Um cargo, vários representantes? Nova ideia política decola no Brasil
Paula Nunes, falando para uma multidão em um protesto em São Paulo, pertence a um dos crescentes coletivos políticos no Brasil. Os coletivos políticos colocam o nome de um único membro na cédula, mas fazem campanha – e servem a seus eleitores – como um grupo.
São Paulo, Brasil | Enquanto Paula Nunes caminha cautelosamente pelas estreitas passagens entre casas improvisadas no assentamento Buracanã, os moradores a chamam pelo nome.
Essa comunidade improvisada, espremida entre a favela São Remo e o Hospital Universitário de São Paulo, na capital paulista, é um local de refúgio. A maioria das 400 famílias que moram aqui perdeu os meios de subsistência durante a pandemia de covid-19 e a capacidade de pagar aluguel.
Nunes é vereadora da cidade – ou melhor, uma das cinco mulheres que dividem uma única cadeira na Câmara Municipal desde que foram eleitas em 2020 como parte de um coletivo político chamado Bancada Feminista. Embora não sejam formalmente reconhecidos pelo governo, os cargos políticos de poder compartilhado fazem parte de uma tendência crescente de ampliar o escopo de representação e aumentar o número de mulheres e minorias em cargos políticos.
Ganhar representação política é um desafio enfrentado em todo o mundo por mulheres, pessoas de cor, comunidade LGBTQIA+ e outras minorias. Mas somente no Brasil tantos ativistas de base – como os membros da Bancada Feminista – começaram a compartilhar não oficialmente os assentos eleitos como forma de ampliar o poder de pessoas marginalizadas.
Integrantes do coletivo político Bancada Feminista, em camisas roxas, se reúnem com moradores do empobrecido assentamento Buracanã. As cinco mulheres que integram o coletivo dividem uma cadeira na Câmara Municipal de São Paulo.
Enquanto seus colegas da Bancada Feminista se concentraram em outras questões, Paula Nunes, uma advogada, pôde visitar Buracanã muitas vezes para consultar os residentes sobre suas necessidades. "Se fosse apenas uma pessoa ocupando esta cadeira, tantas pessoas em nossa comunidade seriam deixadas para trás", diz ela.
Silvia Ferraro, professora de história, é a porta-voz da Bancada Feminista, o que significa que ela é a única integrante oficialmente autorizada a falar nas reuniões da Câmara Municipal e votar.
A maneira como funciona é simples: o coletivo político coloca o nome de um membro na cédula, mas faz campanha como um grupo. A pessoa na cédula serve como porta-voz do grupo e, como único representante oficialmente eleito, é quem fala nas reuniões da Câmara Municipal ou Assembleia Legislativa e participa das votações em plenário. Os outros membros atendem aos constituintes ou fornecem conhecimentos em áreas específicas; as decisões sobre como votar em cada pauta são tomadas em grupo.
Enquanto os colegas do coletivo se concentram em outros problemas enfrentados pela população da cidade, de mais de 12 milhões de habitantes, Nunes tem conseguido conviver com os moradores do Buracanã. Ela quer ajudar os moradores do assentamento a conseguir o que mais precisam: comida, trabalho e moradia acessível.
“Se fosse apenas uma pessoa ocupando este lugar, muitas pessoas em nossa comunidade seriam deixadas para trás”, diz Nunes, advogada. “Aquela pessoa ficaria presa nas reuniões do conselho, votando em questões que afetam pessoas que nem teve tempo de conhecer.”
"É o que as pessoas querem."
Em Alto Paraíso de Goiás, uma pequena cidade goiana à beira do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, um coletivo político conquistou uma cadeira na Câmara Municipal em 2020 com 280 votos, o maior número já registrado para um candidato na história da comunidade. Os quatro membros do Mandato Coletivo Permacultural – duas mulheres e dois homens – são educadores ambientais que querem que o município integre melhor a natureza e as questões ambientais em suas políticas.
Tudo o que o coletivo faz é dividido igualmente. Enquanto Henny Freitas é seu porta-voz na Câmara Municipal, durante as reuniões ela conversa continuamente com os outros membros no WhatsApp para ter certeza de que não é apenas sua voz que é ouvida.
“Isso pode não ser legalmente reconhecido ainda, mas é legítimo, porque é o que as pessoas querem”, diz ela.
Henny Freitas é o porta-voz do Mandato Coletivo Permacultural. Durante as reuniões do conselho da cidade, ela consulta continuamente os outros membros no WhatsApp para garantir que não seja apenas sua voz sendo ouvida.
Augusto Schneider também pertence ao Mandato Coletivo Permacultural, que abriu uma posição rotativa para os cidadãos interessados à medida que as necessidades da comunidade foram mudando.
Integrantes do Mandato Coletivo Permacultural se encontram com Luís José Cunha Lima, ex-coletor de flores nativo e um dos moradores mais antigos da cidade. Eles estão desenvolvendo um projeto para resgatar a memória e a cultura local na cidade.
“É uma forma de se desvincular do papel tradicional de uma pessoa eleita", diz Christiane Catalão, membro do ocletiivo. "A ideia de coletivos políticos surgiu como uma resposta orgânica da parte da comunidade que não está tradicionalmente envolvida em política e que quer se ver representada.”
Os coletivos políticos apareceram pela primeira vez nas urnas do Brasil em 1994, quando as eleições ainda eram relativamente novas, após mais de duas décadas de ditadura militar. Durval Ângelo, candidato do Partido dos Trabalhadores a deputado estadual em Minas Gerais, foi pioneiro na ideia, ao convidar regularmente o público a participar da avaliação de seus planos e propostas e trabalhar com ele para decidir o que fazer a seguir. Ele serviu seis mandatos consecutivos.
Gradualmente, a ideia evoluiu para o compartilhamento de cargos. De 1994 a 2018, 94 candidatos de coletivos políticos participaram das eleições do país em 110 campanhas. Nas eleições municipais de 2020, 313 coletivos concorreram – e 22 venceram.
Entre eles estavam a Bancada Feminista e o Quilombo Periférico, grupo negro com representantes masculinos, femininos e LGBTQIA+ em São Paulo. Em Fortaleza, no Nordeste brasileiro, está o Nossa Cara, formada por três mulheres da periferia da cidade, e em Salvador, três mulheres negras fazem parte de um coletivo conhecido como “Pretas por Salvador”.
“Os coletivos políticos são uma forma criativa de construir a representação”, diz Débora Rezende de Almeida, cientista política da Universidade de Brasília – especialmente quando as tentativas oficiais falham.
O Brasil incorporou cotas de gênero na lei eleitoral federal há 20 anos. Em países como Ruanda, Nepal, Itália e Costa Rica, essas cotas têm sido eficazes para aumentar o número de mulheres que ocupam cargos. Mas não no Brasil, segundo especialistas. Em março de 2022, o Brasil ocupava o 145º lugar entre 192 países no ranking de mulheres da União Interparlamentar nos parlamentos nacionais.
Em 2021, quando grandes protestos eclodiram em São Paulo exigindo "uma vacina no braço e comida no prato", membros da Bancada Feminista se juntaram em nome de seus eleitores.
Henny Freitas dá entrevista na rádio local. A comunicação é parte fundamental da missão do Mandato Coletivo Permacultural.
O principal problema: os partidos políticos recrutam mulheres para concorrer a cargos para cumprir a cota, mas financiam suas campanhas com valores muito mais baixos do que a dos homens que concorrem aos mesmos cargos. Com pouco apoio financeiro, as chances de vitória das mulheres são pequenas.
Os resultados falam por si: com uma população de 212,6 milhões de pessoas, apenas 15% dos deputados federais do Brasil e 12,4% dos senadores do país são mulheres. Novecentas das 5.568 cidades do país não elegeram uma única mulher vereadoras em 2020. Em comparação, as mulheres nos Estados Unidos – com uma população de 329,5 milhões – detêm 27% dos assentos no Congresso. Isso representa um aumento de 50% em relação a uma década atrás, de acordo com uma análise do Centro de Pesquisa Pew.
No Brasil, as mulheres alcançam uma representação muito maior nos coletivos políticos, de acordo com um estudo das eleições municipais de 2020 em coautoria de Almeida. As mulheres brancas representam 36% dos membros eleitos dos coletivos políticos, em comparação com menos de 10% de todos os vereadores eleitos. Para as mulheres negras, a diferença é ainda mais gritante: 27% de representação contra apenas um por cento.
Algumas complicações
Normalmente, Nunes ia sozinha ao Buracanã, mas, nesta visita, ela é acompanhada por outras duas integrantes da Bancada Feminista: Silvia Ferraro, professora de história e porta-voz eleita do grupo, e Natália Chaves, ativista dos movimentos negro e ambientalista. (As outras duas integrantes são Carolina Iara, com foco em saúde e comunidades LGBTQIA+ e negras; e Dafne Sena, advogada com foco em direitos trabalhistas e ativismo ambiental.)
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Quando as três mulheres chegam à cozinha compartilhada da comunidade para almoçar, Ferraro conversa com Fabiana Batista da Silva, uma moradora que está preocupada com o fato de um de seus filhos não ter recebido o tablet de que precisava para o aprendizado remoto durante a pandemia. Como professora de escola pública, Ferraro sabe como navegar no sistema de ensino e conseguir os recursos de que o menino precisa.
Silva diz que só soube da Bancada Feminista depois da eleição, mas, como mãe solteira chefe de uma casa com sete filhos, gostaria de ter votado nelas.
“É a primeira vez que me sinto apoiada”, diz ela. “Elas têm empatia, são humanos. Elas fazem você se sentir importante. Isso é tudo o que sempre quisemos aqui.”
Para os especialistas que observam a ascensão dos coletivos políticos no Brasil, é essa capacidade de se conectar com os eleitores, especialmente aqueles que são frequentemente esquecidos ou marginalizados, que garante o sucesso.
“Há algum tempo, os partidos políticos têm pouca ligação com a população”, diz Soraia Marcelino Vieira, cientista política da Universidade Federal Fluminense. “Os cidadãos geralmente estão descontentes, desanimados, não acreditam no sistema político, especialmente quando se trata de partidos políticos."
“Com esses coletivos políticos, há um novo sentido de mobilização. As pessoas sentem que têm uma chance, como se finalmente tivessem opções na política além dos candidatos individuais comuns.”
Mas esses coletivos vêm com algumas complicações potencialmente incapacitantes. Eles não são legalmente reconhecidos nem regulamentados (um projeto de lei para corrigir esse problema está suspenso desde 2017). Se o porta-voz decidir renunciar, todo o coletivo perde o lugar no governo, o que aconteceu com um grupo na cidade de Belo Horizonte apenas três meses após ser eleito em 2020.
E se o porta-voz ou o resto do grupo decidir expulsar um membro – como aconteceu com um coletivo paulista de deputados estaduais – essa pessoa não tem recurso, assim como quem votou em todo o grupo corre o risco de ficar sem representação.
As integrantes da Bancada Feminista dizem que divergências e conflitos internos não foram um problema para elas, porque o coletivo não foi formado no partido, o Partido da Liberdade e Socialismo, de esquerda, mas se conhecem há anos. Elas nem sempre concordam, dizem, mas sabem como chegar a uma decisão que melhor represente todas elas e, mais importante, seus eleitores.
No mínimo, a adesão coletiva pode ser fluida. Quando um dos integrantes do Mandato Coletivo Permacultural decidiu se afastar para assumir um cargo na prefeitura, os outros três abriram a quarta vaga para o público, entrevistando interessados e revezando a vaga entre eles a cada três meses. Quando o membro original retornou, eles se adaptaram novamente, abrindo uma quinta cadeira, que gira entre as pessoas que têm um interesse especial ou especialização na área de foco do coletivo durante o trimestre.
A Bancada Feminista também teve que ser flexível. Nunes e Iara saíram recentemente para se juntar a outras duas mulheres negras para concorrer como a versão estadual do coletivo nas eleições de outubro deste ano. Como também a porta-voz do coletivo municipal não foi, ela manteve o assento na câmara municipal.
No entanto, o coletivo manteve a missão de servir aos menos favorecidos. Recentemente, um projeto de lei da Bancada Feminista para criar um programa municipal de combate à violência obstétrica – maus-tratos a pessoas em trabalho de parto ou durante o nascimento do bebê – foi aprovado em primeira votação. À medida que avança para a segunda, o coletivo está criando um dossiê para apresentar à Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, que incluirá histórias de constituintes que foram vítimas de violência obstétrica na cidade.
Após o almoço na cozinha compartilhada do Buracanã, algumas das mulheres ficam reunidas ao redor para ouvir as co-conselheiras falarem. Ferraro conta sobre a importância das mulheres em comunidades como a sua, onde as mulheres compõem a maioria dos moradores e são as que organizam a vida comunitária.
Chaves retoma a discussão, comparando a natureza coletiva do que a Bancada Feminista faz com o funcionamento do Buracanã, com os moradores cuidando dos filhos uns dos outros, garantindo que haja comida suficiente para todos e ajudando os recém-chegados a construir casas com sucata de madeira e lonas plásticas.
“Nós não somos super-heróis,” ela diz. “Mas sabemos que podemos fazer as coisas se trabalharmos juntos.”
Jill Langlois é uma jornalista independente baseada em São Paulo, Brasil. O seu trabalho centra-se nos direitos humanos, no ambiente e no impacto das questões socioeconômicas na vida das pessoas.
Gabriela Portilho é uma fotógrafa documental e jornalista brasileira, atualmente radicada entre São Paulo e Rio de Janeiro. Veja mais de seu trabalho em seu site ou seguindo-a no Instagram.