A descoberta de uma mão fossilizada pode desvendar um mistério com 1,5 milhão de anos
A mão há muito perdida do hominídeo chamado de “Homem Quebra-Nozes” foi desenterrada – reavivando um debate familiar sobre a fabricação de ferramentas antigas.

A mão fossilizada de um macho Paranthropus boisei do Lago Turkana, no Quênia, foi encontrada junto com partes de um crânio e alguns dentes, sugerindo que o hominídeo era capaz de fabricar e usar ferramentas de pedra.
A exploradora da National Geographic Louise Leakey cresceu ouvindo histórias sobre a manhã de julho de 1959, quando sua avó — a paleoantropóloga Mary Leakey — descobriu um crânio de hominídeo de 1,8 milhão de anos na Garganta de Oldupai (originalmente chamada erroneamente de Olduvai), na Tanzânia.
Depois de avistar dentes fossilizados presos em uma rocha, Mary dirigiu direto para o acampamento para contar ao marido, Louis Leakey, que havia ficado para trás naquele dia porque não se sentia bem. Ela gritou: “Eu encontrei ele! Eu encontrei ele! Eu encontrei ele!”, lembrou Louis em um artigo que escreveu para a National Geographic em setembro de 1960.
“Encontrou o quê? Você se machucou?”, ele perguntou.“Ele! O homem! O nosso homem!”.
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Quem era o Paranthropus boisei, o “Homem Quebra-Nozes”?
Após quase três décadas vasculhando as encostas do desfiladeiro, os Leakeys e seus colegas finalmente encontraram o que acreditavam ser o criador das ferramentas de pedra que descobriram pela primeira vez no local em 1931.
Hoje, o hominídeo é conhecido como Paranthropus boisei, mas naquela época foi apelidado de “Homem Quebra-Nozes” nos jornais por causa de suas impressionantes mandíbulas e molares.
Desde então, gerações de cientistas debatem se o P. boisei realmente poderia ter fabricado e usado ferramentas de pedra, incluindo o próprio filho de Louis e Mary, Richard, que duvidava que o hominídeo primitivo fosse um fabricante de ferramentas.
No entanto, uma pista importante que poderia resolver o debate estava faltando todo esse tempo: uma mão inequivocamente ligada ao P. boisei. Isso até agora.
Em um artigo publicado na quarta-feira, 15 de outubro, na revista “Nature”, Louise Leakey e seus colegas anunciaram a descoberta de uma mão de 1,5 milhão de anos pertencente ao P. boisei.
A mão foi encontrada junto com partes identificáveis de um crânio, dentes, pés e vários outros ossos, o que significa que a mão estava “inequivocamente associada” ao P. boisei, afirmam eles. A equipe de Leakey escavou os novos fósseis no Lago Turkana, no Quênia, entre 2019 e 2021, cerca de 60 anos depois que sua avó encontrou o hominídeo pela primeira vez.
A descoberta também chegou a tempo de seu pai, Richard, se maravilhar com ela antes de sua morte em 2022. “Ele ficou emocionado!”, diz Leakey. “Ele achou que essa era uma descoberta extremamente significativa, porque finalmente podemos ver como eram as mãos do Paranthropus.”
A descoberta sugere que o P. boisei tinha mãos hábeis e poderosas, fornecendo fortes evidências de que o “Homem Quebra-Nozes” estava bem equipado para fabricar e usar ferramentas.

Louis e Mary Leakey seguram um fóssil de dentes e palato do que hoje é chamado de Paranthropus bosiei, encontrado no desfiladeiro de Olduvai, na Tanzânia.
O Paranthropus boisei e suas ferramentas de pedra
“Os autores apresentam argumentos convincentes de que esse indivíduo teria sido capaz de segurar pedras com precisão suficiente para fabricar e usar ferramentas simples de pedra”, afirma David Strait, paleoantropólogo da Universidade de Washington em St. Louis, Estados Unidos, que não participou do artigo. “Essa é, sem dúvida, a melhor evidência encontrada até agora indicando que o Paranthropus era um fabricante de ferramentas.”
No entanto, os próprios pesquisadores alertam que não podem afirmar com certeza se o P. boisei realmente usava ferramentas ou fabricava as ferramentas encontradas no local. “Tudo o que podemos dizer é que eles seriam capazes disso”, afirma Carrie Mongle, paleoantropóloga da Universidade Stony Brook, em Nova York, e principal autora do novo estudo.
Embora paleoantropólogos já tivessem encontrado ossos da mão na África Oriental, “é muito difícil saber a que espécie eles pertencem”, afirma Mongle.
No entanto, as novas evidências anatômicas encontradas pela equipe de Louise Leakey restauram uma ideia que seu avô e seu pai haviam praticamente abandonado na década de 1960.
“Embora paleoantropólogos já tivessem encontrado ossos da mão na África Oriental, 'é muito difícil saber a que espécie eles pertencem'.”
Qual espécie humana foi a mais antiga a fabricar ferramentas?
Louis Leakey estava inicialmente convencido de que o P. boisei “claramente fabricava suas próprias ferramentas”, como argumentou em seu artigo da National Geographic de 1960.
Como esse foi o primeiro hominídeo que Louis e Mary encontraram no local, “ele não tinha mais nada para escolher” como potencial fabricante de ferramentas, diz Louise Leakey.
Louis suspeitava que o P. boisei (que ele chamou de Zinjanthropus boisei) precisava usar ferramentas de pedra porque seus incisivos e caninos — dentes usados para cortar e rasgar — eram quebradiços e pequenos, tornando-os ineficazes para rasgar a pele ou o pelo de pequenos animais.
“Eu sei disso com certeza”, escreveu Louis, “pois, como experimento, tentei arrancar a pele de uma lebre com meus próprios dentes e unhas, e não consegui”.
“No verdadeiro estilo Louis”, diz Louise.
Mas ela acrescenta que até mesmo Louis tinha suas dúvidas. “Acho que ele não estava particularmente satisfeito com o tamanho do cérebro para chamá-lo de usuário de ferramentas”, diz ela.
No início de 1964, os Leakeys e sua equipe encontraram outro hominídeo, com fragmentos de ossos do crânio que sugeriam que ele tinha um cérebro muito maior. Louis o chamou de Homo habilis, ou “Homem hábil”.
Em um artigo publicado na revista “Nature” alguns meses depois, Louis e seus colegas concluíram que, embora fosse possível que ambas as espécies de humanos tivessem fabricado ferramentas de pedra, o Homo habilis era o fabricante de ferramentas mais avançado e o Paranthropus boisei, segundo ele, poderia ter sido apenas um “intruso” na área.
Em apenas alguns anos, o Paranthropus boisei passou de fabricante de ferramentas mais antigo conhecido a provável impostor.
O filho de Louis, Richard, e sua esposa Meave, também paleoantropóloga, transferiram o projeto de pesquisa cerca de 800 km ao norte da Tanzânia, para a margem leste do Lago Turkana, no norte do Quênia. Lá, eles descobriram em 1969 outro crânio de P. boisei (que chamaram de Australopithecus boisei) e algumas ferramentas de pedra. Assim como Louis, Richard era cético em relação à conexão.
“Ali estavam nossas ferramentas, as mais antigas já encontradas. Quem as havia fabricado? Não o Australopithecus boisei, eu sentia”, escreveu Richard na National Geographic em 1970.
Em contraste com o que seu pai havia escrito uma década antes, Richard chegou a essa conclusão, segundo ele, porque o P. boisei “possuía uma mandíbula robusta e dentes enormes para triturar alimentos, o que indica que ele se adaptou a uma dieta predominantemente vegetariana. Ele teria pouca necessidade de criar ferramentas de corte”.
Vários outros parentes humanos também viveram ao lado do P. boisei nesta região da África Oriental há cerca de 1 a 2 milhões de anos, incluindo o Homo habilis e o Homo erectus. Assim como seu pai, Richard achava que uma espécie diferente de hominídeo havia fabricado as ferramentas.
“É muito difícil determinar com precisão”, diz Louise, “com todas essas diferentes espécies de hominídeos presentes”.
A única maneira de responder a essas perguntas de forma definitiva é fazer o que os Leakeys sempre fizeram: continuar procurando. E agora, eles finalmente encontraram a mão do P. boisei — uma que parece que poderia ter usado as ferramentas.
A nova descoberta de Louise Leakey e da equipe de Mongle apoia a “hipótese de que o Homo não tinha o monopólio da fabricação e do uso de ferramentas de pedra”, diz Zeresenay Alemseged, paleoantropólogo da Universidade de Chicago, nos Estados Unidos, e explorador da National Geographic.
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“Depois de juntar cuidadosamente as partes restantes da nova mão, a equipe descobriu que suas proporções eram comparáveis às dos humanos modernos.”
Mãos semelhantes às humanas, força de pressão semelhante à dos gorilas
Depois de juntar cuidadosamente as partes restantes da nova mão, a equipe responsável pelo novo artigo descobriu que suas proporções eram comparáveis às dos humanos modernos, com um polegar bastante longo e pontas dos dedos largas que ajudariam na preensão. Uma mão como essa poderia ter sido usada para fabricar ou manipular ferramentas, diz Mongle, embora não tivesse a destreza necessária para pinçar com precisão.
“Se você observar a forma do osso onde o polegar se encontra com o pulso, os humanos são realmente únicos por terem uma superfície muito plana nesse local, o que acreditamos permitir ainda mais liberdade de movimento”, diz ela. O novo fóssil, por outro lado, tem uma articulação menor e mais curva, semelhante à dos macacos.
Outro aspecto interessante da mão são os ossos robustos dos dedos e o que eles revelam sobre os músculos “flexores” que o P. boisei usava para curvar os dedos. Você pode sentir esses músculos se contraírem se tocar a parte inferior ou média de um dos seus dedos enquanto o flexiona. Mas o que você não sentirá é o que o P. boisei tinha: fortes inserções ósseas dos músculos.
Os músculos do lado do dedo mínimo da palma da mão, que você pode sentir protuberantes quando aperta o punho, também eram bem desenvolvidos, de acordo com Mongle. “Nos seres humanos, você vê essas inserções musculares na palma da mão como uma linha tênue. No P. boisei, elas são como um gancho que se projeta”, diz ela. “Portanto, você pode imaginar que a força de preensão desse indivíduo teria sido incrível.”
Os pesquisadores especulam que o P. boisei também pode ter usado principalmente sua forte pegada para agarrar, torcer e arrancar plantas resistentes, como fazem os gorilas modernos. Mas nem todos estão convencidos de que essa seria a explicação mais óbvia para o aspecto das mãos.
“Para mim, é difícil explicar esses músculos realmente fortes e mãos poderosas apenas pela quantidade de força necessária para quebrar e manipular plantas”, diz Tracy Kivell, paleoantropóloga do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva em Leipzig, Alemanha, que não participou do estudo, mas fez muitos trabalhos comparando mãos fósseis de hominídeos com as de humanos modernos e macacos.
Embora ela concorde que as mãos do P. boisei sejam semelhantes às dos gorilas, ela acredita que essas mãos fortes também podem ter sido uma adaptação para escalar, em vez de arrancar plantas resistentes, o que ela detalha em um artigo relacionado publicado junto com o novo artigo.
Mongle e Leakey não acham que a escalada explique a anatomia da mão. Eles dizem que o P. boisei não passava muito tempo nas árvores, já que seu habitat à beira do lago provavelmente não tinha muitas. Além disso, os macacos que escalam árvores têm dedos longos e curvos, o que claramente não era o caso da mão fossilizada. Por fim, eles acrescentam que os ossos dos pés que também encontraram parecem mais adequados para andar ereto do que para se agarrar às árvores.
Mongle, Leakey e Kivell planejam colaborar em um estudo futuro que analisará a estrutura interna dos ossos da mão para ajudar a fornecer mais informações sobre como eles eram usados.
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A família Leakey quer seguir seu legado de descobertas
Nos últimos 20 anos, o trabalho de campo se tornou muito mais intenso depois que Richard Leakey fundou o Instituto da Bacia de Turkana, no norte do Quênia, diz Louise. “Isso transformou a forma como fazemos ciência, mas também a taxa de descobertas”, diz ela. “Temos várias em andamento. Conversaremos novamente em breve, tenho certeza.”
Enquanto Louise Leakey continua o legado de descobertas de sua família, ela credita grande parte de suas conquistas aos colaboradores locais que trabalharam ao lado dos Leakeys por gerações. Além de um grupo internacional de pesquisadores — incluindo sua mãe, Meave —, o novo artigo tem como coautores muitos membros da equipe de campo.
“A equipe de caçadores de fósseis é formada por pessoas das comunidades locais onde trabalhamos”, diz Louise. “Eles são essenciais para o sucesso dessas descobertas. São muito bons, muito habilidosos.”
Refletindo sobre o legado dos Leakey, Louise se pergunta o que seu avô Louis teria achado dessa descoberta. “Seria ótimo se ele pudesse voltar hoje”, diz ela. “Adoraria saber a opinião dele sobre tudo isso. Não seria divertido?”
A National Geographic Society, organização sem fins lucrativos comprometida em divulgar e proteger as maravilhas do nosso mundo, financiou o trabalho da exploradora Louise Leakey. Saiba mais sobre o apoio da Sociedade aos exploradores.
