Pequenas hidrelétricas na Amazônia são insustentáveis, ineficientes e quase sempre injustificáveis

“Qual a justificativa para tantos projetos hidrelétricos que contribuem tão pouco com a geração de energia no país?”, questiona Explorador da National Geographic.

Por Thiago Couto
Publicado 18 de out. de 2021, 07:00 BRT, Atualizado 18 de out. de 2021, 11:10 BRT
foto de indígena nawee nu em primeiro plano com um rio no segundo plano

Indígena enawene nawe checa a tradicional armadilha para capturar peixes no rio Juruena. Os enawene nawe são um dos povos mais prejudicados pela redução de peixes provocada pelas pequenas hidrelétricas da Amazônia. Eles se viram obrigados a comprar peixes para o Yaokwa, ritual reconhecido como patrimônio cultural imaterial da humanidade pela Unesco.

Foto de Vincent Carelli

Quantas hidrelétricas a Amazônia suporta e quantas delas são realmente necessárias? Essa reflexão é indispensável para garantir a sustentabilidade da floresta amazônica e tem motivado pesquisas científicas que ofereçam respostas claras à sociedade. Do mesmo modo que a geração de energia é absolutamente necessária para abastecer sociedades modernas, os custos econômicos e socioambientais e o potencial poluidor dessa geração não podem ultrapassar os benefícios.

Não faltam exemplos de verdadeiros desastres promovidos por hidrelétricas na Amazônia sob a perspectiva ambiental, social, econômica e ética. Apesar do tema ter avançado muito no debate público nos últimos anos, estranhamente, muito pouco se fala sobre a crescente ameaça das hidrelétricas classificadas como pequenas. Hoje, elas representam 80% das 275 hidrelétricas existentes na bacia amazônica e pelo menos três centenas de projetos desse tipo se encontram em fases de planejamento.

A maior parte delas está na Amazônia andina e nas bacias dos rios Tapajós, Xingu, Madeira, Tocantins e Araguaia – nos estados de Mato Grosso, Goiás, Tocantins e Rondônia. Projetos desse tipo são planejados até mesmo para rios que hoje não contém nenhuma hidrelétrica, como a bacia do rio Purus, no Amazonas. Essa é a força motriz de uma verdadeira proliferação de hidrelétricas pela bacia amazônica.

O mais contraditório dessa história é que a proliferação de pequenas hidrelétricas é um reflexo de políticas de incentivo a fontes mais sustentáveis de energia. Isso porque parte do setor das hidrelétricas passou por um rebranding para se descolar do estigma negativo associado às grandes hidrelétricas e pegar carona nos incentivos. Elas são autointituladas ‘pequenas’ – pelos acrônimos PCH ou CGH, no Brasil – e passaram a se beneficiar de simplificações no processo de licenciamento, subsídios e favorecimentos no preço da energia e financiamento por parte de bancos públicos.

Porém, pesquisas recentes demostram que essa classificação artificial de tamanho não tem respaldo na realidade e os impactos socioambientais das pequenas hidrelétricas podem ser surpreendentemente grandes.

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    Pequenas hidrelétricas na Amazônia
    mapa das pequenas hidrelétricas na amazonia
    mapa das hidrelétricas planejadas na amazonia
    À esquerda: No alto:

    Presente: Círculos vermelhos representam as hidrelétricas em operação na Amazônia. O tamanho é relativo à potência. Usinas com menos de 30 megawatts são consideradas pequenas centrais hidrelétricas (PCH).

    À direita: Acima:

    Futuro: Hidrelétricas em operação e planejadas para a bacia amazônica.

    fotos de Thiago Couto

    Perda de conectividade dos rios e outros impactos críticos

    Em artigo publicado em 2021 na revista Nature Sustainability, eu e meus colaboradores Julian Olden e Mathis Messager da Universidade de Washington, nos Estados Unidos, demonstramos que as pequenas hidrelétricas têm papel fundamental na perda de conectividade dos rios brasileiros, um componente crítico para que os peixes migradores completem seu ciclo de vida.

    Os peixes migradores viajam por centenas ou até milhares de quilômetros para alcançar sítios de reprodução durante as piracemas, o que os torna altamente vulneráveis às hidrelétricas. O número de hidrelétricas classificadas como pequenas é tão grande que seus impactos cumulativos na conectividade dos rios chegam a ser quatro vezes maiores do que os das grandes hidrelétricas. Essa perda de conectividade deve se agravar em 21% no futuro e impactar rios ocupados por pelo menos 120 espécies de peixe migratórios – 14 delas ameaçadas de extinção e 20 delas de alta importância para a pesca comercial e recreativa.

    Os impactos socioambientais causados por pequenas hidrelétricas já são sentidos por comunidades indígenas e ribeirinhas da Amazônia, que dependem diretamente da pesca de espécies migratórias para seu sustento. Por exemplo, a construção de nove pequenas hidrelétricas no alto rio Juruena, afluente do rio Tapajós, estado do Mato Grosso, estão impactando diretamente as vidas de diversos povos indígenas, como os enawene nawes.

    Apesar de nenhuma hidrelétrica ter sido construída dentro da terra indígena enawene, a perda de conectividade dos rios na bacia do Juruena reduziu drasticamente o número de peixes migradores que conseguem subir o rio para se reproduzir. Hoje, a pesca dos enawene nawes está gravemente comprometida por conta das pequenas hidrelétricas que ameaçam a segurança e soberania alimentar dos enawenes e as relações culturais desse povo com a pesca.

    O ritual Yaokwa, por exemplo, envolve cerimônias de pesca coletiva e é reconhecido pelo Iphan e Unesco como patrimônio cultural imaterial da humanidade. Com a escassez de peixes no rio por conta das hidrelétricas, os enawenes estão se vendo obrigados a comprar peixes de piscicultura para a realização do ritual. Porém, essa é uma alternativa de menor valor nutricional e que não repara os danos à cultura enawene.

    Outros exemplos de impactos socioambientais de pequenas hidrelétricas na bacia amazônica incluem a perda de biodiversidade e prejuízos para o turismo e recreação. Vejamos: a pesca recreativa no rio Araguaia é parte fundamental de um mercado que movimenta 17 bilhões de reais por ano e é majoritariamente concentrada em espécies migratórias como pintado, piau, matrinxã, pacu, barbado e pirarara, entre outras. Porém, dezenas de projetos de pequenas hidrelétricas planejados para a bacia do Araguaia podem resultar em reduções populacionais dessas espécies e inviabilizar o mercado turístico da pesca recreativa em vários municípios de Mato Grosso, Tocantins e Goiás.

    Há também o rio Sucuruína, afluente do Juruena no Mato Grosso, mundialmente conhecido por suas águas cristalinas e corredeiras que compõem um dos melhores locais do mundo para a prática de canoagem extrema. Apesar de atrair atletas do mundo todo e margear aldeias indígenas, pelo menos seis pequenas hidrelétricas estão planejadas para o Sucuruína, duas delas em fase avançada de implementação.

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      foto aérea de pequena central hidrelétrica no rio grande do sul

      Pequena central hidrelétrica (PCH) Rondinha, em Santa Catarina. Em todo o Brasil, as PCHs correspondem a 85% das 1.517 hidrelétricas em operação, mas são responsáveis por gerar apenas 7% da hidroeletricidade do país.

      Foto de Thiago Couto

      Mas os benefícios superam todos esses custos?

      Alguns podem argumentar que o Brasil precisa de energia para se desenvolver, o que justificaria esse tipo de tragédia. Porém, a conta não fecha. Demonstramos no artigo da Nature Sustainability que investir em tantas pequenas hidrelétricas trará enormes prejuízos à conectividade dos rios brasileiros sem necessariamente refletir em ganhos expressivos na geração de energia. No Brasil, as pequenas hidrelétricas correspondem a 85% das 1.517 hidrelétricas em operação, mas elas são responsáveis por gerar apenas 7% da hidroeletricidade do país.

      A partir de uma análise de custo-benefício, demonstramos ser possível gerar a mesma quantidade de energia deixando de construir centenas de hidrelétricas, na sua maioria hidrelétricas pequenas e ineficientes. Além disso, é importante enfatizar que a energia gerada pela grande maioria das pequenas hidrelétricas no país não tem a finalidade de abastecer comunidades rurais e sem acesso a eletricidade. A energia é geralmente exportada para outros municípios e estados, seguindo uma perspectiva de mercado e com confiabilidade questionável.

      O contexto atual de crise hídrica expõe as fragilidades de uma política energética pouco diversificada, um problema que tende a se agravar com a crise climática. Coalhar os rios com pequenas hidrelétricas em uma perspectiva de se ter cada vez menos água disponível não é uma estratégia inteligente.

      Assim, é absolutamente necessário que se faça um planejamento estratégico que considere os ganhos e os riscos socioambientais das pequenas hidrelétricas na Amazônia e que esse processo envolva representantes de todos os setores da sociedade que serão afetados. Hoje, o licenciamento ambiental desse tipo de empreendimento ocorre a nível estadual, de forma simplificada e pouco transparente.

      Ademais, o processo de licenciamento foca em projetos individuais, não sendo capaz de avaliar potenciais impactos cumulativos das várias hidrelétricas que são construídas em um mesmo rio. A situação fica ainda mais preocupante ao considerar os rumos recentes da política nacional e os esforços crescentes de simplificar ainda mais o licenciamento ambiental. A exemplo do Projeto de Lei (PL) 3729/2004, recentemente aprovado pela Câmara Federal, que na prática enfraquece ainda mais o processo de licenciamento e consulta prévia das comunidades atingidas para projetos hidrelétricos ditos pequenos.

      O conceito de sustentabilidade das pequenas hidrelétricas precisa ser urgentemente revisto pelo poder público. Para que isso ocorra, a sociedade brasileira precisa reconhecer a gravidade do problema e se posicionar sobre qual futuro queremos para a Amazônia. Afinal, qual a justificativa para tantos projetos hidrelétricos que contribuem tão pouco com a geração de energia do país? Talvez, as respostas para essa pergunta não estejam em quais são os benefícios, mas em quem se beneficia.

      Thiago B. A. Couto é Explorador da National Geographic Society, doutor em ciências aquáticas e da pesca pela Universidade de Washington, e atualmente pesquisador no Instituto de Meio Ambiente da Universidade Internacional da Flórida.

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