O inexplicável e iminente apocalipse dos mexilhões de água doce
Será a poluição, as mudanças climáticas, alguma doença desconhecida? Cientistas tentam desvendar o mistério.
ABINGDON, VIRGÍNIA, EUA Ao olho destreinado, as águas cristalinas do Rio Clinch, que serpenteia a região sudoeste da fronteira entre os estados da Virgínia e Tennessee, nos Estados Unidos, parecem límpidas e saudáveis. Mas Jordan Richard consegue identificar os animais mortos em segundos.
Em uma manhã fresca de outono, na Ilha de Sycamore, logo antes de o Clinch cruzar para o estado do Tennessee, Richard se curva para recolher do leito do rio uma concha marrom do tamanho da palma da mão. O que sobrou da carne que antes unia as duas metades do mexilhão da espécie Actinonaias pectorosa agora se projeta para fora, como se fosse uma língua pegajosa e de cheiro desagradável. Observando que esse mexilhão tinha morrido havia um ou dois dias, o biólogo do Serviço de Pesca e Vida Silvestre dos EUA (USFWS) joga a concha em um saco etiquetado, para posterior análise.
Com sorte, esse falecido molusco pode conter pistas sobre o mistério das mortes dos mexilhões do Rio Clinch.
Desde 2016, o número de exemplares dessa espécie, que já foi uma das espécies de mexilhões mais abundantes do Clinch, despencou em mais de 90%, de acordo com uma pesquisa de Richard e Rose Agbalog, também bióloga do USFWS. As populações das cerca de 30 espécies de mexilhões de água doce do rio caíram pela metade. Essa mortalidade em massa é um dos motivos pelos quais o Clinch contém a maior concentração de espécies aquáticas em risco de extinção do continente, com 29 mexilhões ameaçados e 19 espécies de peixe vulneráveis.
Esse, contudo, não é um incidente isolado: em todos os cantos dos EUA e da Europa, ocorrem mortes de mexilhões de água doce em números alarmantes. Para piorar a situação, ninguém consegue explicar o que está acontecendo, o que dá margem a todo tipo de investigação, desde doenças infecciosas até mudanças climáticas e poluição das águas.
A conscientização do público sobre esse problema, que Richard chama de apocalipse dos mexilhões de água doce, tem sido um desafio, principalmente porque os moluscos não contam com o apelo cultural e as carinhas encantadoras dos pandas e dos tigres.
Além disso, os mexilhões são cruciais para os ecossistemas que habitam, porque limpam as impurezas da água e criam um abrigo para outras espécies em suas conchas (depois de décadas de vida). Embora os mexilhões de água doce não sejam comestíveis — são duros e têm gosto ruim — existem atividades pesqueiras que visam esses animais para abastecer uma indústria de botões e pérolas que gera milhões de dólares ao ano nos EUA. Ademais, os ecologistas estimam que os invertebrados proporcionem milhões de dólares em serviços ambientais.
Tony Goldberg, especialista em doenças da vida selvagem na Universidade de Wisconsin-Madison, é bem direto quanto à importância dos mexilhões: sem eles, "o ecossistema de água doce mudará para sempre", diz ele.
Desvendando o mistério dos mexilhões
Quando entrou para o escritório do USFWS em Abingdon, Virgínia, no outono de 2016 (do hemisfério norte), Richard não fazia ideia de que se depararia com um dos maiores mistérios ecológicos da década. Algumas semanas depois, moradores de Kyles Ford, no Tennessee, informaram uma grande quantidade de mexilhões mortos.
Então, Richard e Agbalog entraram em sua SUV caindo aos pedaços e dirigiram durante uma hora para o sul, em direção ao Rio Clinch, encheram diversos sacos de lixo com conchas de mexilhões mortos e levaram-nos de volta ao escritório do USFWS. A análise inicial da dupla não revelou a causa da morte. E, ao retornarem uma semana depois, descobriram que o leito do rio estava novamente coberto de mexilhões da espécie Actinonaias pectorosa.
No outono de 2017, aconteceu o mesmo: um pico no número de mexilhões mortos. Em 2018, outras espécies começaram a sucumbir, como os mexilhões das espécies Medionidus conradicus, Dromus dromas, Hemistena lata, Lemiox rimosus e, conforme as mortes foram se propagando à montante do Tennessee à Virginia, também a Ptychobranchus subtentum. Quando Richard entrou em contato com a bastante unida comunidade de pesquisa de mexilhões de água doce, cientistas de todas as partes do país relataram colapsos similares, do estado de Washington até Oklahoma e Wisconsin.
Naquele momento, a doutoranda em ecologia Traci DuBose e sua orientadora Caryn Vaughn, da Universidade de Oklahoma, começaram a investigar a mortandade em massa de mexilhões nos Rios Kiamichi e Mountain Fork. A pesquisa de DuBose e Vaughn procurou explicar as mortes dos mexilhões daqueles rios em função da grave estiagem.
Mas, no caso das outras populações, a causa continuou um mistério. A ausência de uma solução consumia Richard, que revirava o escritório em busca de documentos antigos que contivessem alguma pista, fazendo uma pilha de meio metro de pastas sanfonadas marrons que acabaram ficando tortas e rasgadas de tanto serem manuseadas.
Uma pista: em 1998, um caminhão carregado de aceleradores de vulcanização capotou em um fosso próximo ao Rio Clinch, matando praticamente todos os mexilhões a centenas de metros dali, rio abaixo. O derramamento, porém, aniquilou também indivíduos de outras espécies do rio — algo de que nem Richard nem Agbalog haviam visto evidências recentemente.
Do outro lado do oceano, 26 países europeus relataram declínios de até 90% em diversas populações de mexilhões, principalmente as do mexilhão da espécie Margaritifera margaritifera. Lá, existem os mesmos perigos, além dos riscos de represas, espécies invasoras e declínios nas populações de peixes hospedeiros, que ajudam os mexilhões a se reproduzir.
Desafios da pesquisa
Para descobrir o que matava os mexilhões do Rio Clinch, Richard sabia que precisava começar a pensar de forma mais sistemática.
Com a ajuda de Goldberg, Richard criou um experimento para comparar as populações de mexilhões doentes com as dos saudáveis — um estudo de controle de caso projetado para verificar se havia algo diferente com os mexilhões doentes que pudesse explicar as mortes.
Porém, sem nenhuma ideia do que poderia ser essa doença — ou se é que houvesse alguma doença — Richard e Goldberg tiveram que elaborar diversas hipóteses. Assim sendo, começaram a realizar o sequenciamento de DNA do tecido de mexilhões mortos para identificar possíveis patógenos ou alterações em seus micróbios causadas pelo estresse que pudessem deixar os invertebrados suscetíveis a doenças.
No início de 2018, Richard e Agbalog dividiram os locais do estudo no Rio Clinch na fronteira estadual. No Tennessee, eles escolheram áreas de ocorrência das mortes dos mexilhões da espécie Actinonaias pectorosa; os locais ao norte, na Virgínia, pareciam conter mexilhões saudáveis (estes seriam os controles do experimento). Mas, assim que iniciaram o trabalho em campo no fim de agosto, começaram a ter problemas.
O que quer que estivesse matando os mexilhões também havia devastado os locais escolhidos para o estudo no Tennessee, de onde sobraram pouquíssimos mexilhões para serem estudados. E, para piorar, os mexilhões da espécie Actinonaias pectorosa começaram a morrer em larga escala em alguns dos locais da Virgínia, inclusive na Ilha de Sycamore. Somente um local continuava intacto.
Mas os biólogos persistiram, indo e voltando aos mesmos locais em 2019. Até o momento, a situação deste ano está tão ruim quanto a dos três anos anteriores — e os biólogos ainda não tiveram progresso na solução do mistério.
Ao seu dispor
Ao andar com dificuldade pelas águas cristalinas e agitadas ao lado de Sycamore, Agbalog para em um banco de areia no meio do rio. “Antes havia 60 mil mexilhões por aqui. Agora, só restaram de 2 a 3 mil”, diz.
Levantando a voz em meio ao intenso burburinho das águas, Richard acrescenta que os mexilhões filtram pelo menos três vezes cada gota d'água que passa por eles. É um tremendo serviço de limpeza dos rios, o que também significa, porém, que os mexilhões são constantemente expostos a diversos patógenos.
“O sistema imunológico de um mexilhão é um rio saudável", diz Agbalog.
Dirigindo ao longo da margem do Clinch, Richard aponta tudo o que vem prejudicando o rio. Temos as mudanças climáticas, que podem estar causando um estresse térmico entre os mexilhões. Mas Richard acredita que o maior fator seja a atividade madeireira, que priva as águas das grandes árvores que lhes fornecem sombra e resfriam a água. O calor em si não afeta apenas os mexilhões, deixando-os mais suscetíveis a doenças; o aumento das temperaturas também pode prejudicar as espécies das quais os mexilhões retiram seu alimento.
“É assim que acontece a extinção. Uma população inteira sob pressão”, diz Richard. “Será que eles não terão uma folga?”
Uma chance aos mexilhões
Independentemente do que esteja causando as mortes em massa, não existe dúvida de que a inexistência de mexilhões em um rio traz graves efeitos em cascata para os habitantes desse rio, como descobriu DuBose, da Universidade de Oklahoma.
Quando os mexilhões morrem, seus corpos em decomposição estimulam uma breve onda de produtividade, logo seguida de um rápido declínio na diversidade das espécies, uma vez que os rios ficam mais turvos e escuros sem os mexilhões para filtrar os sedimentos. É um fenômeno que Agbalog e Richard viram acontecer em todo o rio Clinch.
“Não se trata apenas dos mexilhões. Os corpos de água doce estão sofrendo um declínio geral”, diz Rachel Mair, bióloga do Viveiro Nacional de Peixes do Rio Harrison, no leste do estado da Virgínia, que já realizou um trabalho no Clinch. “É muito triste o fato de que talvez os mexilhões não existam mais nas futuras gerações."
Entender o que está acontecendo com os mexilhões pode ajudar biólogos como Mair a desenvolver um plano para propagar os mexilhões que ainda restam em criadouros e, depois, soltá-los de novo na natureza.
O problema é que arrecadar fundos para uma tarefa dessas não será fácil, principalmente para uma espécie que muitas pessoas nem sabem que existe. Mas elas deveriam saber, diz Richard.
“Qual é a pior coisa que pode acontecer se nos importarmos? Teremos um rio mais limpo.”