Desmatamento na Amazônia dispara e futuro da floresta está ameaçado. Entenda os motivos

Ações ilegais de grileiros, madeireiros e garimpeiros cresceram em áreas protegidas enquanto a revisão do Código Florestal era discutida em Brasília.

Por Kevin Damasio
Publicado 14 de jun. de 2019, 11:44 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
floresta amazonia
Fumaça de vegetação queimada encobre árvores da Amazônia em Mato Grosso. Enquanto deputados discutiam o relaxamento da legislação ambiental em Brasília, o desmatamento da floresta disparou no mês de maio.
Foto de George Steinmetz

Nota do editor: a reportagem foi atualizada com dados de desmatamento do mês de julho de 2019 e com informações sobre o aumento de queimadas no Brasil.

A escola e o posto de saúde da aldeia Pankararu, em Pernambuco, foram incendiados em novembro e dezembro de 2018. Nos primeiros dias de 2019, madeireiros ocuparam a terra indígena Arara (TI), no sudoeste do Pará. Na madrugada de 11 de janeiro, a aldeia Mbyá-Guarani foi atacada a tiros por homens que deram um prazo de cinco dias para os índios deixarem sua aldeia em Ponte do Arado, Porto Alegre (RS), caso contrário seriam mortos. De janeiro a abril, cerca de mil grileiros invadiram a TI Uru-Eu-Wau-Wau, em Rondônia. A Fundação Nacional do Índio (Funai) anunciou a reabertura de três bases na TI dos yanomami, yek’wana e povos isolados, após pedido das lideranças diante da ameaça de centenas de garimpeiros que se apossaram ilegalmente de porções da TI em Roraima e no Amazonas. Sob a mesma ameaça encontra-se o povo awá-guajá, no norte do Maranhão.

“Esses ataques têm aumentado em todos os sentidos: na mineração, na exploração ilegal de madeira, na ocupação da terra por grileiros”, observa Sonia Guajajara, coordenadora-executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). “É um momento bem perigoso, porque a política ambiental e indigenista como um todo está sendo duramente destruída.”

Sonia vive na TI Arariboia, um dos últimos refúgios da Amazônia no Maranhão. Lá, os povos da região também estão em constante ameaça de madeireiros ilegais e de queimadas. Em agosto de 2018, o cacique Jorginho Guajajara foi assassinado. Para Sonia, os órgãos de fiscalização agem pontualmente e inibem a ação dos invasores apenas durante as operações. “Quando as equipes saem, todo mundo volta e aumenta ainda mais o conflito, porque eles ficam muito raivosos, querendo culpar os indígenas.”

A escalada de invasões e violência nas TIs se dá em um contexto de alta do desmatamento em áreas protegidas da Amazônia Legal, conforme dados do Sistema de Detecção do Desmatamento em Tempo Real, divulgados em 10 de junho. Esse sistema do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) registrou 739,68 km2 desmatados na Amazônia Legal em maio – maior taxa desde 2016 e área equivalente à cidade de Goiânia. Outros 1.102,57 km2 foram degradados. No mesmo mês em 2018, 550,2 km2 haviam sido derrubados.

Em junho, a floresta teve 920,4 km² de área desmatada na Amazônia Legal, até então o pior mês desde que o sistema foi criado, em 2015. A taxa é 88% maior do que o mesmo período de 2018. Em julho, outro recorde: 2.254,9 km², mais que o dobro do mês anterior e 278% maior que em julho de 2018. 

Em 19 de agosto, uma frente fria vinda da região sul encobriu a cidade de São Paulo e escureceu a capital – a noite pareceu ter chegado antes das 16h na maior cidade do Brasil. O fenômeno chamou a atenção de alguns cientistas que, usando imagens de satélite, mostraram que queimadas na região da Amazônia podem ter contribuído com a escuridão. Números do Inpe indicam que os focos de incêndios florestais no Brasil aumentaram 83% neste ano quando se compara os períodos entre janeiro e agosto de 2018 e 2019. Uma análise técnica do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia revelou que o aumento das queimadas está ligado ao crescimento do desmatamento na região e que, sozinho, o período de estiagem não justifica o aumento das áreas incendiadas.

[Veja também: Patrimônios Mundiais, áreas da Amazônia, Cerrado e Pantanal clamam por preservação]

amazonia-desmatamento
Produtores rurais desmatam pedaço da floresta para cultivo de milho e soja no Mato Grosso. Violência contra indígenas veio acompanhada de uma disparada no desmatamento da Amazônia.
Foto de George Steinmetz

Em julho, o maior volume de desmatamento se concentra no Pará (892,45 km2), seguido pelo Mato Grosso (426,92 km2), Amazonas (423,88 km2) e Rondônia (384,18 km2). Só na Floresta Nacional (Flona) do Jamanxim, no sudeste paraense, 30 km2 foram cortados nos primeiros 15 dias de maio. Um projeto de lei que tramita no Congresso há dois anos propõe a transformação desta Flona em área de proteção ambiental, o que permitiria atividades econômicas como agropecuária, indústria e o estabelecimento de núcleos populares urbanos e rurais. Isso motivou a ação de grileiros que investem ilegalmente na especulação fundiária.

Já o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) detectou um aumento de 20% no desmatamento do bioma de agosto de 2018 a abril de 2019, em comparação ao período anterior. Conforme o instituto, foram derrubados 2.169 km2 de floresta.

“Entramos em um governo com fortes indicações de flexibilização do Código Florestal, promessas de redução de áreas protegidas e dos esforços de fiscalização. São sinalizações que estimulam o desmatamento”, observa Carlos Souza Junior, geólogo e pesquisador do Imazon. “O pulso geral do desmatamento depende muito do investimento em comando e controle. O desmonte da política ambiental já vem dos dois governos anteriores e agora há essa continuidade no atual.”

Diminuição da fiscalização

De 1º de janeiro a 15 de maio, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) aplicou 850 multas – 35% a menos do que o mesmo período em 2018. Já o Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio) efetuou 317 autuações, menos da metade do que o intervalo do ano passado. Em abril, o ICMBio não realizou nenhuma operação de fiscalização.

No final de maio, o Tribunal de Contas da União (TCU) abriu um processo para apurar se a política ambiental do governo tem prejudicado as ações de combate ao desmatamento e fiscalização dos órgãos ambientais. A investigação foi solicitada pelo sub-procurador do Ministério Público, Lucas Furtado.

A expansão da agropecuária e a grilagem são as principais responsáveis pelas derrubadas, continua Souza. O reforço das operações de fiscalização e controle contribuiu para a redução do desmatamento de 27.772 km2 em 2004 para 4.571 km2 em 2012, segundo dados do Inpe. Nesse período, o Brasil estabeleceu como meta o desmatamento limite de 3.900 km2, criou áreas de proteção no entorno das regiões mais ameaçadas, implementou políticas públicas e estabeleceu obstáculos de crédito e comércio para produtores de municípios com elevados índices de derrubadas. Entretanto, o desmatamento voltou a crescer em 2013 e atingiu ao menos 7.900 km2 de destruição da Amazônia Legal em 2018.

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    “Esses dados recentes do Inpe mostram exatamente o ‘Velho Oeste’, com um aumento significativo de invasões a áreas protegidas e reservas indígenas”, diz Carlos Nobre. Para o climatologista, é preciso aguardar o balanço final do Inpe para compreender a real dimensão das derrubadas, mas os números preliminares já preocupam bastante. “É muito provável que o desmatamento seja o maior desde 2005 (19.014 km2), o que seria péssimo para a imagem do Brasil e para qualquer possibilidade de um futuro sustentável para o país.”

    Nobre pesquisa sobre a Amazônia há mais de quatro décadas, é pesquisador do Instituto de Estudos Aplicados da Universidade de São Paulo e foi co-autor do relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) de 2007. Em fevereiro de 2018, publicou um artigo na Science Advances sobre a possibilidade de savanização do bioma. O ponto de inflexão aconteceria se o desmatamento ultrapassar os 20% da área. Reverter seus efeitos seria praticamente impossível.

    “Temos que ter atenção total, manter sistemas de monitoramento de florestas, das espécies, das chuvas”, analisa Nobre. “A estação seca está mais longa na Amazônia. E um artigo científico publicado no ano passado mostrou que algumas espécies de climas mais úmidos estão perdendo a competição para as de climas mais secos. São sinais iniciais, mas consistentes.”

    O Código Florestal

    Em 25 de maio de 2012 entrava em vigor o novo Código Florestal, após cinco anos de negociações entre ambientalistas e ruralistas. A Lei nº 12.651 engloba dois instrumentos principais. O primeiro é o Cadastro Ambiental Rural (CAR), no qual todo proprietário rural deve se inscrever. Se for verificado que a propriedade precisa de alguma adequação ambiental, o proprietário precisa aderir ao segundo instrumento: o Programa de Regularização Ambiental (PRA).

    Em troca da adesão ao programa de compensação do meio ambiente, produtores rurais que desmataram ilegalmente até 22 de julho de 2008 teriam multas e sanções perdoadas. Segundo o Observatório do Código Florestal, o acordo representou anistias a "41 milhões de hectares de vegetação nativa que deveriam ser restaurados anteriormente” – uma área maior que o estado do Mato Grosso do Sul.

    Em 26 de dezembro de 2018, o então presidente Michel Temer encaminhou ao Congresso Nacional a Medida Provisória (MP) 867. A proposta estendia para 31 de dezembro de 2019 o prazo para proprietários rurais aderirem ao programa de recuperação ambiental e permitia que o chefe do Poder Executivo prorrogasse o prazo por mais um ano. Neste ano, ao passar pela Comissão Mista, a MP ainda ganhou 35 emendas – muitas delas “jabutis”, como são conhecidas as mudanças que não possuem relação direta com o texto original.

    Para Maurício Guetta, advogado do Instituto Socioambiental, tanto o texto original como as demais alterações propostas sinalizam aos ruralistas que o Código Florestal não precisa ser cumprido, uma vez que os prazos de adesão são adiados sucessivamente. Guetta participou das audiências públicas e acompanhou a votação no plenário da Câmara. Entre as emendas do relatório do deputado Sérgio Souza (MDB-PR), estavam novas anistias a multas e a produtores rurais com passivos ambientais não cadastrados no PRA dentro do prazo; uma alteração no artigo 68 que dispensaria a recomposição de áreas ilegalmente desmatadas equivalentes a dois estados de Sergipe; e uma mudança no processo de adesão ao PRA. “Pela lei atual, o proprietário se cadastra no CAR, declara o que tem de passivo e, depois, vai ao órgão responsável requerer sua regularização a partir do PRA”, explica Guetta. “Pelas alterações propostas, essa lógica seria invertida. Os órgãos ambientais, hoje sucateados, teriam que notificar cada um dos produtores rurais do Brasil, para que comparecessem e se regularizassem. Seria inviável e culminaria no descumprimento do Código.”

    Dos 5,6 milhões de produtores cadastrados no CAR, apenas 4% não atendem aos parâmetros da legislação e seriam beneficiados pelas alterações, de acordo com o Observatório do Código Florestal.

    A nova MP foi aprovada na Câmara dos Deputados, mas, ao chegar no Senado, o presidente da casa, Davi Alcolumbre (DEM-AP), optou por não colocá-la em pauta. A medida, que deveria ser votada até 3 de junho, acabou perdendo a validade. O governo Bolsonaro, no entanto, já anunciou que editará outra MP com o mesmo texto, incluindo as emendas.

    Fim da Reserva Legal

    Atualmente, tramita no Senado o Projeto de Lei nº 2.362, que visa extinguir o capítulo do Código Florestal que prevê a reserva legal dentro das propriedades rurais. O PL é de autoria de Flavio Bolsonaro (PSL-RJ) e Marcio Bittar (MDB-AC). A legislação vigente determina que sejam preservadas 80% da vegetação nas propriedades em área de florestas na Amazônia Legal, 35% no Cerrado e 20% em Campos Gerais e no restante do país. A extinção das reservas legais tiraria a proteção de 156,7 milhões de hectares de florestas – uma área quase dez vezes o tamanho do Uruguai. A proposta teve parecer favorável na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado e pode entrar em pauta na próxima semana.

    Na Câmara dos Deputados em 23 de maio, a ministra da Agricultura e ex-líder da bancada ruralista no Congresso, Tereza Cristina, declarou-se a favor da manutenção do Código Florestal, por ser “importantíssimo para que a gente acesse mercados internamente, externamente e participe de todos esses acordos no mundo”. Uma nota assinada por 116 pesquisadores da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) também se coloca contra as modificações na legislação por entender a importância do Código para a agricultura.

    “As reservas legais têm o papel de manter a biodiversidade e reduzir a fragmentação da paisagem, ajuda na contenção de erosão e na questão do ciclo hidrológico. Há uma mudança drástica no microclima local quando se remove muita floresta”, explica Carlos Souza Jr., do Imazon. “Nelas também são permitidas algumas atividades, como o manejo florestal sustentável.”

    As porções protegidas em propriedades rurais possuem um papel complementar na preservação das florestas. Já unidades de conservação, terras indígenas e outras reservas da União são fundamentais para frear o desmatamento, observa Souza Jr. No Brasil, 662 mil km2 (7,7%) são de proteção integral e 1,8 milhão de km2 (22,14%) são destinados ao uso sustentável. Já as terras indígenas abrangem 1,17 milhão de km2, ou 13,8% do Brasil.

    Um estudo do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) identificou que a redução da floresta nas TIs foi menor que 2% entre 2000 e 2014. Neste mesmo período, o desmatamento médio da Floresta Amazônica foi de 19% da área. O Ipam constatou que “essa baixa taxa está relacionada aos modos tradicionais de ocupação territorial dos povos indígenas, sua forma de uso dos recursos naturais, costumes e tradições que, na maior parte dos casos, resultam na preservação das florestas e da biodiversidade nelas contidas”. 

    A manutenção das TIs encontrava-se ameaçada desde a reestruturação do governo em 1º de janeiro, acredita Sonia Guajajara. Bolsonaro, que em sua campanha prometeu não demarcar mais um centímetro de terra, transferiu a Funai para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. Já o Ministério da Agricultura ficou encarregado da identificação, demarcação e revogação de terras indígenas. Mas em 29 de maio, com a aprovação da MP 860 no Senado, a Funai e as demarcações voltaram para o Ministério da Justiça. Até agora, essa foi a maior conquista da Frente Parlamentar em Defesa dos Povos Indígenas, liderada pela deputada federal Joênia Wapichana (Rede-RR).

    “A relação que a gente tem com o meio ambiente é de respeito, de harmonia, de entender que é exatamente a natureza que garante a vida no planeta, o ar”, afirma Sonia Guajajara. “Há muito tempo a causa indígena deixou de ser uma questão isolada, só nossa. Comprovadamente os territórios indígenas são os mais preservados e, consequentemente, os que mais contribuem para o equilíbrio do clima, a regulação das chuvas e evitam que o Brasil seja um deserto de monocultura.”

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