Nos presídios de Brasília, agentes penitenciários são 25% dos infectados pelo novo coronavírus
Sistema prisional do Distrito Federal expõe a vulnerabilidade dos servidores públicos que também não podem parar. “Não há dúvidas de que vou me infectar”, diz agente. "É questão de tempo."
Complexo Penitenciário da Papuda, em Brasília: com 231 agentes oficialmente infectados pela covid-19, a unidade da federação é uma das mais atingidas do Brasil. Segundo o secretário responsável, o DF também é a unidade que fez mais testes em presos e sevidores.
As entrevistas com os agentes penitenciários foram concedidas por videochamada. Os nomes usados são fictícios, para preservar a identidade dos profissionais.
Nas condições ditas normais, a “temperatura” e a “pressão” do trabalho de um agente penitenciário já são, por si só, bastante elevadas. Checar o número de detentos, executar a escolta e acompanhar o banho de sol estão entre as tarefas básicas da rotina dos profissionais nas unidades prisionais do Brasil. A rápida disseminação da doença causada pelo novo coronavírus, a covid-19, pelo país multiplicou a angústia e a tensão desses servidores públicos a quem, a exemplo de médicos e enfermeiros, não é permitido parar.
Há dez anos alocado no Centro de Detenção Provisória (CDP) do Distrito Federal, o agente penitenciário Roberto integra uma equipe com menos de 40 homens, dos quais pelo menos 15 foram infectados pelo coronavírus nas últimas semanas. Um deles esteve internado em estado grave. Alguns retornaram ao posto, mas a maioria está em isolamento. Roberto segue apreensivo em sua jornada de 24/72 – quando trabalha-se por um dia inteiro e folga-se nos três seguintes. “É uma questão de tempo. Não há dúvidas de que vou me infectar”, diz ele, consternado. “Só peço em minhas orações que eu desenvolva uma forma branda da doença.”
O medo de Roberto encontra eco nas estatísticas: em todo Distrito Federal, oficialmente 231 agentes penitenciários haviam contraído a covid-19 até a última quinta-feira (28/05). O número representa 25% do total de pessoas infectadas no sistema prisional do DF: 922. Segundo a Secretaria de Segurança do DF (SSP-DF), 156 profissionais se recuperaram da doença, enquanto um perdeu a vida. O Brasil possui atualmente cerca de 770 mil presos, de acordo com o Departamento Penitenciário Nacional (Depen), dos quais 15,3 mil estão no DF. O contingente de agentes penais nessa unidade da federação é de 1,8 mil.
“Era para as medidas terem sido tomadas antes que o coronavírus chegasse até a gente. Isso teria evitado esse número alarmante de casos”
Os números falam, mas é pelo olhar dos agentes penitenciários que se pode ter uma ideia concreta de como a pandemia trouxe ainda mais agonia para o já hostil ambiente das cadeias. Roberto conta que, pela natureza do ofício, não é possível evitar aglomerações: as atividades dentro de um presídio são coletivas, em equipes que demandam um tipo de contato físico que faz o termo “distanciamento social” parecer balela.
O policial penal, como os integrantes da categoria são oficialmente designados, já realizou o teste rápido para a covid-19 três vezes – sempre por medo, nunca pelos sintomas. O inimigo invisível assombra os agentes e o ambiente tensionado resulta, por vezes, em um comportamento paranoico. “A doença pode vir do ar-condicionado, do banco da viatura, da cama compartilhada”, observa ele. Em casa, Roberto se priva do contato com a esposa e os filhos pequenos. “Eu tenho medo, sim, mas estou me preparando para ser contaminado.”
O CDP, onde o agente trabalha, integra o Complexo Penitenciário da Papuda, próximo à região administrativa de São Sebastião. A Papuda agrupa ainda outros três presídios: o Centro de Internamento e Reeducação (CIR) e as penitenciárias destinadas aos presos do regime fechado PDF I e PDF II. O sistema prisional do DF conta com outras duas unidades: o Centro de Progressão Penitenciária (CPP) e a Penitenciária Feminina do Distrito Federal (PFDF).
Em termos comparativos, o estado de São Paulo possui 35 mil agentes penitenciários. Segundo dados do Sindicato dos Funcionários do Sistema Prisional do Estado de São Paulo (Sifuspesp) e da Secretaria da Administração Penitenciária (SAP), estima-se que pelo menos 180 agentes penitenciários tenham sido infectados pela covid-19, com 12 óbitos confirmados. O número de servidores testados, contudo, não foi encontrado.
Já no DF, a SSP informou em boletim que 4,7 mil testes foram realizados em presos e policiais penais. A cifra, segundo Adval Cardoso, secretário de Estado de Administração Penitenciária, coloca o DF como a unidade da federação com os índices mais elevados de covid-19 dentro do sistema carcerário nacional. “Somos responsáveis por 87,5 % de todos os testes ocorridos no sistema prisional do Brasil”, informou Cardoso em entrevista à National Geographic Brasil. “Nenhum estado se aproxima disso. Se o número parece alto, é por que não estamos escondendo nada.”
Entrada da PDF I, no Complexo da Papuda, em Brasília. De acordo com agentes penitenciários, o trabalho que fazem – checagem de detentos e escoltas dentro e fora dos presídios – muitas vezes é coletivo e dificulta a aplicação do distanciamento social.
Inimigo invisível, problemas reais
Colega de plantão de Roberto na CDP, Élcio não conseguiu evitar o contágio: o agente passou mais de 20 dias afastado da Papuda após confirmar que havia sido contaminado durante o trabalho. Ele acredita ter adquirido a covid-19 de um detento recém-encarcerado em um dia de plantão, no começo de abril. “Eu estava em outro bloco, mas não estávamos usando os equipamentos de proteção individual (EPIs) com tanta ênfase ainda”, lembra ele.
Os sintomas começaram poucos dias depois. Élcio cogitou ser uma simples sinusite, mas ficou preocupado. Foi ao hospital e uma tomografia constatou pneumonia. Um teste rápido, contudo, descartou temporariamente o diagnóstico de coronavírus. Deram-lhe um atestado médico e ele foi para casa tratar com remédio as supostas pneumonia e sinusite. O desconforto respiratório se intensificou nos dias seguintes e, cada vez mais cansado, voltou ao hospital. Dessa vez, o diagnóstico foi certeiro: 25% dos pulmões comprometidos pelo coronavírus e um alto risco de trombose, determinado pelo aumento do dímero D no sangue.
Élcio passou três dias internado. Tomou o antibiótico amoxicilina na veia e precisou de oxigênioterapia por máscara por 36 horas. De volta para casa, continuou a ser monitorado pelos médicos do hospital particular onde se tratou, e alguns dias depois um teste rápido mostrou que o vírus não estava mais lá. Mas os anticorpos, sim. Ele imagina que, mesmo antes de ser diagnosticado, pode ter transmitido a doença para colegas. “Cada unidade tem um ou dois alojamentos, com dez camas cada. Lá, durante os plantões, os agentes descansam em turnos, bem próximos um do outro”, explica. “Distanciamento em ambiente carcerário realmente não funciona direito.”
“(As cadeias) são ambientes insalubres, sem ventilação adequada. Qualquer indício de contágio é motivo para que o detento ou os agentes sejam isolados imediatamente”
De volta ao batente, ele ainda sente falta de ar e resolveu pegar mais leve até se sentir plenamente recuperado. Os pulmões, disse o médico, vão precisar de pelo menos três meses para voltar à boa forma. Élcio crê que, apesar de tudo, é um homem sortudo, já que esteve, sim, muito doente, mas conseguiu retomar a vida. “Não achei que fosse morrer”, diz ele, “mas sabia que era uma situação grave”.
Ele conseguiu retornar às atividades na Papuda, mas muitos ainda não. Segundo Élcio, há pelo menos 12 homens a menos em sua equipe de trabalho, o que aumentou significativamente a falta de segurança entre os profissionais. “O risco de fuga é maior nessa situação”, diz ele, abalado. “Estamos fazendo o serviço noturno com o quantitativo abaixo do mínimo necessário.”
A assistente social Newone Ferreira da Costa, que trabalhou por mais de 30 anos no sistema prisional do estado do Rio de Janeiro, acredita ser praticamente impossível que um número tão restrito de agentes seja responsável por um contingente cada vez maior de presidiários. “Eles estão na linha de frente e desenvolvem, frequentemente, problemas de fadiga, insônia, irritabilidade e outros problemas de saúde”, nota ela, que foi diretora do Instituto Penal Edgard Costa, em Niterói (RJ).
Doença solitária
Em outra unidade do DF, após passar algumas semanas afastado, Cléber se prepara para voltar ao Centro de Progressão Penitenciária (CPP), no Setor de Indústria e Abastecimento. O agente também adentrou as estatísticas dos infectados pela covid-19, mesmo alegando ter sido extremamente cuidadoso no trabalho. “Eu já usava álcool em gel nas mãos e mantinha distância antes de todo mundo”, observa ele. “Até riam de mim.”
Em menos de um mês, pelo menos 22 agentes da equipe de Cléber foram infectados pela doença, segundo ele. “Nossa unidade foi a última, estava imaculada até o fim de abril”, conta. Os profissionais acreditam que o surto se iniciou na condução de um detento de outra unidade para o CPP. A princípio, o centro disponibilizou galões de álcool 70% para os funcionários, mas máscaras, não. Assim, havia profissionais que usavam, outros não. “Acreditavam que não iam pegar”, nota Cléber. “Houve amadorismo de todas as partes.”
Familiares esperam para entregar alimentos e materiais de limpeza e higiene pessoal aos detentos da PDF I, em Brasília. Com a proibição de visitas para conter o avanço da pandemia, resta aos parentes o serviço de delivery.
Cléber foi acometido por uma febre súbita e incômoda que o levou a procurar a testagem rápida, que não detectou a doença. Ele apresentou também perda de olfato e paladar. O atendente o alertou, contudo, para a alta possibilidade de covid-19. Em casa, tomando antibióticos, o agente penal percebeu que sua oxigenação estava baixando rapidamente. Sem plano de saúde, já que o serviço não é oferecido aos servidores, Cléber conseguiu realizar o exame na rede pública. Detectou-se, então, o novo coronavírus.
Diagnosticado e em casa, Cléber conta que teve de lidar com certa pressão para voltar ao trabalho, mesmo diante do quadro clínico. “Eu não voltei, claro”. Ele acredita que, após a morte de um agente penitenciário em 17 de maio, o entendimento sobre a gravidade da pandemia se solidificou dentro das unidades penitenciárias. Antes, segundo ele, máscaras só foram fornecidas para os profissionais mais de duas semanas após a confirmação do primeiro caso na unidade.
A primeira morte pela covid-19 confirmada entre os agentes penitenciários de Brasília ocorreu na Penitenciária do Distrito Federal 1 (PDF1), na Papuda. Francisco Pires de Souza tinha 45 anos e estava internado desde 28 de abril. Souza foi oficialmente o 56° morto pela doença no DF. Hoje, já são mais de 130 pessoas, entre cerca de 8,3 mil infectados. O primeiro caso confirmado entre agentes foi em fevereiro, no Centro de Internação e Reeducação (CIR).
A covid-19 é uma doença solitária – pelo menos é assim que Cléber se sentiu. Ele percebeu o medo e o estigma mesmo dentro do hospital, quando faltou-lhe ar de madrugada e ele foi buscar socorro. Mesmo desesperado, notou que todos se protegiam dele. “Achei que ia morrer”, conta. “Dei sorte de estar vivo, mas ter ficado doente não foi uma fatalidade – era uma tragédia anunciada.” Apesar de curado, ele se sente impotente e, em certa medida, indignado com o tratamento que os agentes penitenciários receberam das autoridades públicas do DF. “A estatística é certamente muito maior.”
Mobilização lenta
Sem parar de trabalhar, Roberto acompanhou as mudanças de protocolos no sistema carcerário do DF ao longo dos meses e argumenta que a mobilização contra a pandemia foi lenta. Primeiro, os agentes teriam sido orientados a usar máscaras e luvas e evitar o trânsito entre unidades diferentes, nos ditos trabalhos voluntários que os profissionais realizam para incrementar a renda. Apenas após o avanço da pandemia é que o uso obrigatório de máscaras foi instituído, além da aferição da temperatura para quem adentrar o Complexo da Papuda. “Daí disponibilizaram testes, mas só se houvesse sintomas”, detalha.
O secretário Adval Cardoso discorda que a tomada de ação contra a pandemia tenha falhado nos presídios do DF. “Se a gente tivesse demorado, o resultado seria desastroso”, avalia. “O poder de infecção desse vírus é um negócio de louco”. Ele argumenta que, no começo da crise, o mercado não estava preparado para suprir a demanda de EPIs, mas, hoje, com doações e compras, há material suficiente para todos os agentes. “Há, sim, servidores que não se adaptaram e evitaram usar as máscaras, mas quase todo mundo está aderindo”, observa ele.
“Imagine infectar, ou até matar, pessoas da minha família por estar cumprindo meu dever como agente público?”
“Era para essas medidas terem sido tomadas antes que o coronavírus chegasse até a gente, como medida preventiva, concorda?”, indaga Roberto. “Isso teria evitado esse número alarmante de casos.” A distribuição de EPIs e álcool em gel e líquido para os servidores e as unidades prisionais foi primeiramente feita pelo Sindicato dos Policiais Penais do Distrito Federal (Sindpen-DF), segundo os agentes ouvidos pela reportagem.
Prestes a voltar, Cléber soube por colegas que as medidas de higienização no CPP aumentaram durante sua ausência. A unidade possui agora uma cabine de descontaminação e outra de testagem. Mas ele acredita que muito de seu sofrimento poderia ter sido evitado com medidas mais rígidas desde o começo. “Me disseram que a estrutura para trabalhar está melhor, mas o aparato dos agentes não se compara ao dos profissionais de saúde”, avalia.
Ao retornar ao CDP, Élcio também constatou uma preocupação notadamente maior com o uso de máscaras, luvas e álcool em gel. “Mas estou ciente de que, naquelas condições, isso não vai funcionar”, diz. “Estamos dentro de celas, algumas com 30 presos, em um ambiente abafado. Não é suficiente para prevenir a contaminação, que não vai parar tão cedo.”
A assistente social Newone Ferreira da Costa alerta que, para além do coronavírus, há diversas outras doenças se proliferando nos presídios brasileiros. “São ambientes insalubres, sem ventilação adequada. Qualquer indício de contágio é motivo para que o detento ou os agentes sejam isolados imediatamente”, explica ela.
Delivery na cadeia
Na última quarta-feira (27/05), a reportagem da National Geographic Brasil esteve na entrada da PDF I, na Papuda, e encontrou familiares dos presos do lado de fora da unidade entregando sacolas com mantimentos para que os agentes as repassassem aos parentes. De máscara no rosto e mantendo certa distância um do outro na fila, homens e mulheres tiveram as visitas suspensas devido à pandemia, e esse é o máximo que podem chegar dos entes queridos agora. Alguns entoavam juntos canções religiosas de fé e esperança – mas sem dar as mãos.
“Eles levam biscoito, material de limpeza e higiene, e os agentes desinfetam e entregam aos detentos como em um serviço de delivery”, detalha o secretário Adval Cardoso. O número oficial de presos que já se infectaram pela novo coronavírus no DF é de 691, segundo a Secretaria de Saúde em boletim de quinta (28/05). Um deles, Álvaro Henrique do Nascimento Sousa, de 32 anos, perdeu a vida.
Além da suspensão temporária das visitas familiares, houve, segundo Cardoso, o desencarceramento de cerca de 2 mil presos do regime semiaberto para o aberto, que agora estão em prisão domiciliar. “Fizemos a antecipação da liberação para que diminuísse a população carcerária nesse momento de pandemia”, informou.
Dois novos blocos foram abertos no Complexo da Papuda, com duas carceragens, onde ficam isolados os presos que estão contaminados e os sob suspeita, além dos novatos que precisam passar por uma quarentena preventiva de 21 dias antes de se juntarem aos demais. Mesmo com as recentes carceragens, o agente Roberto nota que os casos seguem aumentando diariamente. “É preciso que se teste todo mundo, presos e agentes, para poder tomar as medidas certas”, defende o policial penal. Já o secretário diz que, hoje, qualquer agente que apresente sintomas é testado imediatamente e aguarda o resultado em casa.
No contexto caótico da pandemia, os presos têm de lidar com a ausência das visitas familiares e informações desencontradas do mundo lá fora. No CDP, Roberto tenta trocar ideias e oferecer apoio sempre que possível. “Alguns detentos têm acesso à televisão e começaram a questionar desde o início o que estava havendo”, conta. Eles buscam saber sobre os sintomas, número de mortos atualizado e como ocorre a infecção. “A gente quer alertá-los de uma maneira verdadeira”, diz Roberto, “mas sem causar pânico”. Mesmo assim, o número de tentativas de fuga teria aumentado bastante no último mês.
Sem plano de saúde nem acesso a tratamento psicológico ou psiquiátrico, os agentes penitenciários seguem contando bastante com a sorte para realizarem suas tarefas e seguirem saudáveis. Curado, Cléber sente-se ainda vulnerável e teme, sobretudo, pela saúde dos familiares com quem vive na mesma casa. “Imagine infectar, ou até matar, pessoas da minha família por estar cumprindo meu dever como agente público?”, questiona. Submetendo-se aos riscos, esses homens e mulheres permitem que, do lado de fora, o pandemônio causado pela pandemia não seja ainda maior.