Em rara demonstração de solidariedade, 14 nações se comprometem a proteger oceanos

O pacto de maior alcance do mundo para proteger e manter a saúde dos oceanos nos leva a acreditar que os sérios problemas que afetam nossos mares podem ser resolvidos.

Por Laura Parker
Publicado 9 de dez. de 2020, 07:00 BRT
Cardumes da espécie Plectorhinchus chaetodonoides nadam na Grande Barreira de Coral da Austrália, uma das nações ...

Cardumes da espécie Plectorhinchus chaetodonoides nadam na Grande Barreira de Coral da Austrália, uma das nações que se compromete a proteger 100% de suas águas oceânicas contra a pesca predatória, poluição por plástico e escoamento de resíduos agrícolas.

Foto de David Doubilet, National Geographic

QUANDO OS CHEFES de estado de 14 nações se reuniram no fim de 2018 para discutir a terrível condição dos oceanos ao redor do mundo, não havia garantia nenhuma de que o encontro seria frutífero. Os líderes planejaram 14 encontros, mas se reuniram apenas duas vezes antes de a pandemia impedir a continuação das conversas.

Portanto, o pacto de maior alcance do mundo anunciado pelo grupo nesta semana para proteger e manter a saúde dos oceanos sinalizou mais do que apenas uma conquista importante em tempos difíceis. O acordo, negociado por meio de uma videoconferência, ferramenta que não transmite as nuances desse tipo de negociação, também trouxe esperança a respeito de uma nova era de acordos globais sobre o clima, nos quais questões embasadas na ciência podem finalmente superar posicionamentos políticos.

De forma geral, os 14 líderes concordaram em administrar de forma sustentável 100% dos oceanos sob suas jurisdições nacionais até 2025 — uma área marítima quase do tamanho do continente africano. Além disso, prometeram reservar 30% dos mares para áreas marinhas protegidas até 2030, de acordo com a campanha das Nações Unidas (ONU) conhecida como “30 até 30”.

Segundo os líderes, ambos os compromissos assumidos ajudarão a acabar com a pesca predatória e a pesca ilegal, reestabelecer os estoques de peixes que estão reduzidos, interromper o fluxo de lixo plástico para os mares e limpar “zonas mortas” criadas pelo escoamento de resíduos agrícolas.

“O que me parece realmente interessante é 14 nações terem passado os últimos dois anos conversando entre si de uma forma que gostaríamos de ver acontecer novamente no futuro”, relata Nancy Knowlton, cientista marinha emérita do Instituto Smithsoniano, que não participou do projeto. “Eles estão trabalhando juntos como uma equipe. Começar o projeto com os países alinhados cria um mecanismo para realmente alcançarmos o sucesso.”

Corais nascem na Grande Barreira de Coral. Uma coalizão de países com princípios semelhantes, cujos oceanos estão profundamente enraizados em sua cultura e história, chegou a um acordo para proteger seus oceanos, com discussões embasadas na ciência.

Foto de David Doubilet, National Geographic

Atores inesperados trabalhando em conjunto

O grupo dos 14 líderes não se parece em nada com os líderes internacionais que normalmente são recrutados para iniciativas globais. A França, com sua vasta gama de territórios ultramarinos, que lhe confere uma das maiores pegadas oceânicas do planeta, não foi convidada; tampouco as poderosas nações da Rússia, China ou Estados Unidos.

“Negociar com países desse nível não é tão fácil assim”, explica Vidar Helgesen, ex-Ministro do Clima e Meio Ambiente da Noruega e força motriz por trás do projeto. “Decidimos criar um grupo no qual a alta política não atrapalhasse e nos permitisse focar na tarefa a ser feita.”

A ideia, acrescenta Helgesen, era formar uma coalizão de países dispostos — um grupo que compartilhasse da mesma opinião, cujos oceanos são profundamente enraizados em sua cultura e história — para discussões sustentadas pela ciência.

Como resultado, o Painel de Alto Nível para uma Economia Sustentável do Oceano inclui nações grandes e pequenas, ricas e pobres, espalhadas em todas as bacias oceânicas. Todos são economicamente dependentes, em diversos graus, dos mares. Os 14 membros são Austrália, Canadá, Chile, Gana, Indonésia, Japão, Quênia, México, Namíbia, Noruega, Portugal e as nações insulares de Fiji, Jamaica e Palau.

Juntos, representam 40% das costas oceânicas do mundo, 30% das zonas econômicas exclusivas em alto mar, 20% da pesca mundial e 20% da frota marítima mundial.

Agora, os 14 líderes estão convidando outras nações a se juntarem ao esforço conjunto.

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    Grande Barreira de Coral da Austrália vista de cima. Líderes das 14 nações querem tornar os oceanos parte da solução, não apenas o problema principal, ou seja, os peixes não são os únicos envolvidos, há também outros habitantes dos oceanos, incluindo algas marinhas e bivalves.

    Foto de David Doubilet, National Geographic

    A nova ciência apoia o plano

    O esforço recebeu apoio de uma equipe de 253 cientistas, que conduziram novas pesquisas sobre os oceanos e publicaram 16 artigos confiáveis sobre tópicos que variam de uma avaliação de como conter o fluxo de lixo plástico ao combate às mudanças climáticas. Pelo menos nove deles estão sendo publicados na revista científica Nature.

    “O processo científico foi muito rigoroso”, relata Boris Worm, cientista marinho da Universidade de Dalhousie, na província de Nova Escócia, que atuou como consultor científico da delegação do Canadá. “Quando pessoas com interesses divergentes se reúnem e analisam os dados disponíveis, há menos espaço para negociação. Dados são dados. É possível trabalhar em conjunto.”

    Os membros do Painel de Alto Nível também estavam dispostos a transformar o pensamento convencional. Em vez de considerar os oceanos apenas uma vítima das mudanças climáticas — o que não deixam de ser, pois estão aquecendo e ficando mais ácidos — os líderes defendem que devem ser aproveitados de forma a se tornarem parte da solução global. O segredo para isso acontecer é adotar uma abordagem abrangente — administrar de forma sustentável 100% dos oceanos, não apenas as áreas protegidas. Se administrada de maneira adequada, o painel alega que a economia oceânica, incluindo a pesca, pode ser expandida.

    Além disso, ações como a recuperação de manguezais, florestas de algas e vegetação marinha que absorvem carbono podem ajudar a compensar as emissões globais em até um quinto, além de manter o aquecimento global em 1,5 grau Celsius, segundo os líderes dos países.

    “Agimos como se tivéssemos que escolher entre proteger o oceano ou utilizá-lo”, acrescenta Jane Lubchenco, que chefiou a Agência Norte-Americana de Administração dos Oceanos e da Atmosfera  no governo Obama e copresidiu o comitê de especialistas do Painel de Alto Nível. “Essa é uma falsa escolha. Estamos descobrindo maneiras mais inteligentes de usar o oceano sem esgotá-lo. O segredo está em proteger a saúde dos ecossistemas oceânicos...”

    Ela reitera que as soluções oferecidas pelo painel poderiam gerar 40 vezes mais energia renovável com a produção de energia eólica em alto mar e aproveitamento da potência de ondas e marés, além de tirar milhões de pessoas da linha da pobreza. Os economistas do painel previram que cada US$1 investido em um oceano sustentável renderia US$5 em benefícios econômicos, sociais e ambientais.

    As soluções envolvem uma série de 74 ações, algumas já em andamento. Uma nova tecnologia, por exemplo, permite que Gana rastreie navios de pesca estrangeiros à espreita em sua costa e repreenda a pesca ilegal. Embora o apelo do painel por investimento em infraestrutura de gestão de esgoto e resíduos para impedir que resíduos plásticos cheguem aos mares, represente um alto custo e seja improvável em larga escala nas próximas décadas, muitos países em desenvolvimento baniram diversos produtos plásticos de uso único, e outros estão implementando sistemas de captação nos principais rios da Tailândia, Vietnã e Indonésia para reter resíduos de plástico antes que sejam despejados nos mares.

    O agulhão-do-japão está em falta na costa do Japão. O plano de sustentabilidade inclui a recuperação dos estoques de peixes escassos, algo que o mundo nunca conseguiu fazer.

    Foto de The Yomiuri Shimbun, Ap

    Metas ambiciosas são difíceis de alcançar

    Se, para alguns, a abordagem aparenta ser apenas mais uma meta fútil criada para fins de premiação, os líderes afirmam que a época de dar passos pequenos já está ultrapassada. Os oceanos, que cobrem 70% do globo e produzem mais da metade do oxigênio da Terra, atingiram um ponto de declínio tão preocupante que clamam por uma ação mais drástica. A incapacidade, que já dura décadas, de recuperar estoques cada vez menores de peixes para alimentar uma população mundial em crescimento oferece uma linha do tempo que ilustra de forma impressionante essa questão.

    A pesca atingiu seu pico em meados da década de 1990, marcando o início de um longo declínio. Na época, o atual primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau, estava encerrando sua graduação na Universidade McGill, em Montreal. Agora, cerca de 30 anos depois, 82% dos estoques de peixes do mundo são considerados impactados pela pesca predatória e novas pesquisas mostram que apenas 27% dos peixes do Canadá são considerados saudáveis. (No ano passado, o Canadá reforçou sua lei de pesca, tornando obrigatória a recuperação dos estoques pesqueiros.)

    O Painel Intergovernamental da ONU sobre Mudanças Climáticas alertou em um relatório especial de 2019 que a saúde frágil dos oceanos poderia causar uma redução de 25% dos peixes até 2100 caso nenhuma providência fosse tomada. Apenas a Noruega e os Estados Unidos conseguiram recuperar os estoques de peixes.

    “Enveredar mais esforços em atividades pesqueiras certamente não irá nos oferecer mais peixes”, reafirma Enric Sala, cientista marinho e explorador residente da National Geographic.

    Da mesma forma, separar pequenas porções dos oceanos para proteger — apenas 7% dos mares são áreas marinhas protegidas — não restaurará a saúde do oceano. Até mesmo 30% não é considerado suficiente.

    “O objetivo não é apenas proteger uma pequena fração do oceano e destruir o resto, por assim dizer, mas ter a ambição de dizer que 100% dos nossos oceanos precisam ser administrados para que não se deteriorem ainda mais”, esclarece Worm. “E há muito a ser reconstruído, recuperado e restaurado. Essa é a verdadeira questão sendo debatida.”

    O que realmente significa essa sustentabilidade?

    A frase “gestão sustentável” é um termo tão amplo e evasivo que deixa brecha para o ceticismo. Daniel Pauly, renomado especialista em pesca da Universidade de British Columbia, que não participou do projeto, elogiou a iniciativa. Mas ele ainda tem reservas quanto ao termo “administrado de forma sustentável” ter, de fato, algum impacto significativo.

    “A maior parte da população não sabe que sustentabilidade não é sinônimo de abundância”, diz ele. “É possível sustentar qualquer nível, até mesmo níveis baixos. É possível sustentar um estoque impactado pela pesca predatória.”

    Por outro lado, para que os céticos não rejeitem a ideia de que apenas 14 das 192 nações costeiras do mundo seriam capazes de causar um impacto, considere que o Japão, uma influência poderosa no Pacífico Asiático, assinou o acordo para reservar 30% dos oceanos como áreas marinhas protegidas. O fato de o Japão, que há anos demonstra relutância com relação à criação de áreas protegidas, ter reavaliado sua posição é algo “significativo”, alega Sala.

    Agora, quando a ONU se reunir  na China no ano que vem para continuar trabalhando em um tratado de proteção marinha global que ainda afasta participantes, contar com o apoio do Japão para criar áreas marinhas protegidas pode facilitar o caminho para que outras nações, incluindo a China, reconsiderem sua decisão. Até o momento, a China se comprometeu a proteger 30% de suas terras, mas permaneceu em silêncio sobre a proteção dos oceanos. O apoio da China seria capaz de garantir quase a totalidade do cumprimento da meta de 30%.

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