Jovens indígenas sofrem impacto mais agressivo do coronavírus que a média brasileira na mesma faixa etária
Elo mais frágil entre povos que sobrevivem a desigualdades históricas, crianças e adolescentes indígenas representam 5% das vítimas da covid-19 em suas comunidades.
Crianças awa se banham em rio em terra indígena no Maranhão. Os awa estão entre as etnias mais ameaçadas pelo avanço das queimadas e do desmatamento ilegal na Amazônia. No entanto, ainda não registraram casos de coronavírus – eles estão isolados e só deixam as aldeias em caso de urgências médicas. Visitantes cadastrados entram no território apenas depois de uma quarentena de 15 dias.
A morte de um bebê de 45 dias encobriu o futuro das etnias do Parque Nacional do Xingu. Foi a primeira vítima fatal da reserva indígena do Mato Grosso provocada pelo coronavírus, que vem se alastrando rapidamente pelos territórios protegidos da Amazônia Legal.
Mas não foi a única criança indígena a tombar pela doença. A pedido da National Geographic Brasil, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Abip) contabilizou 18 mortes de pessoas com até 19 anos. Dessas, 13 eram recém-nascidas. Isso representa 4,6% do total de óbitos entre indígenas até o dia 30 de junho. A entidade monitora os casos de forma independente uma vez que questiona a subnotificação oficial. Enquanto, na última semana, a Apib divulgava 389 mortes, o Ministério da Saúde somava 156 no mesmo período.
No mundo, as mortes pela covid-19 entre jovens são raras. Eles representam menos de 1% do total de óbitos em Itália, Espanha, EUA e até mesmo no Brasil. Em todo o Reino Unido, cinco pessoas abaixo de 18 anos morreram pelo vírus.
Dados sugerem que a taxa de mortalidade de indígenas até 19 anos por coronavírus também seria bem maior que a da população brasileira na mesma faixa etária – 7,5 contra 0,73 por 100 mil habitantes, respectivamente. O cálculo foi feito a partir de informações populacionais da PNAD/IBGE e de óbitos por covid-19 contabilizados pelo governo federal e pela Apib. Os números são preliminares e têm limitações, por exemplo as diferenças regionais e etárias dessas populações que não puderam ser levadas em conta no levantamento, assim como o método de coleta de dados da covid-19 por cada entidade.
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Mas eles sugerem uma disparidade que não surpreende pesquisadores. Desde o início da pandemia, eles têm alertado para um impacto potencialmente mais agressivo da covid-19 sobre os pequenos indígenas, que sofrem persistentes e históricas desigualdades. “As crianças indígenas vêm de um conjunto de profundas vulnerabilidades”, resume Ana Lúcia Pontes, médica-sanitarista da Ensp/Fiocruz, focada na saúde dessas populações.
Andrey Cardoso é um epidemiologista que participou do maior inquérito a mapear as condições de saúde e nutrição de indígenas crianças até 5 anos e mulheres em idade fértil no país. Mesmo com diferenças regionais, “os resultados gerais mostram uma situação de desvantagem das condições sanitárias e de saúde dos indígenas em relação à população geral”, afirma Cardoso, também ligado à Ensp/Fiocruz. “Observamos, por exemplo, uma prevalência elevada de anemia, desnutrição, baixa estatura para a idade e diarreia nessas crianças.”
Desprotegidas pelo Estado e esquecidas das camadas urbanas mais ricas, as crianças indígenas ainda morrem de problemas típicos de quem enfrenta a extrema pobreza no Brasil. Mais de 70% dos indígenas viviam com menos de um salário mínimo em 2010. Enquanto o valor mínimo era de R$ 510, os indígenas recebiam, em média, R$ R$ 279.
O Brasil combateu a mortalidade infantil nas últimas décadas com o avanço socioeconômico, a redução do número de filhos e a melhoria dos serviços de saúde. Mas boa parte das comunidades indígenas ainda vive no subdesenvolvimento de tempos atrás. Estudo de 2010 mostra que a mortalidade infantil desse grupo chega a ser quase três vezes maior que a média nacional – 47,2 por mil nascidos vivos contra 16,3, respectivamente. E ultrapassa a de outros grupos marcados pelas disparidades sociais, como o de negros (29,1 por mil nascidos vivos).
Doenças respiratórias, como a pneumonia, estão entre as principais causas de internação e morte de crianças indígenas. “Há diversos fatores de risco para isso, entre eles o estado nutricional das crianças, o aleitamento materno e o acesso à vacina”, acrescenta Cardoso. No cenário da pandemia, a proporção de mortes entre indígenas hospitalizados com covid-19 é de 48% – contra 28% dos brancos. Ainda não há dados específicos para as crianças.
Memória de surtos do passado
Eliane Xunakalo vem do povo bakairi – que, nos séculos 19 e 20, serviu de guia para expedições no Alto Xingu – e cujos avós narravam surtos devastadores de sarampo, meningite, febre amarela e gripe trazidos por etnógrafos, religiosos e militares. “Houve muita morte, os mais velhos sabem como um vírus desse é perigoso”, conta.
“Os resultados gerais mostram uma situação de desvantagem das condições sanitárias e de saúde dos indígenas em relação à população geral. Observamos, por exemplo, uma prevalência elevada de anemia, desnutrição, baixa estatura e diarreia nessas crianças.”
Mas as novas gerações, diz Xunakalo, esqueceram o medo das pandemias. A demarcação de territórios como o do parque indígena, em 1961, permitiu que povos do Xingu se refizessem ao longo das décadas seguintes – vivem em torno sete mil indígenas de 16 etnias na região. Hoje, são as fazendas de soja que pressionam as terras indígenas e quase tocam as aldeias kalapalo, dispersas às margens do Kuluene, um dos rios tortuosos e fartos de peixe que dão origem ao abundante Xingu.
Vinte e quatro malocas ovais de madeira e sapé se dispõem ao redor do pátio central da aldeia de Tanguro. São moradias amplas e compartilhadas por adultos e crianças kalapalo – entre eles a família de Salu, o bebê vítima do coronavírus. Há muitas outras crianças que correm soltas pela área. A energia elétrica vem de geradores; a água e o saneamento, de poços artesianos e fossas. O estudo de Cardoso sustenta que essa é uma realidade comum: 63% do esgoto entre famílias indígenas vão para instalações rudimentares, quase 80% do lixo é queimado ou enterrado, e 55% das fontes de água vêm de poços ou nascentes.
O deslocamento no entorno do Xingu é complicado. Uma estrada de chão começa na aldeia da Tanguro e segue a leste por cerca de 60 quilômetros para a rodovia que, por outros 40 quilômetros, corta largas propriedades rurais até Querência, um município com 17 mil habitantes e com mais de 200 casos e cinco mortes por covid-19. Eles se deslocam quando precisam se abastecer de materiais de higiene, combustível, alimentos ou atendimento médico.
Foi em Querência onde começou a peregrinação da família do bebê, que há dias sofria com febre alta e tosse forte. Sem condições de tratamento por lá, o menino foi levado a um hospital a 230 quilômetros, no município de Água Boa. Porém, sem UTI pediátrica no local, ele foi transferido em uma UTI aérea para a capital, Cuiabá, após uma determinação do Ministério Público Federal. Salu faleceu dois dias depois da internação, na noite de 13 de junho. O menino é neto do cacique da aldeia vizinha de Sapezal, Vanité. Ele e o filho, Adolfo, tio da criança, testaram positivo para a covid-19, mas se recuperaram.
Camila e Kapalka têm pouco mais de 20 anos, e Salu foi o primeiro filho do casal. Desde a morte da criança eles estão sem contato com a zona urbana. Um dos poucos familiares com comunicação era Amarildo, primo de Camila, que trabalha numa associação indígena em Canarana, vizinha ao Xingu. “Ela me contou que foi uma luta conseguir atendimento para o filho, só por meio da Justiça mesmo”, afirmou à National Geographic Brasil.
O Ministério da Saúde informa ter enviado equipamentos de proteção à unidade sanitária local, o DSEI Xingu, e que os profissionais estão implementando um plano de contingência, que inclui testar e monitorar os casos de coronavírus. Já Eliane Xunakalo, da federação indígena Fepoimt, diz que é pouco. “O atendimento já era precário antes, e a pandemia potencializou”. Por isso, grupos locais têm mobilizado campanhas de doação e prevenção.
“Antes estávamos chorando e nos molhando de lágrimas, e o que fazemos é lavar a tristeza com as águas do rio”
Com a primeira morte anunciada, os povos do Xingu estão recolhidos de luto e medo. “Como estão ocorrendo muitos casos na região, estão todos indo para as aldeias, tem pouca gente nas cidades”, explica Iré Kayabi, que vive em Canarana. A chegada do período seco em junho abriria a temporada de rituais que congregam membros de diferentes aldeias, como o kuarup, para celebrar a memória dos antepassados. Mas a covid-19 levou a um inédito cancelamento dos eventos. Em vez disso, povos se fecham erguendo barreiras sanitárias e constroem ocas para isolar pessoas com sintomas da doença.
Do Xingu, ao Brasil, ao mundo
Há crianças e adolescentes indígenas vítimas da covid-19 em quase todas as regiões do Brasil. Em 9 de abril, a primeira morte confirmada foi a de Alvanei Xirixana, um jovem yanomami de 15 anos que vivia num território de Roraima na fronteira com a Venezuela. No dia 5 de maio, um bebê guarani de um ano faleceu na Terra Indígena Tenondé Porã, no extremo sul de São Paulo. Segundo a Comissão Guarani Yvyrupa, outras crianças estão contaminadas e dois idosos também morreram no território. A comunidade está em luto profundo, informou a comissão. No dia 20, um recém-nascido de três dias do povo pipipã morreu no município de Floresta, em Pernambuco.
Mas a vulnerabilidade não é exclusiva às comunidades brasileiras. Um levantamento publicado na revista científica Lancet mostrou que populações indígenas de 23 países têm, em geral – embora com diferenças locais –, uma situação social e de saúde mais precária que a de outros grupos. Por exemplo, as taxas de mortalidade infantil para indígenas eram pelo menos duas vezes maiores na Colômbia, Groenlândia, Peru, Rússia e Venezuela – além do Brasil; e havia altas proporções de desnutrição e obesidade infantil em pelo menos metade das populações. Com isso, há alertas do avanço do coronavírus e mensagens de resistência de indígenas de várias nações.
No Alto Xingu, o período seco traz noites estreladas abaixo dos 10ºC e dias de céu azul acima dos 30. Salu se foi numa noite fria, mas um sol forte já pela manhã do dia 17 trouxe novo ânimo à sua despedida na aldeia Tanguro. Foi uma celebração alegre e reflexiva com cantos e pinturas no corpo. “Pensei muito no Salu e na menininha que adotei, fiquei muito emocionado”, contou Amarildo. Parte do ritual levou os familiares a se banharem no rio Kuluene para, diz ele, tirar o luto e trazer a felicidade de volta: “Antes estávamos chorando e nos molhando de lágrimas, e o que fazemos é lavar a tristeza com as águas do rio”.