Sangue do caranguejo-ferradura é essencial para vacina contra o coronavírus – mas afetará o ecossistema

Especialistas temem que os crustáceos, fontes vitais de alimentos para muitas espécies, decaiam em número.

Por Carrie Arnold
Publicado 3 de jul. de 2020, 16:51 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 01:56 BRT
Um caranguejo-ferradura-do-atlântico na praia em Stone Harbor, Nova Jersey, não muito longe da baía de Delaware.

Um caranguejo-ferradura-do-atlântico na praia em Stone Harbor, Nova Jersey, não muito longe da baía de Delaware.

Foto de Joël Sartore, Nat Geo Image Collection

Toda primavera, guiados pela lua cheia, centenas de milhares de caranguejos-ferradura se rastejam pelas praias do Atlântico dos EUA para pôr seus ovos. Para pássaros esfomeados, é como uma cornucópia. Para as empresas farmacêuticas, é um recurso crucial para tornar os medicamentos humanos seguros.

Isso ocorre porque o sangue azul leitoso desses crustáceos fornece a única fonte natural conhecida como lisado de amebócitos do limulus (LAL), uma substância que detecta um contaminante chamado endotoxina. Se mesmo uma pequena quantidade de endotoxina – um tipo de bactéria – chegar a vacinas, drogas injetáveis ou outros produtos farmacêuticos esterilizados, como joelhos e quadris artificiais, as consequências podem ser fatais.

“Todas as empresas farmacêuticas ao redor do mundo dependem desses caranguejos. Quando refletimos sobre isso, nossa cabeça fica abismada com a dependência que temos dessa criatura primitiva”, diz Barbara Brummer, diretora estadual da The Nature Conservancy de Nova Jersey, nos EUA.

Todo ano, as empresas farmacêuticas capturam meio milhão de caranguejos-ferradura-do-atlântico, recolhem seu sangue e devolvem-nos ao oceano – sendo que, após isso, muitos acabam morrendo. Essa prática, combinada com a colheita excessiva de caranguejos para isca de pesca, causou um declínio nessa espécie na região nas últimas décadas.

Em 1990, biólogos estimaram que 1,24 milhão de caranguejos surgiram na baía de Delaware, um dos principais pontos de desova e principal ponto de coleta para as empresas. Em 2002, esse número caiu para 333,5 mil. Nos últimos anos, o número de caranguejos na baía de Delaware pairou em torno da mesma quantidade, com o levantamento de 2019 estimando cerca de 335.211. (A pandemia cancelou a contagem de caranguejos em 2020).

Apanhar caranguejos e recolher o sangue deles consome muito tempo e o lisado resultante deles custa US$ 60 mil por galão. Em 2016, uma alternativa sintética ao lisado de caranguejo, o fator C recombinante (rFC), foi aprovada como alternativa na Europa e várias empresas farmacêuticas americanas também começaram a usá-lo.

Mas, em 1º de junho de 2020, a Farmacopeia Americana, que estabelece os padrões científicos para medicamentos e outros produtos nos EUA, recusou-se a colocar rFC no mesmo nível do lisado de caranguejo, alegando que sua garantia ainda não foi comprovada.

A partir desse mês, a empresa suíça Lonza começará a fabricar uma vacina contra a covid-19 para testes clínicos em humanos – e eles terão que usar o lisado na vacina se planejarem vendê-la nos EUA.

Uma rola-do-mar está comendo um caranguejo-ferradura na baía de Delaware, Nova Jersey. Os crustáceos são fontes vitais de alimentos para rolas-do-mar e outras aves migratórias.

Foto de Doug Wechsler, Minden Pictures

A saúde e a segurança humana, especialmente para algo tão importante como a vacina contra o coronavírus, são fundamentais, afirma Brummer. Mas ela e outros conservacionistas temem que, sem o rFC ou outras alternativas disponíveis, a carga contínua de sangue de caranguejo-ferradura nas vacinas e tratamentos relacionados à covid-19 possa comprometer os caranguejos e os ecossistemas marinhos que dependem deles.

Uma declaração escrita pela Lonza diz que o teste da vacina para a covid-19 da empresa não exigirá mais do que um dia de produção de lisado pelos três fabricantes dos EUA.

Um dos três – o Charles River Laboratories, com sede em Massachusetts – deu à National Geographic a mesma estatística. John Dubczak, do laboratório, explicou em um e-mail que, para fazer cinco bilhões de doses da vacina para a covid-1919, serão realizados 600 mil testes, que usarão a quantidade de lisado criada em apenas um dia.

"Isso não prejudica indevidamente as populações da cadeia de suprimentos ou do caranguejo-ferradura", disse Dubczak, diretor executivo de desenvolvimento de reagentes e operações do programa piloto.

Sangue azul

Quase inalterado por centenas de milhões de anos, os caranguejos-ferradura têm algumas características incomuns. Apesar do nome, esses crustáceos estão mais relacionados às aranhas e aos escorpiões do que aos caranguejos. Eles também têm nove olhos – dois olhos compostos e sete olhos simples.

Em 1956, o médico pesquisador Fred Bang notou outra característica estranha: quando o sangue do caranguejo-ferradura interage com a endotoxina, as células chamadas amebócitos coagulam e formam uma massa sólida. Bang percebeu que esses amebócitos – parte do antigo sistema imunológico do caranguejo – podiam detectar contaminantes bacterianos mortais na crescente variedade de produtos farmacêuticos projetados para entrar na corrente sanguínea humana.

Os cientistas finalmente descobriram como usar o lisado de amebócitos para testar medicamentos e vacinas e, em 1977, a Food and Drug Administration dos EUA aprovou o lisado de caranguejo-ferradura para essa utilidade.

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    O sangue dos caranguejos-ferradura é recolhido no Laboratório Charles River em Charleston, Carolina do Sul.

    Foto de Timothy Fadek, Corbis, Getty

    Desde então, todo mês de maio, as criaturas em formato de capacete são levadas em massa a laboratórios especializados na Costa Leste dos EUA, onde profissionais extraem o sangue de uma veia perto do coração antes de devolvê-los ao mar. (O sangue azul deles provém do cobre metálico nas proteínas transportadoras de oxigênio deles, chamadas hemocianinas.)

    Nos anos 1980 e no início dos anos 1990, o processo parecia sustentável. A indústria farmacêutica alegou que apenas 3% dos caranguejos dos quais eles recolheram sangue acabaram morrendo. Pesquisas populacionais mostraram que existiam muitos caranguejos e os conservacionistas não deram muito valor à espécie, diz Larry Niles, biólogo da Conserve Wildlife Foundation de Nova Jersey.

    Mas, no início dos anos 2000, o quadro começou a mudar. A contagem anual de caranguejo-ferradura durante a época de desova revelou números menores e um estudo de 2010 descobriu que 30% dos caranguejos dos quais tiveram seu sangue recolhido acabaram morrendo – 10 vezes a mais que o valor estimado à primeira vista.

    “O que estamos lutando não é apenas uma batalha pelos caranguejos-ferradura. Trata-se de manter os ecossistemas produtivos”, diz Niles, que passou sua carreira pesquisando o meio ambiente e as espécies da Baía de Delaware.

    A empresa suíça Lonza diz que está “comprometida em proteger o bem-estar do caranguejo-ferradura", por exemplo, "apoiando ativamente as práticas de conservação”.

    De acordo com a declaração da Lonza, o Charles River Laboratories e outro fabricante de lisados, a Associates of Cape Cod, Inc., criam caranguejos-ferradura em incubatórios e os lançam no oceano. Lonza relata que em 2019, a empresa Cape Cod reintroduziu 100 mil caranguejos jovens nas águas ao redor de Massachusetts e Rhode Island.

    A declaração de Lonza afirma que a empresa também prefere usar alternativas de lisado e patenteou sua própria rFC, chamada PyroGene. Mas, como ilustra a decisão da Farmacopeia Americana, “ainda existem obstáculos regulatórios. Continuamos esperançosos de que as barreiras que impedem os desenvolvedores de medicamentos de usar as alternativas sintéticas estejam começando a cair”, afirma a declaração.

    Interferindo na cadeia alimentar

    Enquanto isso, os conservacionistas estão monitorando o impacto nas espécies que dependem de ovos de caranguejo-ferradura como fontes vitais de alimentos.

    Os peixes de pesca esportiva que antes eram numerosos, como o robalo e o linguado, despencaram em número na região, em parte devido ao menor número de ovos de caranguejo-ferradura, diz Niles. As diamondback terrapins, um tipo de tartaruga sensível à extinção, também dependem desse bufê sazonal.

    Niles e Brummer estão bem preocupados com as aves marinhas migratórias, como os maçaricos-de-papo-vermelho e as rolas-do-mar, que passam pela baía de Delaware, em uma viagem de 15 mil quilômetros da Terra do Fogo, no Chile, até os locais de procriação do Ártico. Essas aves precisam de imensas quantidades de energia para seus voos de longa distância, e os ovos de caranguejo, ricos em calorias, são o combustível perfeito.

    Durante a estadia de duas semanas na baía de Delaware, os maçaricos-de-papo-vermelho quase dobram o peso do corpo para se preparar para a etapa final da viagem. Este ano, no entanto, as temperaturas frias atrasaram a desova de caranguejos, e apenas 30 mil maçaricos-de-papo-vermelho ficaram na baía, uma queda de uma estimativa de 40 mil aves em 2019.

    Niles alerta que o enfraquecimento de um elo da cadeia alimentar pode reverberar, com consequências potencialmente desastrosas. O esgotamento dos caranguejos-ferradura poderia, em última instância, eliminar os benefícios que turistas, pescadores e outros recebem da baía.

    “O valor de um recurso natural”, diz ele, “não pertence às empresas que o estão explorando. Ele pertence a nós.”

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