Coronavírus se aproxima de indígenas isolados da Amazônia
Enquanto defensores alertam para um genocídio, o STF age para tentar proteger territórios indígenas.
O rio Javari e seus afluentes formam uma rede de vias navegáveis que levam à Terra Indígena do Vale do Javari, no extremo noroeste do Brasil, onde vive a maior concentração de povos não contatados do mundo. Casos de covid-19 foram registrados no interior da reserva, em áreas próximas a grupos isolados.
Em meio ao receio de que o novo coronavírus tenha chegado ao interior da floresta amazônica, ameaçando povos isolados, o Supremo Tribunal Federal emitiu neste mês decisão favorável, por unanimidade, a pedidos de povos indígenas para obrigar o governo a protegê-los da pandemia.
Mesmo antes da decisão de 5 de agosto, grupos indígenas comemoraram a ação como um triunfo sem precedentes. Foi a primeira vez que o STF concordou em julgar uma ação movida por litigantes indígenas sem intermediários como a Fundação Nacional do Índio (Funai). A fundação, cuja missão é defender os direitos e as terras dos povos indígenas brasileiros, passou a ser encarada como contrária aos interesses indígenas sob o governo do presidente de extrema-direita Jair Bolsonaro.
“É uma vitória histórica e extremamente importante dos povos indígenas”, afirma Luiz Eloy Terena, advogado líder da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), principal federação indígena do país, que atuou em parceria com seis partidos políticos de oposição para instaurar o processo contra o governo. “Trata-se de um reconhecimento de nossas próprias formas de organização social.”
O tribunal determinou que o governo desenvolva e implemente um plano abrangente no prazo de 30 dias para evitar a propagação da covid-19 em territórios indígenas, sobretudo naqueles onde há grupos em completo isolamento – denominados povos isolados. Além disso, o governo deve instituir um grupo de trabalho que inclua representantes indígenas, além de estabelecer uma sala de situação em Brasília para monitoramento contínuo das iniciativas que visam deter ou mitigar a pandemia em áreas de matas habitadas por grupos indígenas isolados e de recente contato.
Até o momento, mais de 25 mil indígenas em 146 comunidades testaram positivo para a covid-19 em todo o Brasil, segundo a Apib. Cerca de 700 morreram. Não se sabe se a pandemia já alcançou algum grupo indígena isolado, mas a perspectiva causa profunda preocupação entre os ativistas.
Embora o STF tenha decidido favoravelmente às proteções contra a covid-19, o tribunal não definiu cronograma para um dos pedidos dos autores da ação: a expulsão imediata de madeireiros ilegais, garimpeiros e grileiros de sete territórios indígenas distribuídos pela Amazônia. À medida que a pandemia se alastra, as invasões tornam-se um risco cada vez mais grave à saúde e a recusa do órgão em impor um plano concreto para a expulsão dos invasores amainou a comemoração dos líderes indígenas.
“Foi uma vitória incompleta”, afirma Beto Marubo, da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari, que retornou ao seu escritório em Brasília na semana passada, após uma visita à sua aldeia, localizada próxima à fronteira com o Peru. “O reconhecimento do STF foi um gesto bastante simbólico e positivo, mas não esperávamos que houvesse um atraso na expulsão dos invasores.”
Em um funeral no Parque das Nações Indígenas, periferia de Manaus, parentes lamentam a morte de um cacique kokama. Diversos indígenas do povo kokama abandonaram sua terra natal no noroeste do Brasil e partiram para a capital do estado do Amazonas em busca de trabalho e serviços. Ao menos 60 kokamas morreram de covid-19.
Enlutados, indígenas carregam o caixão do cacique Messias, do povo kokama, que morreu com 53 anos vítima de covid-19, em maio.
Em razão da facilidade de transmissão de covid-19, Marubo teme o pior. “Quando nós, no Javari, dizemos que há uma possibilidade de genocídio, somos acusados de ser alarmistas”, afirma Marubo. “Mas, se alguém de um povo isolado for infectado, contaminará todos com quem convive. Qualquer um que conhece o Javari sabe que isso é possível.”
A extensa Terra Indígena do Vale do Javari, no extremo noroeste do Brasil, é especialmente preocupante às autoridades de saúde e líderes indígenas porque abriga a maior concentração de comunidades indígenas isoladas do mundo. Especialistas em saúde afirmam que o risco de contágio nesses povoados é excepcionalmente alto por eles não terem defesas imunológicas aos patógenos que evoluíram em centros populacionais distantes.
Para aumentar ainda mais a urgência no Javari e outras regiões, na semana passada, um grupo de indígenas isolados entrou na aldeia Terra Nova, onde vivem os kulinas, nas cabeceiras do rio Envira, cerca de 50 quilômetros a sudoeste da reserva Javari, no estado do Acre.
Em entrevista ao jornal O Globo concedida pelo telefone público da aldeia, o cacique Cazuza Kulina contou que entre dez e 20 indígenas, incluindo mulheres e crianças, levaram alimentos, ferramentas e roupas antes de desaparecerem novamente na mata. Os moradores da aldeia contaram ao jornal que vários estão manifestando sintomas de covid-19 – dores de cabeça, tosse e letargia. Cazuza disse que nem a Funai nem a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) providenciaram ou contrataram equipes para instalar locais de quarentena – as chamadas barreiras sanitárias, que poderiam ajudar a proteger o grupo contra o novo coronavírus e outras doenças infecciosas.
“Desde o início da colonização no Brasil, esses povos sofrem e morrem em decorrência de infecções trazidas pelos colonizadores – como sarampo, varíola, tuberculose e diversas cepas de gripe”, explicou por e-mail Lucas Infantozzi Albertoni, especialista em saúde indígena, em referência a populações originárias que tiveram pouco ou nenhum contato com o mundo exterior. Ele me escreveu de um barco-hospital no rio Tapajós, no centro da Amazônia, que faz rondas anuais para atender pacientes de comunidades remotas. “Essas doenças provocaram enormes taxas de mortalidade, levando etnias inteiras à extinção e inúmeras outras à desintegração social.”
Uma equipe médica das Forças Armadas chega à aldeia indígena Cruzeirinho, no rio Javari, perto da fronteira com o Peru. Com acesso esporádico à assistência pública de saúde, algumas comunidades bloquearam estradas para manter invasores longe, depois que a pandemia começou a se alastrar pela região no fim de março. Outros indígenas do povoado fugiram para a selva.
Covid-19 perto de povos isolados
Mesmo após a decisão do tribunal determinando a implantação de barreiras sanitárias para conter o avanço do coronavírus, os primeiros casos de covid-19 foram registrados em aldeias próximas a um grupo isolado na Terra Indígena do Vale do Javari.
Em 6 de agosto, uma idosa do povo kanamari morreu devido à doença após ser evacuada do assentamento Hobana, no alto do rio Itaquaí, a menos de 16 quilômetros das hortas plantadas por indígenas isolados conhecidos como flecheiros.
Os primeiros casos de covid-19 na reserva de Javari foram registrados em uma aldeia rio abaixo, transmitidos muito provavelmente por equipes de saúde do governo. Mas o súbito aparecimento da covid-19 no miolo da reserva preocupa líderes indígenas e especialistas em saúde. Como todos os rios partem de nascentes em uma região central, a reserva é facilmente protegida contra grandes incursões por postos de controle nas margens dos rios. Embora seja difícil chegar de barco a aldeias como Hobana, especialistas alegam que o vírus entrou em Javari clandestinamente – por trilhas abertas na mata pelos dinâmicos kanamaris, que buscavam mercadorias em cidades como Ipixuna e Eirunepé ao longo do rio Juruá, com trânsito intenso.
“Nosso maior receio agora é que a doença avance pelas trilhas até os altos cursos dos rios, onde há postos de controle da Funai rio abaixo”, afirma o advogado indígena Terena. Além dos kanamaris, vários outros grupos indígenas contatados – matis, marubos, matsés – ocupam territórios perigosamente próximos a grupos isolados nas cabeceiras remotas da reserva Javari, explica Terena, aumentando as oportunidades de contágio de indígenas que não possuem defesa imunológica à doença nem a possibilidade de tratá-la.
Até agora, 441 casos de infecção por covid-19 e duas mortes foram notificados no Vale do Javari, segundo a Sesai.
“Uma infecção em uma das aldeias contatadas pode ser transmitida rapidamente a esses grupos isolados”, afirma Terena. O risco é maior agora, com o início da estação seca na região oeste da Amazônia. Quando as águas de áreas inundadas da floresta recuam, comunidades inteiras – e indígenas não contatados em especial – se deslocam em busca de sustento.
Segundo Beto Marubo, é também a época do ano em que grupos isolados entram em assentamentos em busca de alimentos e ferramentas. Os mesmos indígenas isolados visitam a aldeia Marubo, em São Joaquim, no rio Ituí, todos os anos. “Chegam à noite e levam alimentos – bananas, cana-de-açúcar, batatas – e ferramentas como facões e machados”, conta ele. “E há um caso confirmado de coronavírus nessa aldeia.”
Temores de genocídio
Apesar das críticas a como respondeu à pandemia, a Funai afirma que a decisão do tribunal surtirá poucos efeitos sobre seus planos. “A decisão do STF nos permite aprimorar as medidas que vêm sendo tomadas pela Fundação Nacional do Índio (Funai) para proteger os povos indígenas desde o início da pandemia”, informou a fundação por e-mail à National Geographic. A fundação mencionou a entrega de 500 mil cestas básicas às famílias em “situação de vulnerabilidade social” e o que chamou de apoio a mais de 300 barreiras sanitárias.
Contudo, líderes indígenas afirmam que a resposta da Funai tem sido lamentavelmente precária e, por esse motivo, instauraram uma ação judicial. Eles também receiam que a recusa do tribunal em definir uma data para a expulsão dos invasores alimentará ainda mais a crescente sensação de impunidade.
Marubo afirma que caçadores ilegais estão aparecendo nas comunidades do Javari pela primeira vez em décadas, ameaçando moradores e funcionários da Funai com violência. Na aldeia Matsés de Solís, eles mencionaram o nome de Maxciel Pereira dos Santos, colaborador da Funai assassinado em setembro do ano passado, na cidade vizinha de Tabatinga. “Ouviram falar do assassinato de Maxciel que ocorreu ano passado?” Marubo prossegue, repetindo as provocações dos criminosos. “Vocês podem ter o mesmo destino.”
Santos trabalhou para a Funai na proteção dos povos isolados do Javari por 12 anos antes de ser morto a tiros por um assassino de aluguel em uma moto à plena luz do dia. Ninguém nunca foi denunciado pelo assassinato.
“Nada foi feito pelas autoridades, nada que demonstrasse uma resposta robusta do governo brasileiro”, conta Marubo. Como consequência, outros funcionários da Funai relutam em levar o trabalho a sério. “Eles pensam: ‘Se aconteceu com Maxciel, pode acontecer comigo também.’”
O advogado Terena espera que a decisão do tribunal traga novo ânimo às iniciativas hesitantes para conter a propagação do coronavírus. A falta de medidas decisivas nas próximas semanas, afirma ele, pode sujeitar o governo brasileiro a acusações de violações do direito internacional.
“Gostaria de salientar que, em relação aos povos isolados, o descumprimento da ordem judicial do STF poderia provocar um genocídio dessas populações.”
Túmulos de vítimas da covid-19 lotam uma nova ala do cemitério Nossa Senhora Aparecida, em Manaus. Mais de 100 mil casos de covid-19 e 3,5 mil mortes foram registrados no estado, onde as taxas de infecção começam a estabilizar.
Scott Wallace é professor de jornalismo na Universidade de Connecticut e colaborador frequente da National Geographic. Ele é autor do livro Além da conquista – Sidney Possuelo e a luta para salvar os últimos povos isolados da Amazônia.