O que a descoberta de DNA antigo revela? Os segredos vão de ancestrais humanos à Peste Negra
Desde a identificação de novas espécies humanas até o desvendamento da evolução das doenças, a capacidade de reconstruir genomas antigos é uma virada de jogo para os pesquisadores que conseguem navegar pelos perigos éticos.

O DNA recuperado de dentes e ossos antigos permite aos pesquisadores compreender as mudanças populacionais ao longo do tempo.
Em 2010, geneticistas na Dinamarca alcançaram um marco notável. Extraindo fragmentos de DNA de fios de cabelo de 4 mil anos da Groenlândia, que estavam armazenados em um museu de Copenhague há décadas, eles reconstruíram o primeiro genoma humano antigo completo.
O estudo foi o culminar de décadas de trabalho de pesquisadores em todo o mundo, começando com tentativas vacilantes de obter material genético de múmias egípcias na década de 1980. Ainda em 2013, o número de genomas humanos antigos ainda podia ser contado nos dedos das mãos. Nos últimos cinco anos, os números aumentaram exponencialmente: em abril de 2023, o 10.000º genoma humano antigo foi publicado, com milhares mais a caminho.
O notável crescimento da pesquisa com DNA antigo — foco de uma disciplina totalmente nova chamada paleogenômica — pode ser a maior novidade na arqueologia desde o desenvolvimento da datação por radiocarbono na década de 1950.
Em 2024, o pesquisador pioneiro Svante Pääbo, geneticista do Instituto Max Planck para a Evolução Humana em Leipzig, na Alemanha, ganhou o Prêmio Nobel por seu trabalho com os genes dos neandertais extintos. Agora, o DNA antigo se tornou uma ferramenta para entender melhor de onde viemos — e uma maneira de vislumbrar para onde estamos indo.
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Os ossos de mamute, semelhantes a esta presa e crânio parcial na Ilha Bolshoy Lyakhovsky, na costa russa, podem ser uma fonte de DNA antigo que os pesquisadores podem extrair e analisar.
Como avançou o processo de recuperar o DNA de antigos humanos
Para recuperar o DNA antigo de amostras antigas, os pesquisadores retiram uma pequena amostra de osso, dente ou cabelo de um esqueleto usando uma broca de dentista ou ferramenta semelhante e extraem fragmentos de DNA deles.
Ao duplicar os fragmentos de DNA várias vezes e, em seguida, usar computadores para combinar e remontar as minúsculas cadeias, como se fosse um quebra-cabeça de bilhões de peças, os geneticistas podem reconstruir genomas inteiros.
O processo levou décadas para ser aperfeiçoado. As primeiras tentativas de obter DNA de ossos antigos na década de 1980 foram repletas de problemas. O maior deles era a contaminação: todo organismo vivo tem DNA, e as primeiras pesquisas tiveram dificuldade em separar o material genético antigo do DNA moderno.
As amostras podiam ser contaminadas por qualquer coisa, desde bactérias do solo que se infiltravam nos ossos enterrados até a caspa de um técnico de laboratório. As primeiras alegações de que o DNA de dinossauros poderia ser recuperado do âmbar da era cretácea revelaram-se excessivamente otimistas, por exemplo, e foram principalmente resultado de contaminação — colocando todo o campo em dúvida.
Pääbo e outros persistiram, desenvolvendo maneiras de eliminar a contaminação e provar que o DNA que estavam analisando realmente pertencia a espécimes antigos. Como resultado, hoje as amostras de DNA antigo são coletadas sob condições rígidamente controladas, em salas limpas inundadas com luz ultravioleta, capaz de destruir bactérias e seu DNA. Os resultados são comparados a bancos de dados de DNA de espécies modernas ou outras amostras antigas, ajudando a classificar e isolar o material genético de diferentes fontes.
No início, os procedimentos também eram extremamente caros — muito mais do que a maioria dos arqueólogos e paleontólogos podia pagar. Mas, à medida que os custos diminuíram e o número de amostras aumentou, o método tornou-se uma ferramenta poderosa para compreender o passado.
Os estudos de DNA antigo estão deixando de ser casos isolados que ganham as manchetes para se tornarem parte padrão do conjunto de ferramentas do arqueólogo. Isso já levou a uma melhor compreensão das migrações antigas e de como as sociedades funcionavam no passado distante.
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“O DNA antigo revelou até mesmo a existência de espécies inteiramente novas de ancestrais humanos.”
A investigação do genoma antigo revela os fluxos migratório da Antiguidade
Ao comparar o DNA de pessoas enterradas em diferentes períodos de tempo, mas na mesma região geográfica, por exemplo, geneticistas e arqueólogos podem identificar mudanças populacionais. Dezenas de estudos realizados na última década em todo o mundo mostram que a migração e o movimento sempre fizeram parte da história da humanidade.
Sabemos agora que a população da Europa tem sido dinâmica por muitos milênios, com populações dramaticamente diferentes entrando no continente, misturando-se e interagindo várias vezes desde que os primeiros humanos modernos chegaram há cerca de 50 mil anos. E o DNA antigo ajudou a mostrar quando os primeiros povos chegaram às Américas e a relacioná-los com populações ancestrais na Ásia.
Algumas descobertas remontam a épocas ainda mais antigas. Ao comparar o DNA neandertal com o das pessoas modernas, por exemplo, Pääbo e sua equipe conseguiram demonstrar que os europeus e asiáticos modernos têm uma pequena fração — até 5% — de sua ascendência proveniente dos neandertais, sugerindo que nossos ancestrais distantes encontraram e se cruzaram com os neandertais em algum momento no passado remoto.
O DNA permite até mesmo descobrir quando: como os genes das pessoas na África Subsaariana hoje não contêm DNA neandertal, isso sugere que os humanos modernos encontraram nossos primos neandertais após migrarem da África há 50 mil anos.
O DNA antigo revelou até mesmo a existência de espécies inteiramente novas de ancestrais humanos. Em 2008, arqueólogos recuperaram um fragmento de osso da articulação do dedo de uma caverna no oeste da Sibéria. Eles estimaram que ele tinha mais de 50 mil anos, mas o fragmento era pequeno demais para dizer muito mais usando métodos arqueológicos tradicionais.
Graças às condições frias da caverna siberiana, os pesquisadores conseguiram extrair DNA do osso, revelando que não era nem neandertal nem humano moderno, mas algo completamente diferente: uma espécie humana ancestral até então desconhecida, agora chamada de Denisovanos, em homenagem à caverna onde seus restos mortais foram inicialmente descobertos.
O DNA humano é apenas a ponta do iceberg. As mesmas técnicas utilizadas para investigar humanos extintos também permitiram aos pesquisadores sequenciar o DNA de espécies extintas. Os genes de mamutes peludos, ursos das cavernas e pássaros dodôs ofereceram vislumbres sem precedentes do passado — e uma melhor compreensão da biologia de seus parentes vivos.
Enquanto isso, o DNA bacteriano milenar torna possível rastrear as origens e a evolução de doenças como a tuberculose e a Yersinia pestis, bactéria que causa a Peste Negra. E os cientistas isolaram e identificaram bactérias presas na placa bacteriana dos dentes de esqueletos antigos, mostrando o que as pessoas comiam, quais doenças tinham e como o microbioma moderno difere do de nossos ancestrais.
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Lugares frios como a Groenlândia e a Sibéria, em território russo, foram os primeiros a terem DNA antigo humano encontrado e estudado, dado seu grau de preservação por causa das baixas temperaturas. Aqui, icebergs em Disko Bay, na Groenlândia.
Extrair o DNA do planeta é o próximo passo
A próxima fronteira? Extrair DNA da terra. Em um estudo recente, cientistas conseguiram reconstruir o ambiente da Groenlândia antes de ela ser coberta por gelo, identificando o DNA de mamutes, renas e gansos que vagavam pela ilha há mais de dois milhões de anos.
Os pesquisadores esperam que a terra também possa fornecer informações sobre pessoas em breve. O chão de cavernas ocupadas no passado, por exemplo, pode conter DNA suficiente para identificar seus ocupantes há muito desaparecidos.
Particularmente quando se trata de DNA humano, a pesquisa se concentra na Europa e na Rússia, que representam dois terços das amostras publicadas até agora. Isso se deve, em parte, ao fato de que os primeiros estudos se concentraram em locais onde as condições frias preservavam bem o DNA.
Há uma década, muitos pesquisadores duvidavam que o DNA antigo pudesse ser recuperado da África ou mesmo das costas do Mediterrâneo. Mas, à medida que as técnicas melhoram, os pesquisadores estão cada vez mais se voltando para locais na África e na Ásia para responder a questões importantes sobre as origens e a história da humanidade.
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“O DNA humano é apenas a ponta do iceberg. A próxima fronteira? Extrair DNA da terra.”
Esses avanços no conhecimento genético e arqueológico também levantaram novas questões éticas e resistência. Enquanto pessoas vivas podem voluntariar uma amostra de saliva ou sangue contendo seu DNA, a análise dos genes dos mortos requer algumas centésimas de grama de osso ou dente em pó. Essa análise “destrutiva” de restos mortais humanos viola as crenças religiosas de alguns grupos. Ela também destrói parte de um esqueleto antigo, o recurso não renovável por excelência.
Geneticistas, arqueólogos e comunidades descendentes nem sempre concordam quando se trata de decidir quem pode dar permissão para estudar tais restos mortais. Na última década, críticos pressionaram os geneticistas a se envolverem mais com as comunidades de onde vêm suas amostras. Eles argumentam que a coleta e a publicação dos genes de pessoas mortas há muito tempo devem exigir a permissão de seus descendentes antes do início da pesquisa. Enquanto isso, muitos esqueletos em coleções de museus foram adquiridos em circunstâncias que não seriam consideradas éticas hoje.
Arqueólogos dizem que confiar no DNA antigo corre o risco de simplificar demais a pré-história: os genes não podem dizer qual idioma as pessoas falavam, quais deuses elas adoravam ou como se viam — apenas quem eram seus pais, avós e ancestrais mais distantes. Mas, combinado com técnicas arqueológicas mais tradicionais, o DNA de ossos antigos é uma forma poderosa de estudar o passado.
