Enfermeira indígena traz esperança a comunidade multiétnica na periferia de Manaus durante pandemia
Primeiro bairro indígena da capital do Amazonas sofre com negligência estatal enquanto a covid-19 avança sobre as 700 famílias do local, cujo cacique foi a primeira vítima fatal.
Vanda Ortega atende Carolina Miguel, indígena da etnia baniwa com 85 anos. A paciente teve sintomas fortes e foi levada a uma unidade de pronto atendimento no carro de Ortega, uma espécie de ambulância que serve a comunidade na ausência do Samu. A idosa se recuperou, mas ainda passa muito tempo na rede, segundo a filha.
A técnica de enfermagem Vanda Ortega, do povo witoto, testemunhou a agressividade com que o novo coronavírus tomou a vida do cacique de sua comunidade indígena, o Parque das Tribos, na periferia de Manaus.
Messias Moreira, da etnia kokama, começou a sentir os sintomas da covid-19 no fim de abril. A febre persistia e a cada dia ficava mais difícil respirar. Ele se recusava a buscar atendimento em hospitais de Manaus, apesar da insistência de Ortega. O cacique temia enfrentar a agonia da lotação de quase 100% dos leitos de UTI da capital do Amazonas. Além disso, acreditava que a medicina indígena o salvaria. De fato, houve dias em que Messias amanhecia com a força do sol amazonense, mas o respiro de esperança era então sufocado pela sensação de uma bigorna bloqueando suas vias aéreas.
Num desses dias, o esforço do cacique para puxar o ar era tanto que a filha chamou uma ambulância à sua revelia. Acabou sendo internado, mas os pulmões já estavam comprometidos. Morreu na UTI no dia 14 de maio, aos 53 anos. Seu filho Miqueias, de 33, assumiu o posto.
“Estamos assustados, sem acreditar até agora”, lamentou Vanda Ortega à National Geographic Brasil três dias após o óbito. Mesmo sendo a única morte pelo novo coronavírus no povoado até o momento, a perda do cacique atingiu o grupo de forma certeira. “Estamos muito angustiados com nosso futuro”, disse Ortega, por telefone.
Desde março, Ortega, de 33 anos, tem monitorado voluntariamente cerca de 50 pessoas com sintomas da covid-19 no Parque das Tribos, uma área que abriga 700 famílias de 35 etnias às margens do rio Tarumã-Açu. Pela relativa proximidade do centro urbano, essa foi uma das primeiras comunidades indígenas atingidas pela onda do vírus em Manaus.
O colapso do sistema de saúde no município, as covas coletivas para suprir a explosão de sepultamentos e a escassez de caixões compuseram algumas das cenas mais duras do impacto da covid-19 no Brasil até o momento. O prefeito Arthur Virgílio não escondeu o desespero para enfrentar a pandemia e chorou em entrevista. À National Geographic Brasil, por telefone, Virgílio diz que sua grande preocupação agora é a expansão da doença para as áreas periféricas da cidade e o interior do estado, onde estão baseadas populações indígenas.
“Tudo aqui é uma grande dificuldade, muita luta, a gente é abandonado”
“É muito preocupante”, afirma o prefeito sobre a situação de indígenas. “Essas pessoas estão à mercê do coronavírus. Tenho pedido o máximo de ajuda possível de organizações não-governamentais e do governo do estado na luta por essas populações”.
No Amazonas, o vírus se desloca de Manaus seguindo o curso dos rios Solimões, a sudoeste, e Negro, ao norte. É a região brasileira com a maior proporção de casos e mortes de indígenas – mais de 50% do total. No país, dados oficiais somam 51 indígenas mortos e 1.312 confirmados com a covid-19. Mas Sônia Guajajara, coordenadora-executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), garante que o número é maior. Pela contagem do órgão, ocorreram pelo menos 167 mortes e 1.747 contaminações até 30 de maio.
“Houve uma negação da Sesai [Secretaria Especial de Saúde Indígena] em não notificar os casos, ela quis esconder essa realidade”, critica Guajajara, acrescentando que a secretaria não notifica os indígenas do contexto urbano, apenas aqueles que vivem em aldeias.
Serviços limitados
Os indígenas têm maior vulnerabilidade ao coronavírus em relação a outros grupos – cenário que tem afligido especialistas, como a médica sanitarista Ana Lúcia Pontes, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz). “Essa vulnerabilidade no caso da covid-19 não é da imunidade, porque somos todos suscetíveis, mas resultante das condições de vida e saúde e de acesso a serviços, que é muito limitada para as populações indígenas”, explica ela, hoje dedicada ao enfrentamento do vírus nas áreas indígenas. “O indígena tem um desfecho mais desfavorável que qualquer outro grupo brasileiro, se comparar com a população branca e até negra.”
No Parque das Tribos, a maior parte das casas é de alvenaria, e as quatro ruas principais, asfaltadas. Mas a infraestrutura é precária e impõe um desafio maior no combate à doença. Não há água encanada – o abastecimento é feito por carros-pipas ou cacimbas. A eletricidade é intermitente, e o saneamento, improvisado. A unidade de saúde mais próxima fica a 30 minutos, enquanto hospitais estão a mais de uma hora de distância. E o único ônibus passa, com sorte, a cada três horas.
Vanda Ortega deixou sua comunidade indígena em Amaturá, no Amazonas, aos 16 anos para trabalhar como doméstica em Manaus, 900 km distante. Ela conseguiu se formar em técnica de enfermagem e hoje cursa pedagogia na Universidade do Estado do Amazonas.
“Tudo aqui é uma grande dificuldade, muita luta, a gente é abandonado”, diz Vanda Ortega do quintal da casa onde vive com o marido, Sidnei dos Santos, soldador gaúcho que foi ao Amazonas a trabalho. Após conhecê-la, há oito anos, fincou raízes no estado. Na comunidade, 80% são indígenas, e os demais são de histórias como a do casal.
Ortega é funcionária do centro cirúrgico da Fundação Alfredo da Matta, um hospital de referência no tratamento de câncer de pele e hanseníase em Manaus. Com o avanço da pandemia, as cirurgias foram suspensas, e as equipes trabalham com carga horária reduzida. Assim, ela encontra tempo para atender seus vizinhos.
A técnica de enfermagem se levanta diariamente às 6h. Veste uma capa de mangas compridas, touca, luvas e uma máscara com a frase Vidas indígenas importam. Às vezes, coloca seu cocar de penas azuis de arara. Caminha a pé pelo território de 1,4 km² – área semelhante à do Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro – visitando quem apresenta sintomas da covid-19. Num dia, visita cinco, no máximo seis pessoas. As moradias são distantes, e ela se alonga em cada atendimento. Quando chega a uma casa, passa álcool em gel por todos os cantos, ouve o paciente e a família. “A gente chora junto, principalmente quando eu levo o que comer”, diz. As demandas costumam ser mais por alimento do que por serviço de saúde. Com o isolamento social, muitos perderam a renda, e a fome se instalou.
Percebendo isso, Ortega começou uma campanha por doações. Aos sábados e domingos, ela e outras voluntárias organizam e distribuem cestas básicas e produtos de limpeza. Ela não descansa desde março, quando os primeiros casos surgiram na comunidade.
‘Pensei num momento que ia perdê-la’
Uma de suas pacientes graves foi Carolina Miguel, da etnia baniwa, 85 anos. Ela passava os dias com dores para puxar o ar, tosse forte, febre contínua, pressão alta e fraqueza em todos os músculos do corpo. “Minha mãe ficou muito mal mesmo”, conta a filha Gabriela Miguel, 38. “Ela teve até um início de derrame, pensei num momento que ia perdê-la”. Assim como o cacique, a família teve medo de levá-la ao serviço público de saúde. “O índio vai para o médico e já começa a tremer, já pensa que vai morrer”, diz Gabriela. “A fila já era enorme antes, imagina agora com essa doença. A gente fica traumatizado.”
“Essas pessoas estão à mercê do coronavírus. Tenho pedido o máximo de ajuda a organizações não-governamentais e ao governo do estado”
Mas Ortega foi incisiva e contatou o serviço do Samu para buscar a senhora. “Quando me identifiquei como indígena, a atendente disse que não podia liberar a ambulância”, conta. Comunidades indígenas urbanas às vezes caem em um limbo. A Sesai, ligada ao Ministério da Saúde, explicou por nota que cuida dos indígenas que habitam as aldeias. Os que vivem em cidades precisam contar com o SUS. “A Sesai não nos atende, nem o serviço local”, lamenta.
São feridas antigas que ficam mais expostas com a pressão da pandemia. “Esse problema já existia e vem crescendo”, afirma Ana Lúcia Pontes. “Quem vai para a cidade fica abandonado tanto pela política indigenista – não apenas na saúde, mas até no auxílio à alimentação – quanto pelo SUS, que não se responsabiliza”. Para Sônia Guajajara, a Sesai é “insuficiente e inadequada”, e o secretário (Robson Santos) "não tem relação com o movimento indígena”.
Segundo Ortega, a atendente do Samu sugeriu que ela procurasse o serviço do hospital de campanha exclusivo. Autoridades vinham prometendo destinar áreas dessas unidades para indígenas no Amazonas. Apenas na última terça-feira (26), foi inaugurada a primeira ala hospitalar, com 53 leitos exclusivos, para tratamento de indígenas com covid-19.
Mas diante das negativas dos orgãos, na ocasião, Ortega teve de colocar mãe e filha em seu próprio carro e dirigir até a unidade mais próxima, a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) Campos Sales, cerca de seis quilômetros dali – mas cuja estrada esburacada eleva o tempo de deslocamento para meia hora. “Eu estava desesperada”, conta a técnica de enfermagem. O carro é um dos poucos da comunidade e tem servido para transportar a maioria dos pacientes graves, além de buscar doações.
Carolina voltou da UPA estabilizada e ainda está se recuperando. “Agora, ela se alimenta, conversa, mas ainda fica muito deitada na rede”, diz a filha. A idosa foi uma das poucas a ter a confirmação da covid-19 no Parque das Tribos, no dia 28 de abril. Os outros cinco membros da família também tiveram sintomas, menos graves, e não foram testados. “Todos pegamos essa doença, ninguém conseguia comer nada aqui em casa”, lembra Gabriela.
Vanda Ortega atende Janio Erlani Nascimento Cabral no Parque das Tribos, comunidade na periferia de Manaus que reúne indígenas de 700 famílias e 35 etnias.
Após semanas de agruras, a família começa a voltar à rotina. Com as aulas suspensas, as duas crianças, Jamis, de sete, e Herlan, de 11 anos, correm pela rua de barro na frente da casa de tijolos aparentes e se banham no rio de águas turvas e mata nativa nos fundos da comunidade. Gabriela e a filha mais velha, Gabriele, 16, cuidam da idosa e da casa. As prosas ali saltam do português para as línguas baniwa e nheengatu. O marido, Jânio Cabral, 39 anos, busca bicos escassos na construção civil e pesca num igarapé próximo. Com sorte, acumula R$ 600 no mês para suprir a família. Nos últimos dois meses, a principal renda tem sido o auxílio emergencial do governo federal e doações. O Bolsa Família das crianças vai direto para custear os estudos de Gabriele em um curso privado de técnica de enfermagem.
Foi por isso que a família saiu de mala e cuia de São Gabriel da Cachoeira, a 860 quilômetros dali, há quase dois anos. “Queria para minha filha uma vida melhor do que a que tivemos”, conta Gabriela. Só o esposo terminou o ensino médio. A avó, Carolina, nunca entrou na escola. Sobreviviam da roça onde cultivavam banana, abacaxi, pimenta, cana-de-açúcar e mandioca para produzir farinha e beiju. O cacique Messias ofereceu uma casa após ouvir a história da família. “A terra não chega fácil para indígena, então a gente é muito grato ao que ele fez por nós”, afirma Gabriela.
‘Índio tinha que andar nu’
O Parque das Tribos foi inaugurado em 2014 e, ainda alvo de litígio, sofreu ameaças de milícias e especulação imobiliária. No início da ocupação, muitos não suportaram a falta de infraestrutura e a violência e partiram. Há quatro anos, numa das operações mais sérias, 70 barracos foram queimados por agentes incumbidos de expulsar os moradores, relembra Vanda Ortega. Cortaram redes, levando idosos ao chão, e incitaram cachorros sobre crianças. Disseram que ali não havia indígenas, “porque índio tinha que andar nu”, lembra Ortega. Foi quando mulheres rasgaram suas roupas e mostraram os seios em protesto: “É mulher nua que vocês querem?”, gritaram. O cacique Messias Moreira foi preso por algumas horas após defendê-los. “Nossa área é muito visada, então ele era um escudo da comunidade”, conta Ortega.
Dos 818 mil indígenas no Brasil, 35% vivem em áreas urbanas. Mas, chegando às cidades, são com frequência questionados sobre sua identidade. “Não somos considerados indígenas no espaço urbano”, diz Ortega. Muitos emigraram de aldeias para os centros urbanos em busca de melhores condições de saúde e educação. Sônia Guajajara é uma das que defendem que o estudo universitário possa quebrar um ciclo de 520 anos de brancos como seus porta-vozes. Querem falar por si próprios – como pesquisadores, professores, técnicos. O número de indígenas em universidades sextuplicou entre 2011 e 2018, atingindo 57.706, embora ainda seja o grupo com menos acesso à educação superior, segundo dados do Inep.
Vanda Ortega é um exemplo: ela tinha 16 anos quando deixou sua comunidade indígena em Amaturá para trabalhar a 900 quilômetros de distância, em Manaus, como empregada doméstica e babá. Ela precisava aliviar as despesas da família de sete filhos. As mulheres indígenas foram incorporadas ao trabalho doméstico ainda no período colonial, especialmente nos cuidados de filhos de colonizadores portugueses. Até hoje, elas deixam aldeias para trabalhar em casas de classe média e alta da capital amazonense.
Ao chegar, em 2002, ganhava R$ 100 por mês e vivia na casa dos empregadores – mandava a maior parte da renda para os pais. Naquele ano, o salário mínimo era de R$ 200. Era sofrido, mas uma oportunidade de estudar. O pai lhe ensinou a ler à beira do Rio Solimões quando tinha cinco anos, e ela pisou pela primeira vez numa sala de aula aos dez. Por isso, chegou à capital ainda cursando a 4ª série, hoje equivalente ao 5º ano do ensino fundamental. Para dar conta do trabalho e colégio, acordava às 3h e dormia apenas quando os patrões a liberavam. Não teve tempo para amigos. O esforço, entretanto, garantiu que se formasse como técnica de enfermagem em 2012. Hoje, ela também cursa pedagogia na Universidade do Estado do Amazonas.
“A vulnerabilidade dos indígenas no caso da covid-19 não é da imunidade apenas, mas resultante das condições de vida e saúde e de acesso a serviços”
O diploma aumenta a responsabilidade de Ortega. Ela é uma das lideranças locais que vive batendo à porta das instituições públicas e fazendo campanhas nas redes sociais para cobrar-lhes acesso a serviços básicos. Foi o que ela fez, por exemplo, quando o então ministro da Saúde Nelson Teich visitou Manaus em 4 de maio. Em sua agenda, não havia encontros com organizações indígenas. Ortega acionou ativistas, mas o coronavírus minguou a mobilização. Apenas ela, uma mulher de origem baré e outra munduruku aderiram. Usaram o urucum de seus quintais para pintar rostos e cartazes. Vestiram roupas tradicionais e seguiram para o hospital Delphina Rinaldi, uma das unidades de referência no tratamento da covid-19 em Manaus. A comitiva do ministro passou direto por elas.
Mais tarde, as três indígenas acabaram recebidas, na rua, pelo secretário da Sesai, Robson Santos, que estava na comitiva. Na oportunidade, cobraram atenção ao indígena urbano e criticaram a subnotificação de seus povos. Nenhum documento saiu da reunião improvisada.
Mas a insistência do pequeno ato ganhou visibilidade, principalmente da imprensa local. Com isso, uma unidade básica de saúde móvel da prefeitura começou a funcionar no Parque das Tribos na última semana. Dois médicos vão realizar testagem rápida para a covid-19 e outros serviços básicos no próximo mês.
O reforço deve aliviar o trabalho da técnica de enfermagem, mas não interrompê-lo. Ortega quer continuar como testemunha de vitórias como a da dona Carolina ou ser um apoio em derrotas como a de Messias, cujo corpo foi liberado para o velório após decisão judicial. O caixão chegou ao Parque das Tribos envolto em plástico e ficou no centro de um cordão de isolamento por meia hora.
“Não se lamenta a morte de indígena no Brasil”, diz Ortega. Por isso, ela e seu povo têm de lutar para ter o direito de expressar o luto pela morte de seu cacique.