Plástico – Nós o criamos. Dependemos dele. Mas ele nos ameaça.
O material milagroso permitiu o desenvolvimento da vida moderna. Mas mais de 40% do plástico produzido é usado uma única vez e jogado fora.
Confira a reportagem completa na edição de junho da revista National Geographic Brasil.
Esta reportagem é parte da iniciativa Planeta ou Plástico, um esforço de longo prazo para aumentar a conscientização sobre a crise global do lixo plástico.
Se o Mayflower, o barco dos pioneiros colonos ingleses – os chamados Peregrinos, que saíram de Plymouth, na Inglaterra, rumo à América do Norte –, estivesse cheio de garrafinhas plásticas de água, esse lixo ainda restaria entre nós. Quatro séculos depois. Se os Peregrinos tivessem feito como muita gente costuma fazer, jogado ao mar garrafas e embalagens, as ondas e a radiação solar no Atlântico teriam desgastado todos esses objetos de plástico, reduzindo-os a fragmentos minúsculos. Esses fragmentos poderiam estar flutuando até agora nos oceanos do planeta, absorvendo toxinas que iriam aderir àquelas já presentes neles, e acabariam sendo ingeridos por algum peixe ou ostra. E talvez terminassem no prato de um de nós.
Temos de ser gratos aos pioneiros por não usarem nada de plástico, pensei pouco tempo atrás no trem que me levava até Plymouth, na costa sul da Inglaterra. O motivo da viagem era conversar com uma pessoa que me ajudaria a entender a confusão em que estamos metidos graças aos resíduos plásticos, sobretudo nos mares.
Como o plástico só foi inventado no final do século 19, e a sua produção se tornou de fato relevante por volta de 1950, temos de lidar com meros 8,3 bilhões de toneladas do material. Desse total, mais de 6,3 bilhões já viraram resíduos. E a quantidade assombrosa de 5,7 bilhões de toneladas jamais passou por nenhum tipo de reciclagem – resultado que chocou os cientistas que calcularam tais números em 2017.
Ninguém faz ideia da efetiva proporção desse lixo plástico não reciclado que acaba nos oceanos. Em 2015, Jenna Jambeck, que leciona engenharia ambiental na Universidade da Geórgia, nos Estados Unidos, atraiu a atenção geral com uma estimativa: a cada ano, entre 4,8 milhões e 12,7 milhões de toneladas de resíduos chegam ao mar. A maior parte do lixo não vem dos navios, explicam ela e os seus colegas, mas é descartada em terra e nas margens dos rios, sobretudo na Ásia. Só depois tais resíduos são carregados, pelo vento e pela água, até o oceano. Basta imaginar 15 sacolinhas repletas de tralha plástica, contabiliza Jambeck, boiando a cada metro de toda a linha da costa ao redor do mundo – isso corresponderia a cerca de 8 milhões de toneladas, a sua estimativa média da quantidade de lixo que os oceanos recebem a cada ano. E não está claro quanto tempo leva para esse plástico se desintegrar por completo em suas moléculas constituintes. As estimativas variam de 450 anos a nunca.
Por outro lado, é bem provável que todo esse plástico venha causando a morte de milhões de animais marinhos a cada ano. Já se comprovou que quase 700 espécies, incluindo algumas em risco de extinção, foram afetadas por resíduos plásticos. Em algumas elas, o dano é evidente – animais estrangulados por itens descartados, como redes de pesca. Em muitos outros casos, porém, os prejuízos são invisíveis. Espécies de todos os tamanhos, de plâncton a baleias, agora ingerem micropartículas de plástico, fragmentos ínfimos que medem menos de 5 milímetros. No Havaí, em uma praia que aparentemente deveria estar intocada – não há acesso por estrada pavimentada –, senti os meus pés afundando em crepitantes micropartículas de plástico. Depois dessa experiência, entendi por que há pessoas que veem no acúmulo de resíduos plásticos nos oceanos um sinal de catástrofe iminente, algo tão alarmante quanto as mudanças climáticas.
Há uma diferença crucial: a questão do plástico nos mares não é tão complicada quanto a das mudanças climáticas. Ao menos por ora, ninguém nega o excesso de lixo. E, para começar a resolver o problema, não precisamos refazer todo o sistema de geração de energia no planeta.
“Não estamos diante de um problema para o qual não há solução”, diz o economista Ted Siegler, um especialista em recursos. “Sabemos como recolher o lixo. Todo o mundo pode fazer isso. Sabemos também como dar um destino a ele. E como reciclar esse material.” O que falta é criar as instituições e os sistemas necessários, diz ele – em termos ideais, antes que o oceano se torne, de forma irremediável e pelos séculos vindouros, uma sopa rala de material plástico.
EM PLYMOUTH, SOB O CÉU CINZENTO e carregado do outono inglês, Richard Thompson me esperava, protegido por um casaco impermeável amarelo, diante da Estação Marinha Coxside, à beira da enseada. Um sujeito esguio de 54 anos, ele iniciava a carreira de ecologista marinho, em 1993, quando participou pela primeira vez da limpeza de uma praia, na Ilha de Man. Enquanto outros voluntários se concentravam em garrafas, sacos e redes de plástico, Thompson se ateve àquelas partículas minúsculas que ficam sob os pés, ignoradas, na marca da maré alta.
Na época, havia um mistério a ser resolvido, pelo menos em círculos acadêmicos: os cientistas estavam intrigados com o fato de estarem encontrando menos plástico nos oceanos do que o esperado. A produção mundial havia crescido de forma exponencial – de 2,1 milhões de toneladas, em 1950, passou a 147 milhões, em 1993, e a 407 milhões de toneladas, em 2015 –, mas a quantidade de plástico boiando nos mares e lançada às praias, por mais alarmante que fosse, não parecia estar aumentando com a mesma rapidez. “A pergunta inevitável era: para onde foi todo esse plástico?”, explica Thompson.
Desde então, Thompson passou a contribuir para o esforço visando obter uma resposta à questão: uma proporção do material plástico parece ausente porque foi reduzida a pedaços tão pequenos que mal conseguimos enxergá-los. Num artigo publicado em 2004, ele cunhou o termo “microplástico” para essas partículas ínfimas, prevendo – com razão, como se viu depois – que tais partículas tinham “potencial para uma acumulação em grande escala” nos oceanos.
Quando nos encontramos em Plymouth, Thompson e dois de seus assistentes haviam acabado de concluir um estudo, por meio do qual constataram que o plástico não se decompõe apenas pela força das ondas e da luz solar. No laboratório, eles viram anfípodes da espécie Orchestia gammarellus – um crustáceo minúsculo e parecido com camarão, muito comum na costa da Europa – devorando pedaços de sacos plásticos e determinaram que eles conseguem recortar uma única sacolinha em nada menos que 1,75 milhão de fragmentos. Os crustáceos mastigavam o plástico com rapidez ainda maior, observaram os cientistas, quando este estava recoberto com o limo microbiano que lhes serve normalmente de alimento. E depois acabavam cuspindo ou excretando os pedaços de plástico.
A presença desses microplásticos foi confirmada em todos os pontos do oceano que foram submetidos a exames: tanto nos sedimentos no leito marinho mais profundo como no gelo flutuante no Ártico – o qual, à medida que for derretendo no decorrer da próxima década, pode liberar na água do mar mais de 1 trilhão de partículas plásticas. A praia de Kamilo Point, no Havaí, onde caminhei, recebe resíduos plásticos do giro do Pacífico Norte, o mais sujo dos cinco sistemas de correntes que transportam detritos ao redor das bacias oceânicas, concentrando-os em áreas imensas. Até 15% da areia de Kamilo Point é, na verdade, formada de grânulos de microplástico – garrafas e embalagens com rótulos em chinês, japonês, coreano e até russo.
Thompson e eu falamos sobre isso a bordo do Dolphin, um barco que singra o mar encapelado diante de Plymouth. Thompson desenrola uma rede de trama fina usada no estudo de plâncton. Estamos perto do local onde, anos antes, outros pesquisadores haviam coletado 504 peixes, de uma dezena de espécies. Ao dissecá- los, Thompson ficou surpreso ao achar microplásticos no intestino de mais de um terço dos espécimes. A notícia correu o mundo.
Depois de avançarmos por alguns minutos, Thompson começa a recolher a rede. No fundo dela, reluz um punhado de confetes plásticos coloridos. O próprio Thompson não se preocupa com possíveis partículas de plástico no peixe com fritas que costuma comer – há poucos indícios de que o microplástico atravesse a parede intestinal e se aloje na carne que ingerimos. Para o pesquisador, o mais preocupante é aquilo que nenhum de nós consegue ver – as substâncias químicas acrescentadas aos plásticos para lhes conferir características determinadas, como maleabilidade, ou as partículas ainda menores a que podem ser reduzidos os microplásticos. De tão pequenas, essas nanopartículas poderiam atravessar os tecidos orgânicos de peixes e humanos. “Em alguns casos, é bem alta a concentração de substâncias químicas no momento da fabricação do plástico”, explica Thompson. “Mas não sabemos quanto resta dos aditivos químicos na hora em que o plástico fica tão pequeno a ponto de poder ser ingerido pelos peixes.”
Ele continua: “Ninguém achou essas nanopartículas no meio ambiente, pois elas estão abaixo da capacidade de detecção dos atuais equipamentos de análise. Mas tem gente convencida de que elas estão por aí, com a possibilidade de ficarem presas em tecidos orgânicos.”
Nesse ponto, Thompson está longe de ser alarmista – mas também está convencido de que os resíduos plásticos nos oceanos são bem mais do que uma questão estética. “Não acho que deveríamos esperar por indícios conclusivos em relação ao perigo, ou não, do consumo dos peixes”, diz. “O que já sabemos basta para começarmos a agir.”