Testes com brasileiros serão decisivos para sucesso das vacinas contra a covid-19

Com altíssimo platô na curva epidemiológica, Brasil chega a 2 milhões de infectados. Enquanto milhares de voluntários recebem a vacina de Oxford, que pode ser registrada ainda esse ano, produto de farmacêutica chinesa será testado em breve no país.

Por Kevin Damasio
Publicado 16 de jul. de 2020, 19:21 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 01:56 BRT

Amostras da vacina candidata da Universidade de Oxford, a ChAdOx1, no Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (Idor), na Zona Sul do Rio de Janeiro. No estudo clínico no Brasil, 5 mil pessoas serão vacinadas. A pesquisa começou em 28 de junho.

Foto de Mauricio Susin

Andréa Barbosa, 46, sentiu-se emocionada ao ser vacinada no Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (Idor), na Zona Sul do Rio de Janeiro. A médica oftalmologista é uma das 5 mil voluntárias do estudo clínico da ChAdOx1 no Brasil, vacina candidata contra a covid-19 desenvolvida pela Universidade de Oxford, do Reino Unido, em parceria com a biofarmacêutica AstraZeneca. “Acho que é um dever como cidadã”, reflete Barbosa. “É uma questão humanitária. Sem uma vacina, não temos previsão de quando sairemos dessa situação.”

Barbosa formou-se em Medicina na Universidade Federal da Bahia e fez doutorado em Oftalmologia na Federal de São Paulo (Unifesp). No início da carreira, trabalhou como cirurgiã-geral em emergência, tanto no pronto-socorro quanto em terapia intensiva. Mudou-se para o Rio de Janeiro em 1998 e há quase duas décadas trabalha na Rede D’Or São Luiz, sendo que desde 2007 é chefe do Serviço de Oftalmologia que compreende seis hospitais. Além disso, é proprietária e diretora médica da Clínica dos Olhos São Francisco de Assis e atende também em um consultório particular no bairro do Leblon.

Do final de março até junho, o movimento nas clínicas oftalmológicas em que Barbosa trabalha diminuiu consideravelmente. Se antes chegavam a receber uma centena de pacientes por dia, hoje apenas uma dezena procura atendimento – geralmente pessoas com quadros de doença mais graves, que não poderiam ter o tratamento interrompido, como glaucoma e retinopatia diabética. Os consultórios dos ambulatórios nos hospitais foram fechados e eram atendidos apenas casos emergenciais. No mês de julho, contudo, as consultas de rotina têm voltado a acontecer nos hospitais e nas clínicas.

Em meio à emergência de saúde pública, Barbosa conta que sentiu falta de integrar a linha de frente da luta contra o novo coronavírus. Colocara-se à disposição da diretoria da Rede D’Or São Luiz para reforçar a equipe de profissionais de saúde, porém ficou na reserva. “Foi uma frustração imensa não atender pacientes com a covid-19.”

Em 2 de junho, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) autorizou o estudo clínico no Brasil da ChAdOx1 nCov-19, nome técnico da vacina de Oxford. A permissão também foi concedida pelo Conselho Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) dias depois. A cientista-chefe da Organização Mundial da Saúde (OMS), Soumya Swaminathan, afirmou, em maio, que essa seria a vacina candidata contra a covid-19 em estágio mais avançado no mundo. “Agora chegou a hora de eu participar de alguma forma”, pensou Barbosa.

A oftalmologista Andréa Barbosa, 46, resolveu se candidatar como voluntária a receber a vacina de Oxford, assim que soube que a pesquisa aconteceria no Rio de Janeiro. Para ser aceito, o candidato precisaria ser profissional da área de saúde, estar em alta exposição ao novo coronavírus no cotidiano e ter entre 18 e 55 anos, além de ter comorbidades controladas.

Foto de Mauricio Susin

A Universidade de Oxford trabalhava com a tecnologia de vetor viral para desenvolver uma vacina para outro tipo de coronavírus, o MERS. Este vírus é responsável pela síndrome respiratória do Oriente Médio. Desde o primeiro surto, em setembro de 2012, foi registrado em 27 países, com 2.494 casos notificados e 858 mortes até hoje. A pesquisa já estava avançada, munida de estudos toxicológicos e de biodisponibilidade da fase pré-clínica e de reatogenicidade e imunogenicidade do estudo clínico.

Com a emergência do Sars-CoV-2, em dezembro de 2019, os cientistas se valeram da tecnologia e do conhecimento adquirido como ponto de partida para uma vacina contra a covid-19. Inseriram a proteína spike do Sars-CoV-2 no adenovírus símio – ChAdOx1, o vírus de resfriado – atenuado e não replicante e deram início à pesquisa. No estudo clínico, as fases 1 e 2 aconteceram simultaneamente, em abril. Nelas, foram testadas a segurança e a resposta imune em mais de mil voluntários saudáveis, de 18 a 55 anos, no sul da Inglaterra.

A vacina de vetor viral ChAdOx1 funciona “como se fosse um Cavalo de Troia”, ilustra a médica Sue Ann Costa Clemens, coordenadora do estudo no Brasil. “O adenovírus carrega escondido nele uma parte do Sars-Cov-2, a proteína S. É essa espícula que vai suscitar a resposta imune quando aplicada no ser humano. Uma vez que a vacina é aplicada, espera-se que o sistema imune apresente uma resposta que seria o desenvolvimento de anticorpos e outras células de defesa para que combata a doença, no caso a covid-19.”

A pesquisa clínica da ChAdOx1 chegou ao país graças ao trabalho de Clemens. A médica carioca, de 52 anos, vive na Itália há cerca de duas décadas. Na Universidade de Siena, Clemens é coordenadora do Instituto de Saúde Global, professora de doenças pediátricas infecciosas e diretora do programa de mestrados – em que fundou o primeiro curso de Vacinologia no mundo. Além disso, é chefe do comitê científico da Fundação Bill e Melinda Gates, onde já era consultora há cinco anos.

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    Em 5 de maio, Clemens recebeu o convite para ser investigadora do estudo clínico da ChAdOx1 pelo professor Andrew Pollard, coordenador do grupo de Oxford e professor do curso de Vacinologia de Siena. A brasileira prontamente topou a empreitada, para a qual já possuía experiência. Ao longo da carreira, ela trabalhou em pesquisas clínicas do tipo, com recrutamento elevado. Foi o caso do estudo da vacina de rotavírus na América Latina, em 2005, que contou com 60 mil voluntários em seis meses.

    Desta vez, o objetivo inicial de Clemens foi identificar centros de pesquisa para conduzirem os estudos clínicos. Ela logo acionou a equipe da Unifesp, onde fez o doutorado e é pesquisadora. Para realizar as adaptações necessárias para os testes, bem como garantir que o estudo fosse feito no Brasil, Clemens conseguiu o financiamento da Fundação Lemann, do Idor e da AstraZeneca Brasil.

    “Quando se faz um estudo de fase 3, o objetivo é provar que a vacina protege contra a doença”, explica Clemens. “Como provar isso de uma forma mais rápida, para que essa vacina chegue logo à população? Com alta exposição dos indivíduos vacinados a este vírus. Então, temos que procurar este cenário propício. Nós temos potencial profissional e de infraestrutura de centro, além de uma curva epidemiológica em ascendência, para provar a eficácia dessa vacina em um curto espaço de tempo.”

    A pesquisa no Brasil começou em 28 de junho e acontece em três centros, coordenados por Clemens: o Centro de Referência para Imunobiológicos Especiais, da Unifesp, em São Paulo, e as sedes do Idor do Rio de Janeiro e de Salvador. No total, serão vacinados 5 mil voluntários divididos em dois grupos – um receberá a vacina candidata ChAdOx1; o outro, uma vacina controle. Trata-se de um estudo randomizado e duplo-cego, isto é, os voluntários são colocados aleatoriamente em um dos grupos e nem o vacinado, nem o pesquisador sabem quem tomou qual vacina, até o final da pesquisa.

    Controle consiste em uma substância cujo princípio ativo tenha alguma eficácia quando injetada no ser humano. No caso da ChAdOx1, os pesquisadores escolheram como controle a vacina contra a meningite quádrupla, ACWY, pelas características similares na dosagem e em efeitos adversos.

    “Quando se faz um estudo de fase 3, o objetivo é provar que a vacina protege contra a doença. Como? Com alta exposição dos indivíduos vacinados a este vírus.”

    por Sue Ann Costa Clemens
    Coordenadora do estudo clínico com a ChAdOx1 no Brasil

    “Nossa vacina candidata contra a covid-19 é de uma dose, como a da meningite, e tem efeitos de reatogenicidade similares, como rubor ou alguma dor no local em menos de 10% dos vacinados, ou sistêmicos que podem ser uma febre ou síndrome gripal leve, que demora de um a dois dias”, observa Clemens. Os pesquisadores não escolheram uma vacina placebo – substância sem qualquer efeito ativo -, para que o voluntário tenha algum benefício durante o estudo. “Essa vacina não é distribuída comumente nos países em que estamos fazendo os estudos e é mais cara.”

    Critérios para a testagem em humanos

    A oftalmologista Andréa Barbosa decidiu, de pronto, se candidatar para a pesquisa. Na inscrição, atendeu aos critérios principais: ser profissional da área de saúde, estar em alta exposição no cotidiano e ter entre 18 e 55 anos. Logo, ela recebeu uma ligação para agendar a primeira visita ao centro de pesquisa, em 4 de julho.

    Ao chegar ao Idor de Botafogo naquele sábado, Barbosa teve seus dados vitais, como altura e peso, coletados pela equipe de enfermagem. Depois, seguiu para uma entrevista médica em que é certificado que o voluntário atende a todos os critérios. Deve, por exemplo, possuir, no máximo, comorbidades controladas – não pode ter doenças crônicas ou que causem imunossupressão. “A consulta foi um pouco complicada no meu caso, porque tenho casos de alergia de contato, mas eles reviram toda a parte alérgica e meu tipo não excluía”, conta.

    Na consulta, Barbosa leu e foi elucidada sobre o Termo de Consentimento Livre Esclarecido (TCLE). Nele, compromete-se a não participar de outros testes de vacina, não engravidar nos próximos doze meses e ter disponibilidade de ir às consultas periódicas.

    O termo de 15 páginas explica o estudo, a vacina, o contexto da epidemia e também expõe os riscos de participar da pesquisa. Ressalta que, enquanto a eficácia da vacina não for comprovada, o participante não pode presumir que esteja protegido da covid-19. Esclarece que é provável que apresente efeitos colaterais da vacina, seja local ou geral. Pontua efeitos adversos raramente observados em estudos clínico de outras formulações à base de ChAdOx1, como reações alérgicas relacionadas aos sistemas imunológico e nervoso, anafilaxia e síndrome de Guillain-Barré. Mas garante equipes capacitadas e tratamento adequado nos centros de pesquisa, caso algum voluntário necessite. Além disso, reforça que existe a possibilidade de que ocorram reações inesperadas, dada a quantidade limitada de dados de segurança disponíveis neste estágio inicial de desenvolvimento. O voluntário pode interromper sua participação no estudo a qualquer momento, sem necessidade de se explicar.

    Depois da consulta, Barbosa voltou à enfermaria para a coleta das amostras de swab de nasofaringe, utilizado no teste RT-PCR a fim de saber se está contaminada por covid-19; e de sangue, para descobrir pelo teste sorológico se já contraíra a doença anteriormente e desenvolvera anticorpos. Saiu do centro com uma segunda visita marcada. Se algum dos resultados desse positivo, ela não poderia tomar a vacina – o que os pesquisadores estimam que possa acontecer com 10% dos voluntários. Contudo, ela estava confiante pois, ao longo da pandemia, já fizera três exames diagnósticos que haviam dado negativo.

    Antes da pandemia do Sars-CoV-2, a Universidade de Oxford, no Reino Unido, desenvolvia uma vacina de vetor viral para outro tipo de coronavírus, o MERS. O conhecimento adquirido nas fases pré-clínica e clínica serviram de base para o início dos estudos da ChAdOx1, contra a covid-19. Segundo a OMS, trata-se da pesquisa em estágio mais avançado no mundo.

    Foto de John Cairns, Universidade de Oxford, Divulgação

    Na última quinta-feira, 9 de julho, Barbosa retornou ao Idor. O médico comunicou que os testes, de fato, deram negativo. Questionou novamente sobre seu estado de saúde – se teve febre nos últimos dias, se tossiu. Em seguida, ela fez outro teste de gravidez e teve mais uma amostra de sangue coletada para teste sorológico. Em seguida, foi, finalmente, vacinada. Ficou cerca de 30 minutos em uma sala de espera, em observação, não teve reações adversas no pós-vacinação e foi autorizada a ir para casa. Antes de sair da clínica, recebeu orientações a respeito de um diário online que deveria preencher dali em diante e recebeu alguns comprimidos de paracetamol, para tomar naquele dia.

    A próxima consulta de Barbosa acontecerá no dia 1º de agosto. Até lá, ela seguirá sua vida normalmente, com o trabalho nos hospitais e nas clínicas, mas sempre atenta a possíveis sintomas e reações para relatar no questionário. “Eles me perguntam se tive náuseas ou febre. Meço a temperatura com o termômetro que me deram. Tenho que registrar todos os sintomas e sinais no local da vacina. Se está vermelho, se teve enduração, se está inchado – me deram uma régua para medir isso”, conta oftalmologista. “Estou observando os sintomas, mas estou ótima, não senti nada, não tive nenhuma reação no local da vacina. Absolutamente nada.”

    Os voluntários serão acompanhados por um ano. Caso tenham algum sintoma, voltam para a clínica e realizam testes para saber se estão positivos ou não para a covid-19. Observa-se também uma possível reatogenicidade da vacina – se houve reações locais ou sistêmicas.

    Depois, ocorrem consultas periódicas em que é conferido se a pessoa produziu anticorpos, bem como a qualidade dessas imunoglobulinas. O corpo começa a trabalhar a resposta imune entre 8 e 10 dias depois da aplicação da vacina, mas neste período ainda não está assegurada a proteção total. Com isso, os pesquisadores colhem a primeira amostra sanguínea dos voluntários em torno de 28 dias após a vacinação, período suficiente para que o corpo tenha produzido células de defesa identificáveis no sangue. “Se desenvolveu, quer dizer que a vacina está promovendo resposta imune. Mas temos que saber se essa resposta imune é suficiente para proteger contra a doença. Após um ano, vamos analisar a persistência desses anticorpos – se ficamos protegidos durante todo esse tempo”, explica Clemens.

    Após “descegar” o estudo, os pesquisadores descobrirão em que grupo se encontram as eventuais pessoas diagnosticadas com covid-19: no controle ou no vacinado. Dessa maneira é testada a eficácia das vacinas. “No caso dessa vacina, o objetivo inicial é proteger contra a doença, mas também estamos estudando se ela vai proteger contra a infecção”, continua Clemens. Prevenir a infecção significa que o vírus não consegue se conectar à célula, então a pessoa não desenvolve os sinais e sintomas da doença. Proteção contra a doença acontece quando o vírus ainda se conecta à célula, mas logo é neutralizado pela ação dos anticorpos.

    No mundo, o estudo clínico da ChAdOx1 visa incluir 50 mil voluntários e já acontecem no Reino Unido, nos Estados Unidos e na África do Sul. “Resultados parciais de todos esses estudos em conjunto devem ser feitos até novembro”, conta Clemens. “A ideia é que se monte um dossiê de registro, para ser submetido no Reino Unido, e que essa vacina, caso tenha sua eficácia comprovada, seja registrada ainda esse ano por lá e já possa ser aplicada, e assim sucessivamente em outros países como o nosso.”

    A pesquisa clínica da ChAdOx1 chegou ao país graças ao trabalho de Sue Ann Costa Clemens. A médica carioca, radicada na Itália, foi convidada para ser investigadora do estudo por Andrew Pollard, pesquisador principal do grupo da Universidade de Oxford. Hoje, ela coordena os testes no Brasil, que acontecem em São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador.

    Foto de Mauricio Susin

    Em abril, a Universidade de Oxford e a AstraZeneca anunciaram um acordo para produzir um bilhão de doses da vacina. Estabeleceram o compromisso de tornar a vacina disponível durante a pandemia, sem fins lucrativos, para assegurar uma distribuição igualitária. Ao menos 400 milhões serão destinadas aos países europeus.

    Já no final de junho, o Ministério da Saúde brasileiro anunciou um acordo entre a Fundação Oswaldo Cruz e a AstraZeneca, que envolve compra de lotes e transferência de tecnologia. Em um primeiro momento, o governo brasileiro se comprometeu a adquirir, antes mesmo da comprovação da eficácia da vacina, 30,4 milhões de doses – 15% do necessário para a população brasileira. Metade será entregue até dezembro de 2020 e a outra parte em janeiro de 2021.

    Ainda assim, é necessário que haja o registro da vacina pela Anvisa e a validação, antes de serem distribuídas no Sistema Único de Saúde.

    Em entrevista à Globo News, a reitora da Unifesp, Soraia Smaili, disse que o registro da vacina poderá ser obtido em junho de 2021. Neste primeiro momento, a Fiocruz receberá o ingrediente farmacêutico ativo (IFA) e finalizará a produção com o envase, a rotulagem, a embalagem e o controle de qualidade. Ao término dos estudos, se os resultados forem positivos e a eficácia for comprovada, o governo comprará mais um lote de 70 milhões de doses.

    O investimento de US$ 127 milhões prevê ainda a transferência de tecnologia. Nos próximos meses, ocorrerá a adequação das instalações, para que a Fiocruz torne-se autossuficiente em todo o processo de produção da vacina.

    “Caso a vacina se mostre realmente eficaz, por sermos uma referência na região e termos larga capacidade produtiva, o acordo com a AstraZeneca ainda nos coloca a possibilidade de sermos responsáveis pelo fornecimento da vacina na América Latina”, diz a presidente da Fiocruz, Nísia Trindade Lima.

    Tecnologia segura

    Outra vacina candidata contra a covid-19, em estágio avançado de desenvolvimento, será submetida a estudos clínicos no Brasil a partir de 20 de julho. O Instituto Butantan, de São Paulo, coordenará os testes da fase 3 da CoronaVac, da farmacêutica chinesa Sinovac Biotech. A condução da pesquisa fora aprovada pela Anvisa e pelo Conep no início de julho.

    As raízes desta vacina remontam ao início do século 21, quando um novo tipo de coronavírus emergiu e se alastrou por 26 países. Acredita-se que os primeiros humanos tenham sido infectados em Guangdong, província no Sul da China, em novembro de 2002. Em 2003, mais de 8 mil pessoas já haviam adoecido e 774 faleceram pela Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars, na sigla em inglês) no mundo, grande parte no território chinês e em países asiáticos.

    “Os esforços para um estudo dessa categoria são enormes. Então, colocar uma vacina em fase 3 é uma decisão muito cuidadosa e que só é tomada quando há um resultado bastante promissor.”

    por Ricardo Palácios
    Médico de Ensaios Clínicos do Instituto Butantan

    Diante daquele contexto, a Sinovac passou a desenvolver uma vacina de vírus inativado contra o Sars em 2004. Com apoio da OMS, a pesquisa avançou até a primeira fase do estudo clínico. Porém, a epidemia foi controlada, o vírus não retornou em ondas sazonais e a pesquisa foi interrompida. Mas os esforços não foram em vão. A pesquisa e o conhecimento adquiridos serviram de base para o desenvolvimento de uma vacina contra a doença do Sars-CoV-2.

    Nesta histórica e acelerada corrida por uma vacina contra um vírus que já infectou mais de 13 milhões de pessoas, a Sinovac realizou as fases 1 e 2 do estudo clínico simultaneamente. Na primeira fase, os testes aconteceram em 144 voluntários adultos. A segunda, randomizada, abrangeu 600 voluntários, a fim de verificar a segurança da vacina. A CoronaVac apresentou mais de 90% de seroconversão. Isto é, 9 em cada 10 participantes que receberam as duas doses da vacina desenvolveram anticorpos neutralizantes contra a doença. Com isso, a agência regulatória da China deu aval para que a Sinovac prosseguisse para a fase final dos estudos clínicos.

    “Os esforços para um estudo dessa categoria são enormes. Então, colocar uma vacina em fase 3 é uma decisão muito cuidadosa e que só é tomada quando há um resultado bastante promissor”, observa Ricardo Palácios, gerente médico de Ensaios Clínicos do Instituto Butantan. “Isso porque a fase 3 significa expor uma grande quantidade de pessoas à vacina, da ordem de milhares, e os custos se elevam astronomicamente.”

    O recrutamento de voluntários pelo Butantan teve início na última terça-feira, 14 de julho. O objetivo é vacinar 9 mil pessoas em cinco estados e no Distrito Federal, com foco em profissionais de saúde que tenham atendido pacientes diagnosticados com covid-19. Entre os demais critérios, o candidato não pode ter contraído a doença, participar de outros estudos de vacinas candidatas, ser portador de doenças crônicas ou fazer uso de medicamentos que modifiquem a resposta imune. Já as mulheres não podem estar grávidas, nem planejar gravidez para os próximos três meses.

    No estado de São Paulo, o estudo se concentrará em sete centros de pesquisa. Na capital paulista, ocorrerá no Hospital das Clínicas (HC) da Universidade de São Paulo (USP), no Instituto Emílio Ribas e no Hospital Albert Einstein. Na região metropolitana e no interior, acontecerá na Universidade Municipal de São Caetano do Sul, no HC da Universidade Estadual de Campinas, na Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto e no HC da USP de Ribeirão Preto. No restante do país, os testes serão conduzidos nas universidades federais de Brasília, Minas Gerais e Paraná, no Instituto Evandro Chagas, no Rio de Janeiro, e no hospital da PUC do Rio Grande do Sul.

    O acordo entre o Instituto Butantan e a Sinovac prevê que a farmacêutica chinesa, a princípio, forneça doses da Coronavac até junho de 2021. Os produtos, então, serão formulados, envasados e distribuídos pelo Butantan. Se o estudo clínico tiver êxito e obtiver o registro, ocorrerá a transferência de tecnologia para a fábrica brasileira, a fim de adaptá-la e torná-la autossuficiente para produzi-la em escala industrial.

    Foto de Divulgação, Instituto Butantan

    O estudo seguirá a metodologia padrão para este tipo de vacinação. Os voluntários serão vacinados de forma aleatória e duplo-cega – nem os participantes nem os pesquisadores saberão quem tomou a CoronaVac ou a vacina controle. O acompanhamento durará um ano, com consultas periódicas. “Cada vez que alguma pessoa se sentir doente, vamos coletar as amostras e conceber se esses sintomas são causados por coronavírus. Se for, consideramos como um caso. Depois do acompanhamento, contamos quantos casos aconteceram no grupo que recebeu a vacina e no grupo controle”, explica Palácios. “O que se espera é que a maior parte dos casos aconteça no grupo controle. Quando se observa a proporção entre o grupo controle e o vacinado é que se determina a eficácia da vacina.”

    Enquanto na China a disseminação do vírus segue em baixa, com poucas pessoas contaminadas diariamente e focos rapidamente identificados e isolados, no Brasil as médias móveis diárias demonstram um platô altíssimo na curva epidemiológica: 36.650 novos casos notificados e 1.056 mortes. Até 16 de julho, mais de 2 milhões de pessoas haviam sido diagnosticadas com a covid-19 no Brasil, com cerca de 76,7 mil óbitos.

    Por conta da elevada exposição dos voluntários neste cenário brasileiro, os pesquisadores consideram que resultados sobre a eficácia e a segurança da vacina poderão ser obtidos antes dos doze meses de estudo. “Se isto acontecer, podemos pedir uma análise preliminar e independente, chamada de interina, e talvez seja possível demonstrar a eficácia antes de esperar um ano completo”, observa Palácios. O médico garante que, mesmo se a vacina obtiver o registro antecipado, a pesquisa clínica continuará, com o acompanhamento dos voluntários ao longo de 12 meses.

    Além do estudo clínico, o acordo entre o Butantan e a Sinovac prevê que a empresa chinesa fornecerá doses da vacina até junho de 2021, posteriormente formuladas, envasadas e distribuídas pelo Butantan. Ademais, uma eventual aprovação da CoronaVac desdobraria em um novo acordo de transferência de tecnologia para o instituto brasileiro. Dessa maneira, o instituto paulista produziria o produto em escala industrial, a fim de fornecê-lo gratuitamente para o Sistema Único de Saúde (SUS).

    “A vacina inativada é bem conhecida e o mundo inteiro tem disponível. É fácil de manejar e você consegue incorporar ao sistema de saúde, porque sabemos que tem boa estabilidade à temperatura das câmaras frias dos postos de saúde e é uma tecnologia segura”, observa Palácios. Para ele, um dos grandes desafios consiste na adequação da fábrica, que será “bastante complexa". “A diferença principal tem a ver com o nível de biossegurança. Esse é um vírus muito perigoso, que causa uma doença importante. Aí é preciso que a fábrica que produza essa vacina em quantidades industriais contenha esse vírus.”

    “Vacina do futuro”

    Enquanto aguardam o desenrolar dos estudos clínicos da candidata da Universidade de Oxford, pesquisadores do Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos), da Fiocruz, trabalham em uma inovação: uma vacina sintética contra a covid-19. Este é um tipo de produto que ainda não existe no mercado de imunobiológicos, mas agora, face à pandemia do novo coronavírus, diversas pesquisas do gênero avançam pelo mundo.

    “É uma porta que se abre para uma tecnologia que permite dar uma resposta mais rápida, que nos capacitará para utilizá-la em ocasiões futuras”, avalia Sotiris Missailidis, vice-diretor de Desenvolvimento Tecnológico de Bio-Manguinhos. “Se vingar, pode ser um modelo de vacina do futuro.”

    Bio-Manguinhos é a unidade produtora de imunobiológicos da Fiocruz. O instituto foi fundado em 1976, dois anos depois da pior epidemia de meningite vivida pelo Brasil. Atualmente, produz uma dezena de vacinas, como as de febre amarela, tríplice viral e poliomielite. Todo ano, fornece cerca de 120 milhões de doses para o Programa Nacional de Imunização, do Ministério da Saúde.

    Para iniciar métodos tradicionais da produção de vacina, é necessário que se tenha uma amostra do vírus, observa Missailidis. A partir dela, o vírus é cultivado em célula, isolado e inativado. No caso do Sars-CoV-2, o processo deve ser feito em um laboratório de nível de biossegurança 3, uma vez que se trata de um vírus contagioso.

    Por razões de segurança, Bio-Manguinhos não poderia importar uma amostra do novo coronavírus antes que ele passasse a circular no Brasil – o primeiro paciente diagnosticado com covid-19 no país foi em 25 de fevereiro, em São Paulo. Com isso, a instituição decidiu focar no desenvolvimento da vacina sintética, que não demanda cultivo celular do vírus para o princípio da pesquisa. Esta vacina é composta por duas partes: o peptídeo e a nanopartícula.

    Antes da pandemia, cientistas de Bio-Manguinhos já trabalhavam com a predição de peptídeos antígenos, fragmentos de proteínas que são reconhecidos por anticorpos ou pelo sistema imune. Até então, utilizavam a técnica apenas para diagnóstico. No final de janeiro, alteraram o foco de pesquisa. Os bioinformatas da equipe passaram a analisar sequências da proteína do Sars-CoV-2, disponíveis em bancos de dados internacionais. Buscavam partes específicas dessa proteína que fossem similares aos peptídeos de outros tipos de coronavírus já caracterizados, como o Sars. Os pesquisadores identificaram peptídeos com potenciais antígenos em duas proteínas do novo coronavírus: a spike (S), que se liga à célula ACE-2 do corpo humano para causar a doença, e a do nucleocapsídeo (N).

    Por serem parte pequena da proteína, os peptídeos não costumam ser imunogênicos, continua Missailidis. Para torná-los capazes de provocar resposta imune, é preciso realizar uma conjugação química com partículas semelhantes a vírus (VLPs, na sigla em inglês), ou acoplá-los em nanopartículas de ouro, ferro ou diversos polímeros.

    “Quando começamos a ter casos positivos confirmados no país, validamos esses peptídeos com soros de pacientes, para ver se nossas predições realmente eram verdadeiras”, conta Missailidis. Na validação, as biomoléculas são produzidas por síntese química. Forma-se uma esfera, que é a nanopartícula, sobre a qual acoplam-se os peptídeos, para se apresentarem ao sistema imune. “O trabalho está avançando muito bem. Formulamos várias nanopartículas e testamos atividades com anticorpos e de resposta celular com soros de pacientes”, me disse Missailidis, na última terça-feira, 14.

    “O trabalho está avançando muito bem. Formulamos várias nanopartículas e testamos atividades com anticorpos e de resposta celular com soros de pacientes.”

    por Sotiris Missailidis
    Vice-diretor de Desenvolvimento Tecnológico de Bio-Manguinhos/Fiocruz

    O próximo passo consiste na fase pré-clínica, marcada para começar em 28 de julho. Nela, ocorrem os testes em animais. A princípio, acontecerão em camundongos transgênicos, que possuem o receptor ACE-2 – mas há a possibilidade de também utilizarem hamsters, que, assim como os camundongos, desenvolvem a doença.

    Segundo Missailidis, esta etapa deve durar cerca de seis meses e serão avaliados dois aspectos principais. O primeiro estudo diz respeito à segurança da vacina, para identificar se há efeito adverso no animal. O segundo observa a proteção: o animal é vacinado e, em seguida, exposto ao vírus; se não desenvolver a doença, significa que o composto da vacina o protegeu. Se obtiverem êxito nesta etapa, os pesquisadores precisarão preparar um dossiê com os dados obtidos e submetê-lo à Anvisa, a fim obter autorização para avançar com o estudo clínico em humanos.

    Bio-Manguinhos já adiantou que a vacina sintética, caso todos estudos sejam bem-sucedidos, não deve chegar para registro antes de 2022.  Enquanto isso, a instituição pode trabalhar na produção de vacinas contra a covid-19 com tecnologias tradicionais, a exemplo da de Oxford, que por ventura fossem aprovadas antes. Mas, no futuro, se a sintética for aprovada, a instituição ampliaria sua capacidade com uma produção paralela, uma vez que esta tecnologia utiliza uma plataforma de produção diferente e já existente.

    “Espero que a gente chegue lá, e em tempo rápido”, vislumbra Missailidis. “Como o mundo inteiro vai precisar de vacina, espero que Bio-Manguinhos possa dar retorno tanto na produção de uma vacina imediata, quanto que cheguemos à nossa vacina autóctone, nacional, e com uma abordagem nova no mercado.”

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