da quantidade de peixes na rede e da força da maré, são necessárias muitas pessoas para arrastar a rede gigantesca para fora d’água. Arrastar é a palavra certa: os pescadores alternam trançar as cordas na frente do corpo e pelas costas conforme avançam, e a força faz com que afundem aos poucos na lama da beira do rio.
Mais uma: como as manjubas ficam presas na rede do corrico, o processo de bater a rede as danifica. Os peixes saem machucados, às vezes descabeçados, feios. Na manjubeira, por outro lado, saem inteiros, bonitos. Há, inclusive, uma espécie de orgulho sobre essa diferença de qualidade entre os pecadores que trabalham com a manjubeira: fazem questão de mostrar como o seu pescado está perfeito. Isso também influencia no preço.
Em março, o quilo da manjuba era vendido pelos pescadores por R$ 5 ou 6 para os peixeiros ou atravessadores. Em alguns casos, o negócio era feito do lado da água, com caminhões frigoríficos estacionados próximos ao local de pesca. Os peixeiros da cidade, por sua vez, distribuem as manjubas por a partir de R$ 8, valor que sobe para em torno de R$ 15 no Ceagesp, o centro de abastecimento na Zona Oeste de São Paulo. E continua a subir até chegar na mesa da cidade grande.
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“Nós mandamos para o Ceagesp, mandamos para os atacadinhos aqui da região, vendemos para outros peixeiros maiores, vendemos para indústrias do Sul”, conta Valdoniro Colaço. Pescador aposentado, Valdoniro é dono de uma pequena peixaria no centro de Iguape.
Valdoniro tem seis barcos de pesca. O compromisso dos pescadores que usam esses barcos em vender exclusivamente para sua peixaria, explica, vem do investimento feito por ele, que já comprou até botas e casacos impermeáveis. Ao mesmo tempo, durante a conversa, ele revela como, mesmo quem está um pouco acima na cadeia produtiva da manjuba, pode ser – e o trocadilho é inevitável – peixe pequeno.
“Se você for em qualquer estado do nosso país, você encontra lá manjuba, CNPJ Cananéia, CNJP Curitiba, CNPJ Itajaí. Eu não consigo entender”, diz. “Uma cidade de 468 anos de idade, a maior economia é a pesca. E não se fala nada, não se fala nada sobre isso”, continua Valdoniro, emocionado.
Para ele, falta reconhecimento sobre a importância da manjuba. E falta atenção política para melhorar as condições da pesca como um todo.
Por um acaso, essa falta de atenção fica visível na gastronomia. Há dois preparos tradicionais da manjuba na região, a moqueca e o bolinho. Nenhum dos dois é encontrado nos bares e restaurantes da cidade. A moqueca, ao contrário do que o nome pode sugerir, é uma espécie de manjuba empanada em bloco com farinha de mandioca e assada, às vezes na folha de bananeira. O prato final é semelhante a uma torta, segundo os relatos.
O bolinho está mais para aperitivo. Duas manjubas espalmadas são recheadas com um molho feito a partir das ovas do próprio peixe ou com tomate – tudo isso é empanado junto e frito. Numa casa sem qualquer identificação no bairro do Rocio, em Iguape, Sônia Maria dos Santos vende bandejinhas com 12 bolinhos de manjuba congelados por R$ 15. Para chegar lá, só conhecendo Sônia ou com muita indicação.
Sônia abriu uma exceção e fritou alguns na hora para a reportagem provar. São uma delícia.
O futuro da espécie
Enquanto sobe o Ribeira para dar o próximo lanço, Édino Repolho conta em números porque a safra da manjuba mobiliza tanto os moradores da região: “Tem dia que a gente tira R$ 400 na diária, R$ 500. Já cheguei a tirar a R$ 1,7 mil”. Anos atrás, quando passou o pé e pegou mais de duas toneladas em uma única rede, ele garantiu o mês inteiro, ali, em menos de uma hora.
Tanta riqueza dá briga. Próximo à barragem do Valo Grande, onde Édino pesca, não é raro a disputa pela manjuba terminar com um barco afundado. Ou um remo quebrado nas costas de alguém. Num outro ponto de pesca distante dali, Abner Cuica ria dessa tensão. “É melhor ir para a guerra da Ucrânia do que pescar na Barragem”, diz.
Mesmo assim, é uma rotina divertida. Há um senso de camaradagem e uma zoação mútua sem fim, que envolve dos mais velhos aos mais novos. “É bom né, a gente consegue sair de casa, vim pra cá trabalhar, volta”, diz Édino. “Dá aquela paz para você. Mesmo quando tem muita discussão, mas é no momento só, daqui a pouco já passa.”
A briga passa, mas o impacto do aumento do número de pescadores está se fazendo notar. É fácil ver redes manjubeiras e de corrico usadas em locais proibidos, por exemplo. Além disso, o ecossistema da região está em transformação. Para dar um exemplo, a brachiaria, uma espécie de capim exótica utilizada em pastagens, se tornou uma praga na beira do Ribeira e está afunilando o rio e alguns canais próximos a Iguape.
Tudo isso cria um temor sobre o futuro da pesca. “Infelizmente a pescaria para nós, cada ano que passa, tá dificultando mais”, diz Paulo, presidente da Colônia. Por enquanto, as estatísticas são pouco preocupantes. Ano a ano, Iguape pesca cerca de mil toneladas de manjuba. Há anos com superssafras e outros mais escassos, mas a média gira em torno disso.
“Olha, a pesca da manjuba já passou por tantos problemas, então acho que vai continuar por muitos anos”, fala Jocemar. “Precisa ajustar? Precisa. Se não ajustar vai ter perigo? Vai. Mas a chance de ajuste existe, claro que existe.” Para o pesquisador do Instituto de Pesca, o fato da atividade estar restrita a um local pequeno facilita a mudança para um contexto mais favorável.
E isso depende de um trabalho em conjunto e corpo a corpo com os pescadores. Quando fala do aumento do tamanho das redes de corrico, por exemplo, Jocemar reconhece que isso é reflexo de uma necessidade. “Não é ganância, não são olhudos, é o momento que tem de pescaria”, explica.
André Uru explica isso com outras palavras: “Pescador de manjuba é igual formiguinha. No verão, trabalha, trabalha, trabalha. Chega no inverno, fica de boa”. É um exagero. Ao longo do ano, muitos se dedicam à pesca de espécies diferentes, como tainha e bagre branco. Outros voltam para suas carreiras paralelas, como o próprio André, que é cabeleireiro.
Mas, mesmo no inverno, a manjuba atenta. Num grupo de WhatsApp com diversos pescadores da Barragem do Valo Grande, a troca de fotos com canoas cheias era intensa no começo de junho. Saudades de dias mais quentes, sem tanta chuva e com bem mais peixe.
Uma mensagem de Édino resume o clima: “Baby, partiu dar um lanço, a maré tá enchendo!”