Quem é Jane Goodall
Quando era uma cientista novata, Jane Goodall ficou famosa pelos estudos pioneiros sobre os chimpanzés na África. Raras imagens ilustram o seu projeto na selva, as concessões que precisou fazer e o fotógrafo que ela amou.
Esta reportagem está na edição de março de 2018 da revista National Geographic Brasil, publicada pela ContentStuff.
Um filme sobre a vida de Jane Goodall: Dirigido por Brett Morgen e com música de Philip Glass, Jane: a Mãe dos Chimpanzés resgata cenas inéditas para contar a história completa da pesquisadora. Estreia em 10 de março, às 20h15, no canal National Geographic.
“Para quem talvez esteja ouvindo a minha história de novo, peço desculpas”, disse Jane Goodall à plateia em uma palestra em 2015. Porém, certas histórias, completou ela, “soam melhores quando ouvidas de novo”. As linhas gerais da vida de Jane são instantaneamente reconhecíveis, de tanto que foram transmitidas: Jovem inglesa estuda chimpanzés na África e revoluciona a ciência dos primatas. Como isso aconteceu? Como uma apaixonada por animais, sem formação de pesquisadora, abriu caminho nos mundos masculinos da ciência e da mídia, fez descobertas fundamentais na sua área e se tornou um rosto mundialmente famoso do movimento conservacionista? Esta é a sua história.
Jane ganhou fama graças ao filme Miss Goodall and the Wild Chimpanzees, que estreou em 1965 e foi produzido pela National Geographic. Faz anos que não o vê. Mas agora eu mostro o documentário para ela em um laptop na casa de um amigo em Londres. A primatologista observa a si mesma com 28 anos – em abril, ela completa 84.
“Já pensou que divertido seria voltar a ter essa idade?”, observa ela, sorrindo. Jovem e cheia de ideais, Jane Goodall caminha pela floresta da Reserva de Caça Gombe Stream, na Tanzânia, com tênis de lona de cano alto, bermuda cáqui e o cabelo louro preso num rabo-de-cavalo que se tornaria a sua marca registrada. Parece estar fazendo pesquisa de campo – mas, na verdade, ela explica, estava reencenando episódios dos seus seis meses em Gombe para que o fotógrafo, Hugo van Lawick, pudesse filmá-los. Esses meses foram um período excepcional de solidão e descoberta – um tempo antes de haver câmeras presentes. Porque, depois disso, elas sempre estiveram presentes na sua vida, até hoje.
Executivos da National Geographic tinham detalhado o que Hugo deveria filmar em Gombe. Ela recorda, com humor: “Eles nos deram uma lista: Jane no barco, Jane de binóculo, Jane olhando um mapa”. Quando Miss Goodall and the Wild Chimpanzees foi transmitido pela CBS em 22 de dezembro de 1965, um público estimado em 25 milhões de telespectadores na América do Norte viu o documentário – uma audiência colossal, inclusive para os padrões atuais
Essa exposição trouxe reconhecimento internacional a Jane e deu a partida em uma carreira lendária em primatologia. A National Geographic encontrou em Jane uma pesquisadora fotogênica e uma contadora de história com a figura e a ocupação ideais para um filme: a mulher branca atraente fazendo trabalho científico na mata africana. Era ainda mais emocionante porque, naquela época, se costumava dissuadir as mulheres de seguir carreira científica. Desde então, Jane concluiu um doutorado na Universidade de Cambridge, escreveu dezenas de livros, orientou novas gerações de cientistas, promoveu a conservação no mundo em desenvolvimento e criou vários santuários para chimpanzés. Hoje, o programa Roots & Shoots, do Instituto Goodall, atua em quase 100 países, treinando jovens para serem líderes conservacionistas. E Jane ainda viaja cerca de 300 dias por ano para orientar governos, visitar escolas e fazer palestras.
Jane foi tema de mais de 40 filmes e de inúmeras apresentações na televisão. Agora é a protagonista de Jane: a Mãe dos Chimpanzés, um documentário da National Geographic sobre a sua vida e obra, com vídeos inéditos compondo um perfil revelador da mulher que se tornou uma celebridade pela sua devoção aos chimpanzés.
Em 1962, quando esteve em Gombe para documentar as descobertas de Jane, Hugo fez milhares de fotos e mais de 65 horas de vídeo em filme de 16 milímetros. Uma fração desse trabalho foi usada no especial para a televisão de 1965 e na revista National Geographic. O que os editores não usaram ficou guardado em latas e caixas de filme e acabou esquecido. Até que, em 2015, o material foi encontrado em um depósito subterrâneo na zona rural da Pensilvânia. Daqueles preciosos rolos de filme emanava a promessa de algo raro: uma nova perspectiva sobre Jane Goodall. Em vídeo, muito frequentemente no fim da filmagem, ela desmancha a sua fachada séria e olha para a lente – para Hugo, o seu diretor. Nesses breves momentos, podemos ver as faíscas do amor pelo homem atrás da câmera.
Esse material valioso oferece um vislumbre íntimo de Jane em um período decisivo: quando uma jovem que só conhecia a África dos livros de Tarzan e Dr. Doolittle foi jogada na sua fantasia e quando as descobertas de uma cientista caloura refutaram crenças arraigadas sobre os parentes mais próximos dos seres humanos.
Em Gombe, Jane enfrentou todo tipo de ameaça natural: malária, parasitas, serpentes, tempestades. Mas foi para lidar com o mundo lá fora que ela precisou de grande astúcia estratégica e delicadeza diplomática. No começo da carreira, confrontou uma classe científica majoritariamente masculina que não a levava a sério, executivos de meios de comunicação cujo apoio exigia que ela se submetesse a um roteiro e à glamourização, homens que se diziam os seus parceiros ou patronos mas também almejavam controle, concessões ou um relacionamento que ela não queria.
Diante de todas essas dificuldades, a filosofia de Jane foi sempre a mesma: suportar o menosprezo, fazer concessões e sacrifícios – contanto que servisse para dar respaldo ao seu trabalho.
Desde a infância, na Inglaterra, Valerie Jane Morris-Goodall demonstrou imenso amor pelos animais e o desejo de trabalhar com eles na África. A família não tinha recursos para custear a universidade; por isso, ela foi estudar secretariado. Trabalhou em Oxford, e depois para uma produtora de documentários em Londres. Em meados de 1956, voltou para a sua cidade e foi ser garçonete, economizando para comprar uma passagem de navio para o Quênia.
Em Nairobi, ela solicitou uma entrevista com o paleoantropólogo Louis S.B. Leakey, cujo interesse pelos grandes primatas nasceu dos seus estudos pioneiros sobre as origens humanas. Leakey contratou Jane na hora como secretária, e logo viu nela uma cientista em potencial. Providenciou para que ela fosse estudar sobre primatas, enquanto ele procurava verba para mandá-la à Tanzânia fazer pesquisa de campo.
Poucos meses depois de conhecê-la, ele disse que estava apaixonado por ela.
Jane descreveu em cartas que ficou “horrorizada” com a declaração de Leakey, que era um homem 30 anos mais velho que ela – e casado. Meses depois de Jane deixar bem claro que não poderia retribuir aqueles sentimentos, Leakey ainda lhe mandava cartas de amor.
Anos mais tarde, em uma grande entrevista com Virginia Morell, autora de um livro sobre a família Leakey, Jane contou: “Meu medo era pelo que a rejeição poderia significar para o meu estudo dos chimpanzés”. Leakey, no entanto, nunca misturou as coisas: não lhe negou apoio, e em meados de 1960 Jane estava montando um acampamento na Reserva de Gombe Stream, perto da margem do Lago Tanganica, com financiamento suficiente para seis meses de trabalho de campo. Como o governo não permitia que uma mulher vivesse sozinha na reserva, Vanne Morris-Goodall foi junto, como acompanhante da filha.
Desde o princípio, Jane seguiu os seus instintos nos procedimentos de pesquisa. Como ela não sabia que a prática científica era identificar os animais estudados por números, acabou por registrar as suas observações sobre os chimpanzés com nomes que ela escolheu: Fifi, Flo, Sr. McGregor, David Greybeard. Referia-se aos chimpanzés como indivíduos com traços e personalidades distintos. Por exemplo, quando uma fêmea que ela chamava de Sra. Maggs estava preparando um ninho na copa de uma árvore para passar a noite, Jane escreveu que a chimpanzé “testou os galhos exatamente como uma pessoa quando testa as molas de uma cama de hotel”.
Jane passava a maior parte do tempo localizando animais com o binóculo; aproximava-se aos poucos para que eles se acostumassem à sua presença enquanto se sentava e fazia anotações. Mas, a um mês do fim dos recursos, ela não tinha feito o tipo de descoberta que julgava digna da fé depositada por Leakey. Ela então fez três descobertas que não só deixariam Leakey orgulhoso como revolucionariam toda a ciência estabelecida.
Na primeira, ela observou um chimpanzé comendo a carcaça de um bicho pequeno, o que desmentia a crença prevalecente de que os grandes primatas não ingeriam carne. Aquele chimpanzé destacava-se pelo seu “cavanhaque” grisalho, e ela o chamou de David Greybeard (“Barba Grisalha”). Ele, em troca, abriu-lhe as portas para o mundo oculto dos chimpanzés de Gombe
Em menos de duas semanas, Jane tornou a observar David Greybeard, mas, dessa vez, o que ela viu foi um divisor de águas. Acocorado diante de um cupinzeiro, o chimpanzé pegou um talo de capim e o introduziu em um túnel. Retirou o capim cheio de cupins grudados e os devorou. Em outro momento, Jane viu-o pegar um graveto, remover as folhas e usá-lo para pescar cupins. David Greybeard tinha usado e fabricado ferramentas – dois comportamentos até então considerados exclusivos dos seres humanos.
Quando Jane passou uma mensagem a Leakey com essa notícia, ele respondeu:
TEMOS QUE REDEFINIR FERRAMENTA
REDEFINIR HOMEM
OU ACEITAR CHIMPANZÉS COMO SERES HUMANOS.
Tempos depois dessas poderosas descobertas, a National Geographic concedeu bolsa para Jane Goodall continuar o seu trabalho em Gombe.
Quando Jane começou a redigir e publicar o seu estudo de campo, foi recebida com ceticismo pela comunidade científica. Afinal de contas, ela não tinha formação acadêmica – apenas um diploma de secretária declarando que ela sabia datilografar sem olhar para o teclado.
No segundo trimestre de 1962, Jane fez uma apresentação no simpósio sobre primatas da Sociedade Zoológica de Londres, e causou boa impressão em muitos na plateia, inclusive no zoólogo e escritor Desmond Morris. Mas também enfrentou zombaria. Um integrante da entidade fez uma crítica mal disfarçada ao trabalho dela, classificando-o como “relatos isolados e […] especulações” que não traziam “uma verdadeira contribuição à ciência”. Um ácido informe da Associated Press começava dizendo “Loura esguia com mais tempo para macacos que para homens contou hoje como passou 15 meses na selva estudando os hábitos dos primatas”.
Um registro visual das descobertas de Jane acabaria com discussões desse tipo. Mas Jane recusou o pedido da National Geographic para enviar um fotógrafo; disse que um estranho poderia perturbar o vínculo que ela estava formando com os chimpanzés. Depois de passar meses se aproximando o suficiente dos animais, ela escreveu em uma carta: “Quero tirar minhas próprias fotos – ou fazer o melhor que poder”.
A National Geographic enviou uma câmera e vários rolos de filme para a África, com instruções de uso detalhadas. Jane deu tudo de si, mas os seus alvos peludos tendiam a ficar ocultos nas sombras, e as fotos que ela mandava não eram boas para o padrão editorial da revista. Os editores voltaram a pressionar por um fotógrafo, mas Jane se opôs: a sua irmã mais nova, Judy, tinha experiência em fotografia, e as duas eram parecidas, inclusive na voz: os chimpanzés não se incomodariam com a presença da irmã.
Louis Leakey bancou a viagem de Judy para Gombe com recursos da venda de direitos de publicação das primeiras fotos para um semanário britânico. Mas, no final, os editores também não gostaram das fotos dela. A revista queria que Jane escrevesse um artigo sobre o seu trabalho – só que a reportagem não poderia prosseguir sem boas imagens dos animais, avisou um deles. Jane compreendeu que, se não conseguisse a cobertura do seu trabalho pela revista, a sua verba da National Geographic poderia ficar em perigo.
Leakey tinha ajudado Jane a ser aceita em um programa de doutorado na Universidade de Cambridge – ela foi uma das pouquíssimas pessoas sem diploma de graduação já admitida pela instituição. Ele pediu à National Geographic que subvencionasse Jane enquanto ela redigia o seu estudo sobre Gombe e trabalhava na dissertação.
Quando a revista recusou o pedido, alegando que “essa moça […] não tem qualificações, pois não possui diploma universitário”, Leakey, furioso, enviou um memorando com uma lista das realizações da sua protegida. Os executivos da National Geographic concederam a Jane a verba solicitada, mas, em troca, ela teve de concordar em receber um fotógrafo profissional em Gombe. Por recomendação de Leakey, a revista contratou Hugo van Lawick para o serviço.
Trabalhar em Gombe com Jane seria uma oportunidade de ouro ao holandês de 25 anos que tinha experiência em filmagem na área de história natural. Jane escreveu a uma amiga que, na verdade, estava ansiosa pela chegada dele, pois fora informada de que Hugo era “um fotógrafo de primeira classe, maravilhoso com animais”, e acrescentou: “É bom demais para ser verdade”.
Quando entrevistei Jane em 2015, ela garantiu que “Louis estava era procurando um companheiro para mim quando mandou Hugo. Ele mesmo admitiu isso”. Jane acredita que, no fim, o amor de Leakey por ela não era egoísta.
Hugo chegou a Gombe em agosto de 1962. De cara, um problema: ele fumava muito, o que Jane detestava. Fora isso, os dois combinavam bem, ambos fervorosos observadores de animais, devotados ao trabalho. Em carta a uma amiga, ela escreveu: “Somos uma família muito feliz. Hugo é uma simpatia, e nos damos muito bem”.
Enquanto documentavam o comportamento dos chimpanzés, Jane e Hugo não achavam que valia a pena filmar a pesquisadora em ação. Mas os profissionais da National Geographic estavam cada vez mais interessados em apontar a câmera para ela. “Sei que não vai esquecer de tirar algumas fotos da vida no acampamento – fazer comida, escrever relatórios à luz do lampião, tomar banho, lavar o cabelo e coisas do tipo”, escreveu o assistente de ilustração Robert Gilka em uma carta a Hugo no terceiro trimestre de 1962. “Falei em lavar o cabelo porque recebemos uma foto assim da última viagem de Jane à reserva, mas […] a exposição era tão baixa que não foi possível reproduzir.” E Gilka frisou: boas fotos de Jane lavando os cabelos num riacho “ajudariam bastante”.
Na casa londrina onde Miss Gooodall and the Wild Chimpanzees continua rodando no laptop, chegamos à cena da lavagem do cabelo. Ainda hoje, essa cena incomoda Jane. “Fiquei brava quando filmaram isso”, comenta ela. “Por quê?”, pergunto. “Não há motivo para que me vejam lavando o cabelo. Eu não conseguia entender que interesse poderia ter isso.”
O trabalho de Hugo agradou aos editores. Ele estava atendendo a todas as demandas: registrando imagens do uso de ferramentas, da construção de ninhos e das hierarquias sociais dos chimpanzés – e ainda fazendo as fotos de interesse humano com Jane que Gilka havia pedido.
As suas fotos foram publicadas junto com as palavras de Jane em uma reportagem especial da revista de agosto de 1963: “Minha Vida entre Chimpanzés Selvagens – Uma corajosa cientista britânica vive entre grandes primatas em Tanganica e descobre detalhes até então desconhecidos do comportamento desses animais”.
A publicação foi um tremendo sucesso. O presidente da National Geographic Society, Melville Grosvenor, pagou bônus a Jane e Hugo e elogiou a reportagem como “magnífica”. Na primeira página, um texto apresentando Jane captava a dualidade da imagem pública que estava sendo criada para ela. Em um parágrafo, Jane era descrita como “uma zoóloga científica moderna” – e, no seguinte, era “uma encantadora jovem inglesa”.
Enquanto Jane e Hugo expandiam a estação de pesquisa em Gombe, desenvolviam ideias para novos filmes, mas a National Geographic Society queria manter os holofotes em Jane nos filmes feitos para a televisão e para o circuito de palestras. Os pedidos eram cada vez mais específicos, como nesta carta para Hugo, escrita por Joanne Hess, do setor de palestras: “Será muito útil que haja várias fotos de Jane, para as quais ela terá de posar, que a mostrem olhando pelo binóculo, rindo dos chimpanzés, fitando os animais nas árvores, fazendo anotações no seu caderno etc.”, escreveu Hess. “Ou seja, você deve tirar uns 60 metros de fotos de Jane, em close-up, “fingindo” fazer essas coisas, para podermos inserir imagens dela no filme.”
As pressões para posar irritaram Jane, mas ela se conduziu diplomaticamente. Em uma carta a Melvin Payne, cuja comissão supervisionava a verba da sua pesquisa, Jane escreveu: “Sem dúvida, entendo que é necessário construir uma história em torno de ‘Jane Goodall’, e temos cooperado com Joanne o melhor possível”.
Mas, quando Hess foi a Gombe para acompanhar as filmagens, Jane se permitiu um ato privado de rebelião. “Já coletamos uma porção de aranhas e centopeias de aparência assustadora, e vamos largá-las ‘por acaso’ na barraca dela, para ver se abreviamos a visita”, escreveu Jane à mãe.
Quando entrevistei Jane durante uma visita a Gombe em 2015, ela encarou mais filosoficamente o seu tratamento como celebridade:
JANE GOODALL: Lá estava aquela jovem charmosa, no meio da selva com animais possivelmente perigosos. As pessoas gostam de romantizar, e me viam como se eu fosse aquele mito que tinham criado na cabeça delas. E a revista também ajudou a criar esse mito.
TONY GERBER: Mas muita gente resistiria, e argumentaria “Essa aí não sou eu”.
JANE: Não havia outro modo de me retratar. Não era falso. Mas acontece que as pessoas pegam os fatos e criam histórias com base neles.
GERBER: Em algum momento você apoiou? Floreou as situações? Embelezou as coisas?
JANE: Bem, em certo momento, percebi que, se era para as pessoas pensarem daquele modo, pelo menos, assim, elas me escutariam, o que é verdade. E isso ajudaria a conservar os chimpanzés e a fazer tudo o mais que eu precisava fazer.
No fim de 1963, Jane confidenciou a amigas que ela e Hugo estavam “muito apaixonados”. Durante os feriados do Natal, na casa da sua família em Bornemouth, no litoral sudeste da Inglaterra, ela recebeu um telegrama: “QUER CASAR COMIGO PONTO HUGO”. Ela disse sim. Marcaram a data para 28 de maio, um mês depois do evento que seria determinante para Jane: a sua primeira grande palestra pública nos Estados Unidos.
Falar no palco da famosa sala de concerto DAR Constitution Hall, em Washington, mexeu um pouco com os nervos de Jane, mas os membros da comissão de palestras da National Geographic pareceram mais ansiosos. Ela deveria falar tendo ao fundo um filme com imagens feitas por Hugo. Aproximou-se o 28 de fevereiro, e a comissão pediu um rascunho do discurso. Jane não tinha.
Para assegurar o sucesso da palestra, Joanne Hess e a sua equipe pediram a Jane que fosse com eles até a sala de edição para treinar a sua fala enquanto o filme era exibido. Quando a entrevistei em Gombe em 2015, ela recordou a cena: “Era natural que eles quisessem ouvir o que iria ser dito”, contou. “Mas eu tenho muita dificuldade para treinar o que vou falar; as palavras só saem direto para a plateia. Na época, eu não sabia disso. Só sabia que, com três pessoas me ouvindo naquela sala de edição, não era uma palestra! Eles pareciam estar cochichando uns com os outros ‘Não seria melhor cancelar? Vai ser um desastre! Podemos mesmo associar a National Geographic a essa mocinha? Parece que ela não sabe o que vai dizer’. Eu sabia muito bem o que iria dizer, mas não faria uma palestra inteira para três pessoas numa sala de edição.”
Na palestra e exibição do filme na sala DAR Constitution Hall, Jane falou sobre as suas descobertas científicas, que descreveu como “resultados muito além do que eu jamais sonhei”. Evocou cenas da beleza e tranquilidade de Gombe. E, como faria por toda a sua carreira, ela descreveu chimpanzés de acordo com as suas personalidades e com os nomes que ela tinha dado a cada um. Disse que Fifi era “ágil e acrobática” e que o irmão mais velho de Fifi, Figan, era um adolescente que “se acha um tanto superior”. Jane batizou um bebê que estava “começando a se firmar nos pés” como Gilka, uma travessura com o nome do editor da National Geographic.
E, ao explicar a necessidade de proteger os chimpanzés e impedir que fossem baleados ou mandados para o circo, Jane falou sobre o confiante primata que lhe abrira a porta para algumas das suas descobertas mais importantes. “David Greybeard […] pôs toda a sua confiança no homem. Devemos desapontá-lo?”, argumentou. “Cabe a nós garantir que pelo menos alguns desses seres maravilhosos, quase humanos, continuem a viver em paz no seu hábitat.”
A palestra foi um triunfo, um marco na sua ascensão como figura pública – uma posição que ela estava aprendendo a administrar em função do que achava importante. O evento chamou a atenção de um executivo da National Geographic que estava montando um departamento de especiais para a televisão. Parte das filmagens de Gombe foi usada no primeiro programa, transmitido em horário nobre: Miss Goodall and the Wild Chimpanzees, com narração de Orson Welles.
Quando Hugo e Jane examinaram previamente o filme acabado, reclamaram que havia muitas imprecisões. Julgaram a narração de Welles flagrantemente acientífica e, por insistência de Jane, parte do roteiro foi reformulada.
Até hoje, assistindo ao filme no laptop, Jane aponta defeitos. Esse leopardo não foi fotografado por Hugo, era do banco de imagens. Essa cena não é em Gombe, é no Serengeti. Quando Welles começa uma sentença com “Depois de procurar em vão por dois meses”, Jane fuzila: “Não é verdade que passei dois meses sem avistar um único chimpanzé. Isso é uma tremenda mentira”.
O filme, contudo, foi um sucesso comercial. Jane e Hugo tinham esperança de fazer outro projeto de filmagem e ter mais controle criativo, mas os executivos andavam com outras ideias. Queriam fazer mais com Jane em Gombe – e não necessariamente com Hugo. Jane era a estrela; Hugo, um coadjuvante.
Nos anos após as filmagens em Gombe, Jane e Hugo seguiram caminhos diferentes. Em 1967, tiveram um filho, Hugo Eric Louis van Lawick, conhecido pelo seu apelido, Grub.
Com o trabalho de Jane ancorado em Gombe e a paixão de Hugo por filmagens no Serengeti, a mais de 600 quilômetros, os dois se distanciaram. Em 1974, Jane e Hugo divorciaram-se. Em 1975, ela casou-se com Derek Bryceson, um alto funcionário do governo tanzaniano.
Grub, aos 8 anos, vivia com a avó e estudava em Bornemouth. Derek e Jane estavam casados havia apenas cinco anos quando ele morreu de câncer, em 1980. Depois de quatro décadas de carreira, Hugo morreu de enfisema, em 2002.
Quando entrevistei Jane em Gombe, fazia 55 anos que ela havia saído de um barco e pisara na praia de pedregulhos africana pela primeira vez. Ela ainda consegue visualizar a paisagem do Lago Tanganica daquele tempo: “É como se fosse uma outra vida, faz tanto tempo”.
A primatóloga ainda se lembra até das suas encenações, que hoje conta sorrindo.
No filme, Jane se vê aos 28 anos, na praia. É uma hora mágica, o pôr do sol. A exposição de Hugo é perfeita. Na tela, Jane põe um cobertor nos ombros, bebe em uma caneca de ágata.
Agora Jane é a narradora. “Essa caneca está vazia, eu juro. Não tem nada dentro”, diz ela.
Tony Gerber é um cineasta premiado e cofundador da Market Road Films, uma produtora de Nova York. Para a National Geographic, ele já escreveu e dirigiu 12 documentários.