Peixes-símbolos da Amazônia em risco por causa das queimadas

Os incêndios na floresta são uma ameaça para as espécies que dependem da época de cheias para sobreviver.

Por Stefan Lovgren
Publicado 17 de set. de 2019, 15:48 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
A Floresta Amazônica continua queimando, e especialistas temem que isso possa se espalhar e destruir o ...
A Floresta Amazônica continua queimando, e especialistas temem que isso possa se espalhar e destruir o habitat das florestas inundadas onde centenas de espécies de peixes vivem.
Foto de Carl de Souza, AFP/Getty Images

MANAUS (AM) — Este ano, os graves incêndios na Amazônia  não apenas atraíram a atenção internacional, como também iluminaram os efeitos do crescente desmatamento na região, desde a evaporação das chuvas até as emissões de dióxido de carbono. Entretanto, um efeito crucial da perda florestal na floresta tem sido amplamente ignorado: como isso influencia o sistema do rio e os peixes que vivem nele.

Existem poucos lugares no mundo onde a vida aquática e a vida arbórea são tão próximas como são na Amazônia. Enquanto a floresta tropical é lar do maior rio do mundo (por volume de água) e 1,7 mil afluentes, cerca de um sexto da bacia também é composta por pântanos cobertos pela floresta que ficam inundados anualmente por períodos longos e dão suporte ao peixe mais importante comercialmente da região.

“Esse pulso das cheias é a força impulsionadora que governa todas as funções ecológicas e as interações ao longo da bacia do rio, e cria florestas inundadas que são cruciais para a sobrevivência e reprodução de centenas de espécies de peixes na Amazônia”, diz Jansen Zuanon, biólogo do Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia (Inpa), em Manaus.

Embora ainda intactas em grande parte da Amazônia, as florestas aluviais têm sido fortemente danificadas nas décadas recentes em algumas partes da bacia, especialmente nas planícies do leste do Brasil. Agora, a ameaça à sobrevivência delas — e dos peixes que dependem delas — pode estar ficando mais intensa por causa do crescente desmatamento e dos incêndios, dizem os pesquisadores, alertando que a maior degradação das florestas de pântano poderia fundamentalmente alterar o ecossistema aquático da Amazônia.

“Se você não proteger essas áreas, os rios não serão os mesmos e nós perderemos os peixes”, diz Leandro Castello, um ecologista tropical no Global Change Center de Virginia Tech, que estudou as ligações entre a floresta e os peixes da Amazônia.

Buscando abrigo

A bacia do rio Amazonas, a qual 60% está no Brasil, é o lugar mais biodiverso do mundo, não só na terra, mas também na água. Existem mais de 3 mil espécies de peixes no Amazonas, além de centenas ainda a serem descobertas. A biodiversidade é atribuída, em grande parte, às cheias que acontecem aproximadamente entre dezembro e abril. Durante esse tempo, os níveis da água aumentam em até 15 metros, com água transbordando dos rios para criar novas extensões de água nas áreas florestais.

Apesar de sua importância para o equilíbrio da floresta tropical, a planície aluvial do Amazonas é relativamente pouco estudada, embora a conexão entre a floresta e peixes tenha sido estabelecida há muito tempo. Centenas de espécies de peixes usam as florestas aluviais para se alimentarem de frutas e sementes que flutuam na superfície da água. Muitos peixes também se movem em áreas inundadas para buscar abrigo dos predadores, emergindo do esconderijo assim que eles ficam maiores.

O tambaqui pode chegar a 31 quilos. Nativo dos rios brasileiros da Amazônia, seus dentes específicos ...
O tambaqui pode chegar a 31 quilos. Nativo dos rios brasileiros da Amazônia, seus dentes específicos podem esmagar e triturar frutas duras e castanhas. O peixe comercialmente valorizado é uma das espécies ameaçadas pela destruição do habitat pelos incêndios na Amazônia.
Foto de Kike Calvo, Alamy Stock Photo

Enquanto alguns estudos documentaram uma relação entre o desmatamento e peixes em pequenos riachos do Amazonas, poucos trabalhos foram feitos para avaliar a conexão entre o desmatamento e peixes em grandes rios. Por um estudo, publicado em 2017, Castello e outros compararam 12 anos de dados de pescaria com imagens de satélite de cobertura florestal em uma ampla área do rio Amazonas, e estabeleceram uma forte correlação entre a perda florestal e menos peixes.

“Nós descobrimos que áreas desmatadas resultavam em pesqueiros locais produzindo bem menos do que aquelas com rodeadas por áreas florestais maiores”, diz Castello.

Conexões significativas entre cobertura florestal e abundância de peixes foram descobertas entre muitos dos peixes mais populares da Amazônia, incluindo o altamente valorizado tambaqui, que pode crescer até 31 quilos e tem dentes específicos que podem esmagar e triturar frutas duras e nozes. Fortes conexões também foram encontradas para espécies carnívoras, tais como a dourada e o surubim, que se alimentam de cardumes de peixes que vivem em florestas inundadas.

Em troca, essas florestas, que se adaptaram para sobreviver debaixo d’água por muitos meses, também se beneficiam com os peixes espalhando sementes por todo o sistema.

“O resultado é uma troca de recursos mutuamente benéfica que impulsiona a produtividade e alta biodiversidade da floresta aluvial”, diz Marcia Macedo, ecologista do Woods Hole Research Center que também trabalha na Amazônia. “Sem a interação da terra com a água, esses ecossistemas fortemente conectados começam a se desfazer.”

Altamente inflamável

O Código Florestal Brasileiro fornece proteção para a vegetação ribeirinha, mas só até 500 metros da margem do rio em época de seca. Isso, conservacionistas apontam, está longe de ser o suficiente, já que áreas inundadas podem expandir mais de 20 quilômetros da margem do rio na época úmida.

A extensão da perda florestal na floresta aluvial na Amazônia é difícil de determinar, mas é maior em partes mais povoadas no leste do Brasil. Um estudo publicado este ano no jornal Ecological Indicators analisou o desmatamento em diversas áreas ao longo da principal planície aluvial do rio Amazonas desde 1970. Enquanto um local remoto no oeste do Brasil tinha perdido quase nada de sua cobertura florestal, uma área mais povoada no leste tinha sido desmatada em 70 por cento, o estudo mostrou.

A questão do desmatamento amazônico se tornou altamente política no Brasil. Depois que o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) publicou dados preliminares mostrando que o desmatamento geral da porção da floresta tropical do Brasil aumentou 88 por cento em junho deste ano em comparação com o mesmo mês do ano anterior, o diretor do Inpe foi demitido pelo presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, que afirmou que os dados estavam incorretos. Entretanto, as estatísticas do Inpe mostram claramente uma tendência preocupante de taxas de desmatamento progressivas, que começaram a cair por volta de 2005 antes de voltar a aumentar há alguns anos.

Embora a estiagem tenha sido a condutora de incêndios florestais na Amazônia no passado, especialistas dizem que o desmatamento é a causa principal do número estranhamente alto de incêndios — mais de 90.000 até agora — que estão queimando a Amazônia brasileira este ano, conforme fazendeiros e agricultores usam incêndios para limpar a floresta que já foi cortada para dar espaço para pastagem e agricultura.

“Esses incêndios escapam frequentemente para florestas adjacentes”, especialmente se ela foi derrubada, “queimando o sub-bosque e dando início ao processo de degradação da floresta”, diz Laura Hess na Universidade da Califórnia em Santa Barbara, que conduziu vários estudos de sensoriamento remoto na Amazônia.

Enquanto planícies aluviais são um alvo menor para fazendeiros e agricultores do que uma floresta de terra alta, a vegetação lenhosa encontrada pode ser mais vulnerável ao fogo na estação seca, porque é menor e mais aberta, e ocorre em áreas menores.   Florestas de planícies aluviais em solos arenosos, tais como ao longo da água escura do Rio Negro, são particularmente vulneráveis porque o solo não retém muita água.

"A maioria das pesquisas e dos modelos de incêndio tem como foco a região na floresta de terra alta. Florestas aluviais são negligenciadas. Há uma lacuna enorme no nosso entendimento sobre o impacto de incêndios nas florestas aluviais”, diz Paulo Brando, um ecologista tropical na Universidade da Califórnia em Irvine.

Para piorar as coisas, tais florestas geralmente não são capazes de se recuperar depois que foram removidas. “Um único incêndio na planície aluvial pode causar quase 100% de mortalidade na floresta e, frequentemente, essa vegetação não voltará a nascer rapidamente”, diz Brando.

Quanto da floresta inundada foi perdida neste ano, se foi perdida, ainda é impossível julgar, diz Brando, mas ele acrescenta que o auge da época de seca ainda não alcançou as partes nortes da Amazônia.

A longo prazo, avisam os cientistas, as secas podem se tornar mais severas e mais frequentes com as mudanças climáticas e o desmatamento, dificultando a prevenção da conversão generalizada das florestas de planícies aluviais em vegetações dominadas pelo fogo na Amazônia.

Esse cenário teria um efeito devastador na maioria das populações de peixes no sistema do Rio Amazonas. “Os incêndios e o desmatamento na Amazônia acrescentam outra ameaça a um sistema fluvial que já está sob grande pressão com a construção de novas barragens, mineração e outras atividades”, diz Zeb Hogan, biólogo na Universidade de Nevada, em Reno, e explorador da National Geographic.

Rio Machado

No final do último mês, Hogan se juntou a uma equipe de pesquisadores brasileiros em uma jornada pelo Rio Madeira, o maior afluente do Rio Amazonas. Saindo de Porto Velho, a capital do estado de Rondônia, no oeste do Brasil, eles viajaram para o Rio Machado, que une o Madeira perto da cidade de Humaitá, e onde o governo brasileiro acabou de anunciar que teria planos para construir uma grande barragem.

O Machado é um importante habitat para a dourada, o grande e altamente migratório bagre que se alimenta de peixes em florestas inundadas. O rio também é onde a pesquisa para estabelecer a conexão entre peixe e floresta na Amazônia foi realizada há muitas décadas.

No banco de areia exposto do Rio Machado, Hogan ouviu a líder da equipe, Lisiane Hahn, uma pesquisadora de peixes na Neotropical, uma empresa brasileira de consultoria ambiental, descrever a dinâmica das cheias.

“O lugar onde nós estamos agora, ficará completamente debaixo d’água na época de chuvas”, Hahn disse e apontou para a floresta distante. “Tudo aquilo estará inundado. Acho que dá para dizer que o rio é a floresta.”

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