Mudança na regularização fundiária pode estimular a grilagem, diz pesquisadora
Na indústria da especulação de terra, o grileiro primeiro identifica uma área pública e expulsa quem estiver nela. Depois, desmata para sinalizar que o terreno está em uso e, por último, tenta legalizá-lo com a ajuda de novas leis.
Passou a vigorar com força de lei nesta quarta-feira, 11 de dezembro, a Medida Provisória (MP) nº 910, que altera normas para a regularização fundiária. A MP foi assinada na tarde de ontem pelo presidente Jair Bolsonaro e pela ministra da Agricultura, Tereza Cristina, e publicada hoje no Diário Oficial da União (DOU).
O governo afirma que a MP pode beneficiar mais de 300 mil famílias instaladas em terras da União há pelo menos cinco anos, sobretudo pequenos produtores que vivem em propriedades de em média 80 hectares. Contudo, especialistas enxergam brechas na legislação que podem beneficiar grileiros que desmataram, queimaram e ocuparam terras na Amazônia Legal até o final do ano passado.
“Na verdade, criamos uma ferramenta social. De um lado, dá ao Estado conhecimento sobre sua malha fundiária, para inclusive fiscalizar melhor a aplicação da lei. E de outro, dá ao proprietário a responsabilidade por aquilo que acontece no seu terreno”, disse a ministra Tereza Cristina, durante a cerimônia de assinatura da MP, no Palácio do Planalto. “Paralelamente, estamos modernizando o sistema com a criação do Certificado de Cadastro de Imóvel Rural, o CCIR Digital. Em breve, acabará a fila e a demora para se obter um documento essencial para as operações de crédito ou compra e venda de imóveis rurais.”
A medida concederá título a quem comprovar “o exercício de ocupação e de exploração direta, mansa e pacífica, por si ou por seus antecessores, anteriores a 5 de maio de 2014”. Entretanto, o artigo 38º acrescenta que quem ocupou terra pública da União após esse limite poderá solicitar a titulação, caso cumpra os requisitos e comprove vínculo à terra há pelo menos um ano antes da publicação da MP no Diário Oficial da União (DOU) – portanto, ocupações que antecedam a 11 de dezembro de 2018.
A lei anterior, sancionada em 2017 pelo então presidente Michel Temer, limitava a concessão de títulos a quem houvesse ocupado áreas da União até 2008, contendo exceções que estendiam o prazo para 2011.
No processo de regularização, o requerente deverá apresentar a planta da área, as coordenadas georreferenciadas e a adesão ao Cadastro Ambiental Rural (CAR). Já na declaração deve constar que ocupa a área até o limite temporal estabelecido, que cultive a terra efetivamente e que não esteja empregado em cargo público nos órgãos envolvidos, nem tenha outro imóvel rural no país ou sido beneficiado por programas de reforma agrária ou de regularização fundiária rural.
Conforme a MP 910, as áreas requeridas podem ter no máximo 2.500 hectares, ou 25 km2, e abrangem terras públicas de todo o Brasil. Pedidos para regularização fundiária de imóveis de até 15 módulos fiscais “serão averiguados por meio de declaração do ocupante”. Nesses casos, o Incra dispensará vistoria prévia dos imóveis e fará apenas a análise técnica dos documentos recebidos. A dimensão de um módulo fiscal varia conforme as regiões. Na Amazônia, pode ir de 40 a 110 hectares.
Só haverá vistoria prévia das propriedades solicitadas se houver embargo ou infração ao meio ambiente atestada por órgão ambiental federal; “indícios de fracionamento fraudulento da unidade econômica de exploração”; requerimento por procuração; conflitos declarados ou registrados na Ouvidoria Agrária Nacional; a não comprovação de ocupação anterior a 5 de maio de 2014; e áreas acima de 15 módulos fiscais.
Na vistoria, o Incra avaliará se houve dano ambiental no processo de “preenchimento dos requisitos para a regularização fundiária”. Se constatado, o órgão indeferirá o pedido, exceto se o ocupante aderir ao Programa de Regularização Ambiental (PRA) ou firmar “um termo de ajustamento de conduta ou instrumento similar com o órgão ambiental competente ou com o Ministério Público”.
Em seu discurso, Cristina classificou a MP como “um grande programa ambiental, além de “efetivar o direito à terra”. “Titulação é igual à preservação, igual à responsabilidade. A MP transforma os produtores rurais em parceiros na recuperação ambiental, pois todos terão que aderir às exigências do Código Florestal, para garantir a titularidade da terra”, argumentou a ministra. “Se não cumprir o CAR, que exige de 20% a 80% da preservação, no caso da Amazônia, ele pode inclusive perder o seu título. Então, nós estamos certamente tendo mais e mais aliados contra o desmatamento ilegal.”
O Incra e, em alguns casos, o Ministério da Economia serão responsáveis pela concessão dos títulos. Já a Secretaria Especial de Assuntos Fundiários, do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), está encarregada do monitoramento de toda a atividade fundiária.
A MP nº 910 seguirá para o Congresso Nacional e, se aprovada, virará lei a partir da sanção do presidente. “Se o Congresso Nacional aceitar converter essa MP em lei, com essa mudança de data, vai ser cúmplice de mais uma anistia ao roubo de terra pública”, avalia Brenda Brito, pesquisadora do Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) e especialista no sistema fundiário.
“Quem invadiu terra pública a partir de 2011 sabia que estava praticando um crime. Isso reforça a mensagem de que invadir e desmatar são ações que merecem ser premiadas, ao invés de punidas”, argumenta Brito. “É especialmente grave semanas após a divulgação dos dados que mostram aumento do desmate na Amazônia de quase 30% em relação ao ano anterior. O que a gente precisa são medidas que possam combater e reduzir o desmatamento, e não estimular que mais desmatamento aconteça.”
Grilagem em terras públicas
Dos 9.762 km2 de florestas desmatados por corte raso na Amazônia Legal entre agosto de 2018 e julho de 2019, 35% foram em terras públicas sem designação nem informação, conforme o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam). Essas derrubadas integram o processo de grilagem que, em outras palavras, trata-se do roubo de terras da União e dos estados para especulação fundiária. Outros 12% do desmatamento ilegal ocorre em áreas protegidas, como unidades de conservação e terras indígenas.
A conclusão do Ipam partiu de uma análise dos dados anuais oficiais de desmatamento do Prodes, programa do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Segundo Ane Alencar, diretora sênior de Ciência do Ipam, a grilagem em áreas públicas sem destinação representa um incremento recente nesta prática criminosa.
Conforme levantamentos do Imazon, 67% da floresta amazônica possui destinação fundiária definida, seja como área protegida ou com cadastro de terras tituladas no Incra – o que não significa que essas áreas estejam livres de conflitos. “Vemos cada vez mais invasões a terras indígenas e unidades de conservação”, observou Brito, durante um seminário organizado pelo instituto e pela associação O Eco, no Rio de Janeiro, em 27 de novembro. Dentro dos 67% da Amazônia com destinações, 16% são de títulos de terra no Sistema de Gestão Fundiária (Sigef) do Incra. Porém, "mesmo os imóveis que seriam privados, de acordo com o Sigef, também podem ter muitos problemas, porque provavelmente uma parte desses 16% sejam títulos falsificados.”
Existem aproximadamente 70 milhões de hectares (700 mil km2) de terras públicas sem destinação na Amazônia Legal. A área corresponde a 33% da floresta amazônica e equivale a quase o dobro do território da Alemanha. De acordo com um novo estudo do Imazon, que deve ser publicado no início de 2020, cerca de 66% da área não designada é de propriedade da União e 34% dos estados amazônicos.
“Temos vários grupos interagindo pelo direito à terra, desde os que têm prioridade na legislação brasileira para reconhecimento de territórios – como povos indígenas, quilombolas e populações tradicionais – a demandas de pequenos agricultores, médios e grandes produtores e empresas”, disse Brito. “Tudo isso interage com diferentes interesses: uso tradicional, conservação, economia florestal – manejo, extração de madeira e produtos não madeireiros –, agropecuária, mineração e especulação [fundiária].”
Brito não enxerga com otimismo o rumo da destinação de terras públicas. Para a pesquisadora, a área está submetida a leis federais e estaduais que “ou estimulam continuamente a apropriação privada de terra pública, ou acabam validando esse tipo de modelo quando são alteradas”. As regras fundiárias aplicadas indicarão o que acontecerá com a área, ela observa: “Se será destinada ao uso sustentável, à conservação e a uma economia que valorize a floresta em pé; ou se terá a continuidade de um modelo que simplesmente visa obter ganhos para grupos pequenos, que não visa o interesse social e resulta no desmatamento – padrão do que vemos acontecer ao longo da história das políticas fundiárias na Amazônia”.
A fragilidade da legislação e a facilidade em alterá-la representam um ponto intrínseco ao ciclo da grilagem. Nessa indústria da especulação fundiária, o grileiro primeiro identifica uma área pública e expulsa quem estiver nela – como povos indígenas, quilombolas e populações tradicionais. Depois, desmata total ou parcialmente, para sinalizar a possíveis compradores e ao governo que aquela área está sob uso. Na sequência, tenta legalizá-la: os criminosos dividem a área em lotes, fazem o cadastro ambiental rural – que é autodeclaratório – e pedem a regularização fundiária ao governo federal ou estadual – ou aos dois, caso não haja clareza da esfera pública a que pertence o terreno.
“Se por acaso existir um entendimento de que naquela região a lei em vigor não vai permitir a regularização, tem todo um movimento de lobby para a alteração da lei para uma que favoreça quem está lá ocupando”, observa Brito.
“Qual é o problema disso [sucessivas mudanças na legislação fundiária]? É a mensagem de que ocupações feitas após a lei continuarão sendo regularizadas.”
Mudanças na legislação
De agosto de 2016 a julho de 2019, o Prodes, do Inpe, registrou 32.138 km2 desmatados por corte raso – uma área pouco maior que a da Bélgica. No período, ocorreram sucessivas mudanças nas leis fundiárias federais e estaduais. Em dezembro de 2016, o então presidente Michel Temer enviou ao Congresso Nacional a Medida Provisória 759, que alterou a política fundiária. Sancionada em julho de 2017, a MP virou lei e autorizou a concessão para quem tivesse comprovado vínculo de ocupação e exploração em terras da União até 22 de julho de 2008, com exceções que estendiam o limite para 2011. Só na Amazônia Legal, o objetivo era emitir mais de 27 mil títulos. A lei federal anterior estabelecia um marco temporal para quem estivesse na terra até 2004.
“Depois do governo, o Amapá aprovou uma lei fundiária que repete a federal, publicada no início de 2018. Esse ano, Mato Grosso, Pará, Tocantins e Roraima ou mudaram totalmente sua lei fundiária, ou fizeram modificações que em geral dão o mesmo tom de conceder mais benefícios”, analisa Brito. “Qual é o problema disso? É a mensagem de que ocupações feitas após a lei continuarão sendo regularizadas.”
Outro problema consiste no valor de venda das propriedades da União. Pesquisa do Imazon constatou que o preço cobrado varia de 2% a 40% do valor de mercado. “É um modelo que estimula a lógica da especulação. Já vi casos de títulos emitidos cobrando R$ 100 o hectare, onde a pessoa vendeu depois por R$ 10 mil”, observa Brito. “É uma indústria estimulada pela possibilidade do lucro uma vez que é titulado.”
Para Brito, a solução mais simples e rápida para combater o roubo de terras públicas e, por consequência, o desmatamento ilegal, é transformar as florestas da União e dos estados em unidades de conservação e terras indígenas. Ela também julga necessários mais investimentos na estruturação e na transparência dos órgãos fundiários.
“Estamos experimentando um retrocesso, porque essa grilagem atual tem o mesmo perfil da década de 1970, da ocupação sem qualquer preocupação”
Operação Miríade
Na manhã de 4 de dezembro, 70 policiais federais cumpriram 17 mandados de busca e apreensão expedidos pela Justiça Federal no Amapá. Deflagrava-se a segunda fase da Operação Miríade, ação integrada da Polícia Federal e do Ministério Público Federal na capital do estado, Macapá, e no município de Santana. Tinham como alvo Hildegard Gurgel, suspeito de liderar uma organização criminosa que, dentro dos gabinetes públicos, favoreceu a emissão de títulos de áreas estaduais a grileiros. Segundo o MPF, o empresário teria regularizado ilicitamente mais de 7 mil hectares de terra.
Conforme a investigação, a organização criminosa utilizou “laranjas” – pessoas que emprestavam seus nomes – para entrar com pedidos de regularização fundiária no Incra. “A finalidade era permitir que Gurgel regularizasse, de forma ilícita, grandes porções de terras no Amapá, nos municípios de Macapá e Itaubal do Piririm, sem chamar atenção dos órgãos de investigação”, informou, em nota, o MPF-AP. “Entre os ‘laranjas’ estão o vereador do município de Santana, Rarison Santiago (PRP), sua mulher, Driene Ramalho, e seu tio, Luís Gemanaque Júnior.”
O MPF-AP afirma ainda que o grupo tinha apoio de dois servidores públicos, Maria Alice Pereira de Souza e Fábio da Silva Muniz, que “montavam processos e executavam registros fraudulentos nos sistemas do órgão”. De acordo com a denúncia, o engenheiro agrimensor cadastrado no Incra, Fábio Colares, “inseriu dados falsos em sistemas eletrônicos”. O MPF-AP aponta Rubens Lima Morais “como um dos principais atores da organização criminosa”, por ter “facilitado a grilagem de mais de 3 mil hectares de terras em troca de cargos na Assembleia Legislativa do Amapá”. Outras sete pessoas também são alvos de medidas judiciais e de quebra de sigilo bancário, fiscal e telefônico.
Na linha de investigação, o MPF-AP apura se houve “crimes de organização criminosa, falsidade ideológica, corrupção ativa e passiva, inserção de dados falsos em sistema de informação e utilização, como prova de propriedade ou de direitos a ela relativo, de documentos expedidos pelo Incra”.
O que diz a legislação
As ações de madeireiros – e os ramais por eles abertos pelo desmate – representam uma primeira onda que resulta no roubo de terra pública. Na época em que trabalhava pelo MPF na Amazônia, Marco Antônio Delfino lembra de uma operação de combate ao desmatamento ilegal. Do alto do helicóptero, a ação criminosa era imperceptível. Em terra, o procurador deparou com quatro mil toras de madeira e tratores com ar condicionado. “São grupos que têm um poderio econômico muito grande”, disse Delfino, no seminário do Imazon e d’O Eco no Rio de Janeiro. Atualmente, ele é procurador do MPF em Dourados, no Mato Grosso do Sul.
“Grilagem é um termo que deriva do processo de envelhecer títulos para de alguma forma obter uma aparência de validade, de veracidade, de um determinado documento. Jogava-o em uma caixa com grilos, que faziam aquele papel ficar amarelado, envelhecido”, explicou Delfino.
A lei 4.947, de 6 de abril de 1966, fixa normas do direito agrário e estabelece a grilagem – sem utilizar este termo – como crime: “Invadir com intenção de ocupar terras da União, dos estados e dos municípios”.
Para Delfino, a legislação que mais combate a grilagem é a 11.284, estabelecida em 2006 e de autoria da então ministra do Meio Ambiente, Marina Silva. O artigo 50-A estabelece pena de reclusão de dois a quatro anos e multa a quem “desmatar, explorar economicamente ou degradar floresta, plantada ou nativa, em terras de domínio público ou devolutas, sem autorização do órgão competente”. Caso a área explorada supere 1.000 hectares, a pena é aumentada em um ano para cada milhar de hectare. A lei isenta de crime “a conduta praticada quando necessária à subsistência imediata pessoal do agente ou de sua família”.
Entretanto, Delfino considera que as constantes alterações nas legislações fundiárias federais e estaduais estimulam um permanente processo de ocupação. Na visão dele, a junção da deficiência na estrutura estatal e a corrupção no aparelho judiciário também impulsionam a indústria da grilagem e do desmatamento na Amazônia.
Na Bahia, por exemplo, a Polícia Federal investiga um esquema de corrupção no Judiciário relacionado à venda de sentenças que envolvem a grilagem de terras no oeste do estado, batizada de Operação Faroeste. Nos últimos dias, o caso resultou na prisão de um juiz de primeira instância e de quatro advogados, além do afastamento de quatro desembargadores e de uma juíza do Tribunal de Justiça da Bahia.
“Estamos experimentando um retrocesso, porque essa grilagem atual tem o mesmo perfil da década de 1970, da ocupação sem qualquer preocupação”, acredita o procurador. A diferença, para ele, é que no passado não existia uma política de áreas de proteção e de formalização das ocupações. “Agora, nós temos terras indígenas sendo sistematicamente invadidas como nunca. A Constituição estabelece que o título é nulo. Se o cara chuta o pau da barraca e ocupa uma terra indígena, é por que realmente estamos em outra escala de grilagem – uma escala, infelizmente, genocida.”