Catedral de Notre Dame: os tesouros surpreendentes que foram encontrados depois do incêndio em Paris
Após o incêndio da catedral de Paris, os arqueólogos receberam uma permissão sem precedentes para escavar sob a histórica igreja. O que eles encontraram foi impressionante.
Após o incêndio da igreja em abril de 2019, os arqueólogos receberam permissão para escavar sob a catedral danificada. Muitos dos artefatos recuperados, que haviam sido perdidos por séculos, estão agora em exibição no Musée de Cluny. A exposição “Making Stones Speak. Notre Dame's Medieval Sculptures” fica em cartaz até 16 de março de 2025.
Em fevereiro de 2022, a reconstrução da catedral de Notre Dame, em Paris (na França), estava pronta para começar. Após o incêndio de abril de 2019, foram necessários quase três anos para remover os escombros e reforçar as paredes de pedra e as abóbadas do teto danificadas. Para que a Notre Dame fosse reaberta no dia 7 de dezembro de 2024, conforme decretado pelo presidente francês Emmanuel Macron, era urgente começar a reconstruir o que havia sido perdido – começando pela emblemática torre de madeira que se ergue acima do centro da igreja.
Mas, primeiro, era preciso chamar os arqueólogos. De acordo com a lei francesa, qualquer projeto de construção que perturbe o solo onde possam ser encontrados artefatos ou restos mortais antigos exige a intervenção de arqueólogos do governo. Na Notre Dame, o trabalho deles era garantir que nada de valor fosse esmagado pelos andaimes de 770 toneladas necessários para reconstruir a torre.
Christophe Besnier e sua equipe do National Institute for Preventive Archaeological Research receberam inicialmente não mais do que cinco semanas para cavar sob o piso de pedra no cruzamento, onde o transepto (os braços curtos da igreja cruciforme) encontra a nave e o coro.
Artefatos históricos são comuns na Notre Dame quando se cava fundo o suficiente; o local foi ocupado por mais de um milênio antes da construção da catedral nos séculos 12 e 13. Mas como a equipe de Besnier só foi autorizada a cavar cerca de 40 cm abaixo do piso – a profundidade da fundação do andaime – ele não esperava encontrar muita coisa. Felizmente, ele estava errado.
“Os restos mortais acabaram sendo muito mais ricos do que o esperado”, diz ele. No total, sua equipe encontrou 1.035 fragmentos de várias obras de arte. “É muito impressionante.”
Os arqueólogos desenterraram obras de arte magníficas que originalmente ficavam no centro da catedral – o que o crítico francês Didier Rykner chamou de “algumas das obras de escultura mais excepcionais de qualquer período do mundo”. Recentemente, cerca de 30 dessas esculturas, que haviam sido perdidas por séculos, foram exibidas no Musée de Cluny.
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Uma peça de decoração esculpida encontrada durante as escavações.
Uma parte de uma escultura de Jesus - um dos mais de mil fragmentos de arte que não são vistos há centenas de anos e reencontrados. Muitos dos artefatos recuperados estão em exibição no Musée de Cluny. A exposição “Making Stones Speak. Notre Dame's Medieval Sculptures” fica em cartaz até 16 de março de 2025.
Acredita-se que, originalmente, todas as esculturas de Notre Dame eram pintadas com cores vivas. Aqui, alguns resquícios de pigmento vermelho sobrevivem em uma escultura recuperada.
Assim que a equipe de Besnier removeu os ladrilhos do piso da Notre Dame, e uma fina camada de sujeira e entulho, apareceu o topo de um caixão de chumbo. Perto dali, começaram a surgir esculturas de calcário: cabeças e torsos em tamanho natural alinhados sob o piso ao longo da entrada do coro.
Besnier então obteve permissão para cavar mais fundo para poder extrair os artefatos. Enquanto a equipe de construção esperava, a escavação de cinco semanas se estendeu por mais de dois meses. Outro caixão de chumbo foi encontrado, assim como alguns enterros menos luxuosos – o que não é muito surpreendente, pois há túmulos por toda a catedral.
As estátuas acabaram sendo a descoberta mais significativa. Os arqueólogos determinaram que elas são remanescentes do “biombo” de calcário do século 13 que originalmente fechava o coro e o santuário de Notre Dame da vista do público.
Desmontado no início do século 18, o biombo de 3 metros de altura havia praticamente desaparecido. Havia apenas alguns fragmentos e nenhuma representação completa dele, nem qualquer registro de seu destino. Agora, ao ser encontrado, ela é um lembrete vívido de como era diferente a experiência de visitar Notre Dame na Idade Média, quando a catedral foi construída.
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Uma obra-prima perdida que foi redescoberta
O biombo de calcário era uma obra-prima da escultura gótica pintada. Entre as figuras em tamanho real que a equipe de Besnier escavou estavam a cabeça e o tronco de um Cristo sem vida – olhos fechados, sangue vermelho escorrendo do ferimento de lança em seu lado. “A escultura é realmente excepcional em sua delicadeza, sua atenção aos detalhes”, afirma Besnier. “A renderização das pálpebras, das orelhas, do nariz é incrível.”
Hoje, quando as pessoas entram pelo portão central da Notre Dame, elas podem ver o altar moderno e o coro ao fundo. Mas no século 18, quando a Notre Dame foi concluída, essa visão foi interrompida pelo biombo, que era encimado por um crucifixo gigante.
O biombo do século 13 foi destruído no início do século 18. Partes dele foram enterradas sob a catedral.
Detalhe de uma mão que foi esculpida no biombo de calcário. Embora o biombo tenha sido removido, ele era considerado sagrado e, portanto, não podia sair da igreja.
O biombo da Notre Dame tinha duas finalidades, conta o historiador de arquitetura Mathieu Lours. A primeira era dar aos padres uma plataforma para ler as escrituras para o público que se reunia na nave. Escadarias levavam a púlpitos no topo da tela, de onde os padres podiam pregar para as massas. A segunda era a privacidade: a tela permitia que os padres se isolassem no coro durante os oito serviços de oração diários, mantendo-os fora da vista do público.
As esculturas na tela contavam a história central do cristianismo. “Sabemos por descrições antigas que havia cenas da Paixão de Cristo”, diz o historiador Dany Sandron. Desde a Última Ceia, passando pela crucificação até a ressurreição, toda a história estava lá.
Na missa católica, essa mesma história é reencenada durante o sacramento da Eucaristia, quando se acredita que o pão e o vinho se tornam o corpo e o sangue de Cristo. Mas durante a Idade Média, os fiéis da Notre Dame não podiam ver o padre por trás da tela de madeira realizando o sacramento. Tampouco podiam ouvir as palavras que ele murmurava no distante altar principal, que ficava na extremidade do coro.
Naquela época, o silêncio não teria sido frustrante para os congregantes. “É o momento em que não se vê nada e não se ouve nada que é o momento mais importante”, explica Lours. “É o momento mais misterioso, quando as pessoas ouvem mais.... Elas sabem que algo absolutamente incrível está acontecendo. Um milagre está acontecendo.”
Para ter certeza, naquela época havia centenas de missas celebradas todos os dias nos muitos altares secundários de Notre Dame. Não havia telas de madeira na frente deles. Se as pessoas quisessem se aproximar do milagre, elas podiam.
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Por que o biombo foi retirado da Notre Dame?
O biombo permaneceu de pé por quase cinco séculos. Com o tempo, as práticas litúrgicas mudaram e a moda artística também; o estilo gótico passou a ser desprezado. O clero de Notre Dame era tradicionalista e manteve o biombo por mais tempo do que a maioria das igrejas francesas.
Mas, sob pressão do rei Luís 14, que queria um coro mais aberto – que incluísse grandes estátuas dele próprio e de seu pai, Luís 13 –, o biombo original foi finalmente desmontado na década de 1710 e, como sabemos agora, enterrado ao lado de onde estava. Embora as esculturas tenham sido desmontadas e quebradas, elas ainda eram consideradas sagradas e, portanto, não podiam sair da igreja.
Os pesquisadores descobriram cerca de mil fragmentos da tela, de todos os tamanhos, dos quais cerca de 700 ainda apresentavam vestígios de tinta. Originalmente, acredita-se que todas as esculturas de Notre Dame, inclusive as da fachada frontal, eram pintadas com cores vivas, antes que isso também saísse de moda. Assim, as cores preservadas nas esculturas da tela do telhado oferecem pistas sobre a aparência original de toda a catedral.
Besnier não sabe ao certo quanto do biombo sua equipe escavou, mas acredita que muito mais está enterrado sob o coro, fora do escopo da escavação. “Seria imperdoável deixar tais esplendores no chão da catedral. As escavações devem continuar”, escreveu Rykner. Mas com o coro recém-restaurado e a Notre Dame prestes a reabrir, não é provável que isso aconteça tão cedo. “Não está na agenda”, comenta Besnier.
Se não fosse pelo incêndio, diz Besnier, sua equipe nunca teria tido a chance de descobrir nem mesmo essa parte parcial do biombo histórico. E, no final, as escavações arqueológicas não atrasaram o progresso da restauração. A nova torre foi construída dentro do prazo. A catedral será reaberta em 7 de dezembro.