A Amazônia se aproxima do ponto de ruptura, diz Carlos Nobre
O climatologista reflete sobre os desafios de preservação da floresta e a necessidade de uma agropecuária de carbono neutro
Polêmicas em relação ao meio ambiente marcaram a campanha, a transição e o início do governo do presidente eleito, Jair Bolsonaro. Apoiado pela Frente Parlamentar da Agropecuária, o capitão reformado do Exército questionou os compromissos estabelecidos pelo Acordo de Paris e alinhou-se a um discurso negacionista reforçado pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. O argumento é de preservar a “soberania nacional”, ao mesmo tempo em que se atribui um “viés ideológico” a instituições ambientais independentes, como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Além, é claro, da desistência de sediar a Conferência do Clima da ONU em 2019, a COP-25.
Após ser indicado para ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles declarou que o aquecimento global é uma questão secundária. Em 19 de dezembro de 2018, a Justiça de São Paulo condenou Salles por improbidade administrativa, acusado pelo Ministério Público de fraudar o Plano de Manejo de Área de Proteção Ambiental da Várzea do Rio Tietê, em 2016, quando era secretário do Meio Ambiente do estado. Já o novo chanceler Ernesto Araújo acredita que os estudos e a política em relação às mudanças climáticas são influenciados por um “marxismo cultural".
Bolsonaro colocou a comunidade ambiental em alerta já no primeiro dia de governo. Em decreto publicado no Diário Oficial da União, o presidente encarregou o Ministério da Agricultura de identificar, delimitar e demarcar terras indígenas (antes sob responsabilidade da Fundação Nacional do Índio, Funai) e quilombolas (até então feitas pela Fundação Palmares).
A pasta também controlará os licenciamentos ambientais, as políticas de reforma agrária e o Serviço Florestal Brasileiro, órgão com fins, por exemplo, de recuperar vegetações nativas e auxiliar processos de concessão das matas.
Tais funções serão realizadas pela Secretaria Especial de Assuntos Fundiários, sob o controle de Luiz Antônio Nabhan Garcia. Ele é presidente da União Democrática Ruralista (UDR) e, ao Estadão, avisou que demarcações serão “passadas a limpo”, a exemplo da reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima.
“Se a ideia de desmatar o quanto quiser e de invadir terras públicas prosperar, eu vejo com grande preocupação a questão do respeito com os compromissos ambientais”, observa o climatologista Carlos Nobre. O cientista paulistano pesquisa mudanças climáticas e Amazônia há mais de quatro décadas.
Em 1975, após se formar em engenharia eletrônica no Instituto de Tecnologia Aeronáutica (ITA), Nobre mudou-se para Manaus para trabalhar no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). Entre 1977 e 1982, fez doutorado em meteorologia no Instituto de Tecnologia de Massachussetts (MIT), orientado pelo professor Jeff Charney, pioneiro nas pesquisas sobre o aquecimento global. Após os estudos, Nobre tornou-se cientista sênior do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Em paralelo aos trabalhos no Inpe, Nobre deu sequência às pesquisas acadêmicas. Em 1988, como pesquisador da Universidade de Maryland, realizou um estudo inédito sobre os impactos climáticos dos desmatamentos na Amazônia. Em 1991, levantou a possibilidade de a Amazônia deixar de ser floresta para virar uma savana, em um cenário de alta no desmatamento e na temperatura global.
Em 2007, Nobre foi um dos autores do relatório sobre o aquecimento global do Painel Intergovernamental em Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), agraciado com o prêmio Nobel da Paz. Entre outras funções, Nobre é membro da Academia Brasileira de Ciências e foi secretário nacional do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. Desde maio de 2018, tornou-se pesquisador colaborador do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, cujo objetivo é estabelecer caminhos de desenvolvimento sustentável para o Brasil até 2050.
Na entrevista a seguir, Nobre analisa a postura brasileira no âmbito ambiental; os compromissos do Acordo de Paris; o aumento do risco de savanização da Amazônia; a influência da bancada ruralista no Congresso para afrouxar legislações ambientais; e seu projeto de desenvolvimento sustentável batizado de Terceira Via Amazônica.
“Se a ideia de desmatar o quanto quiser e de invadir terras públicas prosperar, eu vejo com grande preocupação a questão do respeito com os compromissos ambientais.”
No final dos anos 1970, o aquecimento global entrou em pauta na comunidade científica. Desde então, qual tem sido o papel do Brasil?
O Brasil tem uma posição “esquizofrênica”. Diplomaticamente, possui um papel muito importante desde que hospedou a Rio-92. Em 1997, o país propôs o mecanismo de desenvolvimento limpo no Protocolo de Kyoto, que teve efeito a partir de 2005, quando assinado pelos países responsáveis por 55% das emissões mundiais. Depois, hospedou a Rio+20. Hoje, é o país com as mais ambiciosas metas de redução de emissões colocadas em 2015 no Acordo de Paris. No entanto, da Rio-92 até 2005, apresentava uma postura interna muito atrasada, com o propósito de expansão indefinida e irrefreável da fronteira agrícola e do desmatamento.
Na questão dos recursos fósseis, a contradição continua até hoje. Ao avaliar o grande potencial das reservas do pré-sal, o Brasil parte para uma política de uso do combustível fóssil de maneira muito mais intensiva, enquanto diminui a velocidade com que substitui a gasolina pelo bioetanol. Por outro lado, em 2004, o país lançou como política pública o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento da Amazônia Legal, o PPCDAm. Seu enorme impacto talvez seja o que mais projetou o Brasil no cenário político e diplomático mundial em muitas décadas. Com a redução do desmatamento em mais de 70%, o Brasil se tornou um modelo para todos os países tropicais e foi seguido no restante dos países da Amazônia, na África e no Sudeste Asiático.
Apesar disso, nos últimos anos estacionamos com as quedas do desmatamento na Amazônia e no Cerrado. Felizmente elas não atingiram os níveis absurdos de 2005, mas ainda mostraram aumento. Tínhamos alcançado um número de 4.500 km2 desmatados na Amazônia, porém já voltamos para quase 8.000 km2 de derrubadas. Portanto, não cumprimos a nossa meta estabelecida em lei em 2010, que as limitavam a 3.900 km2 na Amazônia.
Em 1988, o senhor analisou de forma pioneira os impactos climáticos do desmatamento na Amazônia. Em 1991, levantou a hipótese da savanização deste bioma. Alguns impactos previstos naquela época já foram sentidos pela floresta?
Nosso conhecimento avançou muito mundialmente. Quando produzi os primeiros estudos, entre 1988 e 1991, aquilo era uma hipótese. Naquela época, os desmatamentos na Amazônia brasileira estavam na faixa de 8%, 9%. Hoje, chegaram a 20%. A hipótese era de que, se a floresta toda fosse desmatada, aconteceria a savanização. Agora, já temos algumas suspeitas de que o processo esteja em curso. O principal fator de preocupação é o aumento da duração da estação seca no sul e no sudeste da Amazônia. Nos últimos 30 anos, a estação seca está em média seis dias mais longa por década. A mais duradoura passou de meio mês. Se continuar assim, aquela região acabará virando uma savana bem degradada.
Alguns lugares do Cerrado têm o mesmo nível de chuva da região de Santarém, na Amazônia – anualmente, um total de 1.800 mm. Se chove o mesmo volume, por que em um lugar se tem floresta e no outro, cerrado? Na região de Santarém a chuva é bem distribuída o ano todo e a estação seca é muito curta. No Cerrado, a precipitação é muito concentrada na estação chuvosa, e depois essas regiões passam por três, quatro meses de chuva zero, enquanto em Santarém chove 80, 100 mm na estação seca. Essa é a grande diferença. Estudos de ecologia começam a mostrar um aumento da mortalidade de algumas espécies de árvores. Então, estamos realmente muito próximos desse ponto de ruptura.
Com nossa política do uso da terra no Brasil, podemos evitar dois dos três fatores que levam à savanização. Primeiro, temos que zerar o desmatamento rapidamente. Na COP-24 na Polônia, o grupo do qual faço parte, chamado Coalizão Brasil, lançou um documento mostrando que podemos zerar o desmatamento em todos os biomas, por meio de uma agricultura muito mais produtiva. Segundo ponto: reduzir o uso do fogo na agricultura, que tem aumentado o risco da savanização. Temos visto muito mais incêndios florestais hoje do que dez, 20 anos atrás. O terceiro fator está fora do nosso controle: o aquecimento global. Mesmo se reduzirmos a zero as emissões do Brasil, ainda dependemos que o resto do mundo faça o mesmo.
Nos nossos cálculos, se o aquecimento na Amazônia passar de 4ºC – já chegou a 1,5ºC –, teremos essa grande mudança do bioma para a savana. Seria um caso extremo, no qual as emissões continuariam como estão por 40, 50 anos. Recentemente, escrevemos um alerta na Science Advances de que não deveríamos deixar o desmatamento passar de 20%, 25% na Bacia Amazônica como um todo. Já chegou a 17% na internacional; na parte brasileira, a 20%.
Como a Amazônia produz aproximadamente metade das próprias chuvas, fator essencial para a conservação do bioma?
Por dois fatores importantes. Durante a estação que chove menos, a gramínea [vegetação típica das pastagens] diminui bastante sua vapotranspiração, ou seja, o vapor de água lançado para a atmosfera cai pela metade. Já a floresta acessa aquela água que caiu durante a estação chuvosa e foi para o fundo, por meio das raízes profundas. Há décadas observamos que as florestas transpiram mais na estação seca do que na chuvosa. E o fluxo de vapor d’água é muito importante para contribuir para a formação de chuva.
Outro fator importante é que a floresta tem uma superfície bem rugosa para o fluxo de vento. O topo da gramínea não é homogêneo, portanto o vento também sobe e desce, mas com variação muito pequena. A floresta tem uma irregularidade da superfície maior, que chamamos de rugosidade. O vento não consegue ficar horizontal. Passa por cima de uma árvore muito alta, depois cai. Isso gera muita turbulência com a superfície, que mistura o ar e facilita a transpiração e a diminuição da temperatura. O sol aqueceu o topo, os galhos, as folhas de uma árvore. O vento pega aquele ar quente e joga para cima. Aí vem um ar um pouco mais frio, que será aquecido de novo.
Se colocar uma floresta e uma pastagem na Amazônia, lado a lado, com a mesma chuva e o mesmo clima, a temperatura máxima da floresta será de 2ºC a 3ºC menor que a da pastagem. E a evaporação da floresta será de 30% a 50% superior. Essas fontes geram as chuvas principalmente na estação seca. São precipitações locais, de 2 mm a 5 mm, mas muito frequentes e importantes para a manutenção da floresta.
Que impactos esse ponto de inflexão traria não apenas para a Amazônia, mas para o Brasil?
O ponto de ruptura para a savanização da Amazônia não aconteceria da noite para o dia, mas de uma década a outra. Estimamos que, uma vez ultrapassado o limite do desmatamento, leva-se entre 20 e 50 anos para ocorrer essa substituição. E a savana virá de forma irreversível, porque será o bioma em equilíbrio para o novo clima. Ao diminuir as chuvas locais, reduzirá também a vazão dos rios.
Em um total desmatamento da Amazônia, ou seja, na substituição de floresta por pastagem, há boas evidências de que haveria uma alteração das chuvas no inverno no sul da Bacia do Prata, no sul do Paraguai e do Uruguai, no sul do Brasil e no centro-leste da Argentina. Nessas regiões, há uma correlação de fluxo do vapor d’água que sai da Amazônia e segue ao sul, paralelo aos Andes, e abastece os sistemas de chuva.
Ainda não sabemos o impacto no Sudeste. Durante o verão, temos uma estação chuvosa muito pronunciada, sendo que 65% do vapor d’água vem do Atlântico. Uma parte menor vem da Amazônia. Pode até ter impacto, porque a mudança das chuvas da Amazônia, com o desmatamento, altera as circulações tropicais. O efeito nessa relação seria menor, mas pode existir, porque as chuvas de verão diminuiriam. Mas ainda há incerteza científica, pois os modelos computacionais não concordam totalmente. Precisamos avançar nesse conhecimento científico.
“Devemos nos tornar muito mais rigorosos em exigir nossos direitos. Se houver movimentos no Congresso para mudar a legislação ambiental e enfraquecer a regulamentação que torna ilegal desmatamentos e queimadas, a população tem que reagir.”
Como o senhor observa os compromissos assumidos no Acordo de Paris mundialmente, assim como especificamente os do Brasil?
Primeiro, os compromissos até 2030 levariam o planeta a aumentar sua temperatura na faixa de 2,8ºC a 3,3ºC até o final do século, e continuaria subindo. As metas estão muito longe de garantir que ficaremos dentro dos 2ºC, muito menos de 1,5ºC. Alguns países estão nas trajetórias das contribuições nacionalmente determinadas, inclusive os Estados Unidos. Por mais que o presidente Donald Trump tenha ameaçado tirar o país do Acordo de Paris, as emissões americanas diminuíram em 2017 na mesma taxa dos últimos dez anos e estudos preliminares afirmam que a redução continuou em 2018.
As metas do Brasil para 2025 e 2030 são as mais ambiciosas entre os países em desenvolvimento: até 2025, 37% de redução das emissões em relação a 2005 e 43% de redução até 2030. Estados Unidos, China (a maior emissora) e Índia, a terceira, colocaram metas relativas. Até 2030, apenas prometem parar o aumento das emissões.
Enquanto os desmatamentos despencavam, o Brasil praticamente garantia sua trajetória correta. Mas depois de 2014 os desmatamentos estacionaram e, nos últimos anos, voltaram a aumentar. Já as emissões por queima de combustíveis fósseis aumentaram um pouco. Em 2014 e 2015, as secas interromperam a operação de muitas hidrelétricas, então as termelétricas entraram em máxima potência. As usinas eólicas têm se inserido muito rapidamente, mas ainda em um percentual pequeno no quadro de energia total – nem 10% da eletricidade. Já é importante, mas não o suficiente para garantir que as emissões provocadas pelos setores de energia e transportes sinalizassem uma tendência de queda.
Os desafios são maiores em outras áreas, como a redução das emissões na agricultura. A boa notícia é que elas vêm subindo em uma proporção menor do que o aumento do PIB agrícola. Em outras palavras, o setor econômico agropecuário está ficando mais eficiente, emite menos para produzir a mesma quantidade de produtos. Então, o Brasil pode cumprir seus compromissos até 2025, 2030? Pode, se reduzir drasticamente os desmatamentos.
No discurso de campanha, o presidente eleito Jair Bolsonaro sinalizava tirar o país do Acordo de Paris, pois, na opinião dele, os compromissos iam contra a “soberania nacional”. Que impactos sociais, ambientais e econômicos uma possível saída do Brasil do Acordo de Paris poderia trazer?
Olha, de fato essa possibilidade já foi descartada pela equipe do novo governo. Mas me pergunto se haverá alguma vacilação do governo para atingir as metas. Nos Estados Unidos, a vacilação do presidente Trump não teve muito impacto, porque lá o principal fator de emissão é a queima de combustíveis fósseis (80%). Nos EUA, já começou uma onda muito forte de substituição por fontes renováveis – eólica e solar. É um movimento enorme na economia americana, que gera centenas de milhares de empregos por ano e os preços são competitivos. Liderados pela Califórnia e por Nova York, 17 estados americanos assinaram compromissos rigorosos.
No Brasil é diferente, porque aqui 65% das emissões vêm de desmatamentos e agricultura. Então, temos que reduzir os desmatamentos e tornar nossa agricultura mais neutra. Se houver sinalização de que o “Velho Oeste” voltará a imperar no Brasil, se a ideia de desmatar o quanto quiser e de invadir terras públicas prosperar, eu vejo com grande preocupação a questão do respeito aos compromissos ambientais.
É lógico que o governo federal é muito importante para isso, mas temos instituições independentes. Se o Brasil quiser alguma perspectiva de melhora nos próximos anos e décadas, precisa respeitar a lei, a partir do Ministério Público, das atividades da Polícia Federal desbaratando quadrilhas, crime organizado e corrupção em todos os níveis (empresarial, governamental), que estão na raiz da invasão de terras públicas, do desmatamento, do roubo de madeira. Então, independente do presidente, do governo e dos ministros, temos que observar que o Brasil já adquiriu certa estatura de órgãos independentes que realizam sua missão de acordo com o que reza a Constituição.
E dependemos muito da população. Devemos nos tornar muito mais rigorosos em exigir nossos direitos. Se houver movimentos no Congresso para mudar a legislação ambiental e enfraquecer a regulamentação que torna ilegal desmatamentos e queimadas, a população tem que reagir. Se os deputados não seguirem a vontade da maioria, o que é essencial em uma democracia, a população não só não deve reelegê-los daqui a quatro anos, mas também tem que cobrar. Isso é muito importante e não tem ideologia. Não é uma questão ideológica, de direita, de esquerda, de centro… É uma vontade muito manifesta da população brasileira que o Congresso tem que respeitar.
O ministro do Meio Ambiente lançou recentemente os números do desmatamento em 2017, mostrando um aumento de quase 14% em relação ao período anterior. Ele falou que quase todo aquele desmatamento era ilegal, sem autorização nem em áreas onde a derrubada é permitida por lei. Quer dizer, existe um clima de grande ilegalidade por trás dos desmatamentos e das queimadas, e é isso que realmente temos que combater.
O governo de transição tem mostrado ceticismo em relação às mudanças climáticas. Por exemplo, o futuro chanceler Ernesto Araújo acredita que o aquecimento global é um complô global marxista. O que o senhor pensa sobre esse cenário?
A preocupação existe, mas não é nova. Essas tendências de fato começaram com a luta política que a bancada ruralista do Congresso iniciou em 2010, 2011, quando fez várias moções para mudar o Código Florestal, alterado em 2012. É um movimento para enfraquecer controles de legislação ambiental.
A maior preocupação que tenho é o fato de que a lei, com o novo Código Florestal, perdoou a ilegalidade de todos os desmatamentos até julho de 2008. Se de tempos em tempos, de dez em dez anos, passar uma lei que torne legal um desmatamento originariamente feito de forma ilegal, isso transmite para o setor agressivo, conservador, atrasado da agropecuária a noção de que não existe legislação. Que eles podem invadir terra pública, que podem desmatar, que podem roubar madeira. Que um dia aquilo tudo será perdoado, as multas irão desaparecer, as terras serão legalizadas… Ou seja, é uma sinalização de que não é importante nem necessário acompanhar o Código Florestal de hoje, que ainda é rigoroso em muitos aspectos. Ninguém interpretou ainda qual a força dessa bancada no novo Congresso, mas ela tem sido historicamente muito forte no Brasil. É uma fraqueza da democracia, em um país em que as leis têm uma duração curta e são modificadas por interesses de poderosos política e economicamente.
É importante dizer que o setor moderno da agricultura e da pecuária já se coloca fortemente contra o avanço do desmatamento e das queimadas, porque já se deu conta de que isso é prejudicial para os próprios negócios. Não só no sentido de diminuir a atratividade dos produtos brasileiros em mercados ambientalmente rigorosos, como o europeu, mas também porque manter o máximo possível de biomas originais traz benéficos para a produção agrícola e pecuária.
A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) tem experimentos recentes que mostram um enorme aumento da produtividade nos sistemas chamados “integração lavoura-pecuária-floresta”. Quando se coloca um sombreamento, o gado produz muito mais leite e muito mais carne. Isso já era algo conhecido, mas agora finalmente começa a ser disseminado entre os pecuaristas e agricultores do setor moderno, que escuta a ciência e a tecnologia.
Infelizmente, temos um setor numericamente expressivo que ainda possui uma visão de expansão continuada da fronteira agrícola, sobretudo da pecuária. Estão muito mais preocupados com a posse da terra do que com uma visão empresarial de produtividade. É um pouco daquela mentalidade da colonização que ocorreu nos Estados Unidos, marcada pela força da violência, das armas, a expulsão das comunidades indígenas que eram as reais proprietárias da terra. Nesse cenário, quadrilhas criminosas tomam terras públicas e depois as vendem a pecuaristas.
O que ainda precisa mudar para impedir o desmatamento em áreas já protegidas?
Ainda temos na Amazônia algo em torno de 600 mil e 800 mil km2 de terras públicas. É importante dar uma destinação para essas áreas, com a criação de reservas protegidas e florestas nacionais, por exemplo. Caso contrário, elas se tornam alvos da grilagem, que também ocorre em áreas de proteção e reservas indígenas. A razão do sucesso da redução do desmatamento em mais de 70%, entre 2005 e 2014, é uma rigorosa política de controle, desbaratamento e desmembramento das quadrilhas organizadas responsáveis pelo roubo de madeira e pela grilagem em terras públicas. Acima de 70% dos desmatamentos são ilegais e muitos estão associados a organizações criminosas. Também precisamos dar mais ênfase na proteção das áreas já existentes, que correspondem a 50% da Amazônia brasileira, seja como áreas protegidas, reservas indígenas ou de desenvolvimento sustentável.
“Os ativos biológicos na Amazônia são muito superiores do que se substituíssem a floresta por pastagem para a pecuária, por grãos para a agricultura ou por extração de minérios.”
O World Resources Institute aponta que a agropecuária brasileira é responsável por 1% de todos gases de efeito estufa emitidos no mundo. Que fatores tornam essa prática tão danosa ao meio ambiente?
Esse cálculo é só da pecuária, não inclui o desmatamento. O boi, por exemplo, processa a gramínea no pré-estômago. As reações químicas de processamento da matéria orgânica geram metano e o boi arrota esse gás, o que representa a maior parte das emissões da pecuária. Existem dietas com suplementos alimentares que diminuem a produção de metano, mas não a elimina.
A partir de vários estudos, a Embrapa patenteou a “carne carbono neutro”. Você maneja a pastagem de maneira que ela absorva o carbono no solo. A gramínea cresce, as raízes também. Na estação seca as raízes morrem e aquele carbono permanece no solo. Segundo a Embrapa, no pasto super manejado há entre 2,6 a 3 cabeças de gados por hectare, enquanto a agregação de carbono ao solo é equivalente a emissão de metano de ao menos 2,6 cabeças. A ocupação média da pecuária brasileira hoje é de 1,3 cabeças de gado por hectare e no total temos 215, 216 milhões de cabeças em 1,8 milhão de km². O Ministério da Agricultura supõe que 10 milhões de pastagens já estejam mudando para esses sistemas. Se o comportamento do consumidor seguir nessa direção, poderemos ter uma pecuária muito mais produtiva e que emite muito menos.
A Embrapa calcula que, até 2025, seja possível aumentar a produção de proteína animal em 35% e, ao mesmo tempo, reduzir em 25% a área de pecuária no Brasil. Essa redução de 450 mil km² – uma cidade de São Paulo e meia – seria muito importante não só para a agropecuária, mas sobretudo para que o país cumpra a meta de restaurar 12 milhões de hectares de floresta [estabelecida no Acordo de Paris].
Qual é a ideia do seu projeto, chamado Terceira Via Amazônica?
Esse é um projeto que eu, o Ismael [irmão de Nobre, biólogo que integra a equipe de transição do presidente eleito] e outras pessoas estamos liderando. Pensando em um novo modelo de desenvolvimento para a Amazônia, seria uma economia de floresta em pé, na qual o valor maior são os produtos da biodiversidade. Pega o exemplo do açaí, um produto que há 20 anos não era nada e hoje já significa US$ 1,5 bilhão para a economia do bioma. Então, estamos propondo a Terceira Via Amazônica, ou Amazônia 4.0, número que faz referência a utilização das tecnologias modernas da quarta revolução industrial.
Como garantir que ocorra um desenvolvimento sustentável sem ameaçar nem degradar o meio ambiente?
Os ativos biológicos na Amazônia são muito superiores do que se substituíssem a floresta por pastagem para a pecuária, por grãos para a agricultura ou por extração de minérios. Mas, para isso, precisamos realmente fazer as novas tecnologias chegarem à Amazônia e adicionarem valor às cadeias produtivas. Eu dei o exemplo do açaí porque já é uma realidade, mas levantamos uma lista com mais de mil produtos com potencial, como a castanha, o guaraná, a andiroba, a copaíba, o pau-rosa. Nossa proposta também é muito preocupada com o bem-estar e a prosperidade das populações amazônicas. Não é como a mineração, em que apenas se tira o valor da Amazônia e o leva para outro lugar. Outro setor do nosso projeto é a alta tecnologia biológica. Queremos capacitar populações para que elas próprias façam o genoma das espécies que dominam, com base no conhecimento tradicional. Fariam o genoma de dezenas de milhares de espécies, e isso no futuro teria um enorme potencial econômico a partir dos recursos biológicos e genéticos.