Serra Pelada fluvial: corrida do ouro expõe ameaças ao rio Madeira

Barragens, poluição e desmatamento também degradam a biodiversidade e o modo de vida no mais importante tributário da bacia amazônica. Cientistas começam a entender melhor a dimensão de todos esses impactos.

Por Kevin Damasio
fotos de André Dib
Publicado 26 de nov. de 2021, 15:19 BRT
foto de uma pequena balsa extraindo ouro em um rio com floresta ao fundo

Uma draga solitária trabalha no leito do rio Aripuanã, afluente do Madeira. A atividade “revira e ressuspende sedimentos, muda a estrutura do fundo do rio, perturba o ambiente dos peixes e os contamina com mercúrio e metais pesados”, diz o pesquisador Jansen Zuanon.

Foto de André Dib

Desde a lendária jazida de Serra Pelada, no Pará, nos anos 1980, não eram vistas cenas tão impressionantes da corrida do ouro na Amazônia. Na última terça-feira, 24 de novembro, o rio Madeira despertou ocupado por mais de 300 balsas (com estimados 1,8 mil homens a bordo) ancoradas e equipadas com dragas ou escarifuças. Vindos de outras regiões, sobretudo de outras partes do Madeira, os garimpeiros se deslocaram em peso para os municípios de Autazes e Nova Olinda do Norte, perto da foz no rio Amazonas, tão logo surgiu a notícia de que uma grande quantidade de ouro fora descoberta.

Nesse modelo de mineração ilegal, as dragas revolvem o fundo cheio de sedimentos, sugam o material para filtrar e separar o ouro (com uso de mercúrio) e devolvem a água poluída ao rio. 

“Vocês, que têm muita balsa aí, fazer um paredão mesmo daqueles, esperar todo mundo aí na frente da balsa – um lá atrás, um na frente. Esperar, ver o que dá. Eles vão respeitar, entendeu?”, disse um garimpeiro em um áudio obtido pelo Estado de São Paulo no início da semana. Segundo o jornal, as balsas já começaram a se dispersar.

Assim que identificou a invasão das balsas, o Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam), órgão estadual, comunicou o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) para alinhar providências. O Ipaam destacou, em nota, que o rio Madeira compete aos órgãos federais, já que corta os estados de Rondônia e Amazonas, e que a regulamentação da atividade mineradora na área deve ser feita pela Agência Nacional de Mineração. O licenciamento ambiental, por sua vez, é de responsabilidade do Ibama, enquanto atividades criminosas de extração ilegal de minério devem ser combatidas pela Polícia Federal. Já a Marinha está encarregada de monitorar a trafegabilidade e a poluição hídrica.

“Pelo porte da ‘invasão garimpeira’, a repressão eficiente da atividade exige, necessariamente, esforços coordenados de agências governamentais diversas, cada qual dentro de suas atribuições”, recomendou o Ministério Público Federal.

Enquanto o imbróglio burocrático não é resolvido, os garimpeiros ilegais continuam embarcados, dragando como podem o solo cheio de sedimentos do fundo do Madeira em busca do metal precioso. É uma prática clandestina realizada em plena luz do dia, sem que providência alguma tenha sido tomada por autoridades públicas. 

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    Mais de 300 balsas (com estimados 1,8 mil homens a bordo) equipadas com dragas para extração de ouro ancoraram no rio Madeira na última terça-feira, 24 de novembro. Diante da grande repercussão das imagens, que rodaram o mundo, os garimpeiros começaram a se dispersar na tarde de sexta-feira, dia 26.

    Foto de Bruno Kelly, Greenpeace

    Mineração: uma entre muitas ameaças ao rio

    Em seu curso de mais de 3 mil km desde a nascente, no norte da Bolívia, o Madeira recebe afluentes de água preta (de muita matéria orgânica) e de água branca (carregada de sedimentos e rica em nutrientes). Ao cair na planície amazônica, já no Brasil, ele serpenteia até enfim desaguar no Amazonas, com pulsos de inundações regulares e irrigando amplas e férteis áreas de florestas de várzea. 

    Sua área de influência cobre 1,42 milhão de km2 em três países e compreende cerca de 20% da área da bacia hidrográfica amazônica, a maior do planeta. Dentre todos os tributários do rio Amazonas, nenhum contribui com carga de sedimentos maior do que o rio Madeira. 

    Essa jornada de águas que funde países, bacias e ecossistemas diversos faz do Madeira um rio estratégico para o equilíbrio do sistema hidrológico e das cadeias tróficas que garantem a espetacular biodiversidade dessa porção do território sul-americano. 

    “O Madeira tem a bacia mais heterogênea entre todos os tributários do Amazonas. Isso faz com que a fauna local varie bastante”, observa Jansen Zuanon, biólogo e pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). “Peixes migradores levam nutrientes e biomassa ao longo do sistema e controlam populações de outras espécies. Fazem uma conexão para todo o sistema aquático.” 

    Os cientistas convergem ao classificar as águas da bacia do Madeira como as mais biodiversas da floresta tropical. Nela, vivem 1.373 espécies de peixes, 60,59% da ictiofauna amazônica. “Pode passar de 1.500, na medida em que consigamos amostrar os pequenos afluentes”, diz Zuanon, representante do Inpa no Amazon Fish, consórcio internacional formado por importantes instituições que estudam o bioma. 

    Tamanha importância hidrográfica e biológica não evitou que o Madeira vivesse décadas de impactos decorrentes de atividades humanas. Segundo Zuanon, que trabalhou pela primeira vez no rio em 1983, as maiores pressões são o garimpo, o desmatamento, a sobrepesca e as hidrelétricas.

    Na porção brasileira da bacia do Madeira, 142.420,89 km2 foram desmatados até 2020, segundo um levantamento exclusivo feito pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), a pedido da reportagem. A área de vegetação suprimida equivale à do estado do Amapá. De 2008 a 2020, um total de 24,25% do desmatamento na Amazônia Legal ocorreu na bacia do Madeira.

     

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        Toras sendo transportadas pela BR-364: na porção brasileira da bacia do Madeira, 142.420,89 km2 foram desmatados até 2020, segundo um levantamento exclusivo feito pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), a pedido da reportagem. A área de vegetação suprimida equivale à do estado do Amapá.

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        Usina hidrelétrica de Santo Antônio, a 7 km de Porto Velho, capital de Rondônia. As barragens no Madeira mudam o ciclo hidrológico e o regime de migração de muitas espécies de peixe, alterações que começam a ser melhor entendidas pelos pesquisadores.

        fotos de André Dib

        Barragens afetam ciclo hidrológico 

        Grandes usinas hidrelétricas foram inauguradas neste século no Madeira, com destaque para Santo Antônio (a quinta maior do país, a apenas 7 km do centro de Porto Velho, capital de Rondônia) e a de Jirau. Os efeitos do barramento das águas têm sido estudados. Na região de Humaitá, no Amazonas, padrões irregulares de reprodução e redução no tamanho dos peixes se devem aos pulsos hídricos diários que foram afetados pelas usinas rio acima. Pescadores capturam peixes com os olhos estufados, uma doença chamada exoftalmia, que ocorre quando o peixe se choca com uma estrutura de concreto – ao tentar transpor, por exemplo, uma barragem. 

        Outro problema é a grande acumulação de sedimentos para baixo das hidrelétricas. A quantidade de balsas de extração de ouro no rio Madeira aumentou em virtude dessa alta carga de sedimentos agora depositados. 

        Raimundo Nonato, de 50 anos, que passou a vida toda no Puruzinho, um dos lagos situados na região de Humaitá, no sul do Amazonas, é uma vítima de alterações após a construção das hidrelétricas, “que prejudicou a atividade pesqueira”, diz ele. 

        No Puruzinho, os ribeirinhos dividem-se em três atividades principais: o plantio, para subsistência; a pesca, tanto comercial como para consumo próprio; e a coleta dos frutos da natureza, como açaí e castanha. Nonato administra a Associação de Desenvolvimento do Lago Puruzinho (Adelp), vinculada à Colônia dos Pescadores Z1. “A gente pesca por que gosta. Com a despesa que tem hoje, é muito difícil sobreviver da pesca. O peixe sumiu”, reclama Nonato. “Antes, por mês, um só pescador conseguia buscar uma tonelada de pescado. Hoje, não pega nem 300 quilos. O gelo está caro, a gasolina está cara.” 

        Na visão do morador, o peixe mais afetado foi o pacu, por conta da aparência – “uns feios, secos, olho meio branco”. A jatuarana, por sua vez, costumava migrar para o rio para se reproduzir, mas desapareceu do Puruzinho, assim como o surubim e o pirarucu. “O tambaqui nem se fala mais. Pegar um é como acertar na loteria”, complementa o ribeirinho.

        Garimpos de ouro invadem os limites da Floresta Nacional do Jamari, em Itapuã do Oeste, Rondônia. Contaminado por mercúrio, o rio do Peixe avança moribundo em limites desmatados da reserva.

        Foto de André Dib

        A tentação do garimpo – e o perigo do mercúrio

        Com a escassez de peixes, parte considerável dos pescadores do Puruzinho migrou para o garimpo ilegal no Madeira. A tendência de abandono da pesca ocorre desde 2013. Nonato, por sua vez, não cedeu à tentação garimpeira e segue na atividade tradicional.

        “O garimpo dá mais lucro. Mas a gente vê muitos problemas nas pessoas”, diz Nonato. “Tenho um irmão que, quando olho para a mão dele, fico até com medo. As unhas ficam quase em carne viva. Todo mundo diz que é por conta do azougue. A maioria do povo hoje quer trabalhar só clandestino. Próximo da nossa região não tem nada legalizado de garimpo.” 

        A mineração no leito do Madeira ocorreu massivamente nos anos 1970 e 1980, com grandes quantidades de mercúrio lançadas na bacia. Em meados dos anos 1990, houve um declínio da lavra de ouro decorrente da situação econômica do país e da baixa no preço do minério. A atividade foi proibida por um decreto estadual em 1991, mas desde então sucessivos governos tentam regularizá-la. 

        Em janeiro de 2021, o governador de Rondônia, coronel Marcos Rocha (sem partido), criou uma legislação para regulamentar a lavra de ouro nos rios do estado e anular o decreto proibitivo. Em ação direta inconstitucional movida pelo partido Rede Sustentabilidade, o ministro do STF Alexandre de Moraes suspendeu os efeitos da lei em 19 de fevereiro, por entrar em conflito com a preservação ambiental e pela competência por determinada decisão ser da União, e não do estado. 

        Apesar da proibição vigente, o garimpo segue no Madeira em volume e intensidade, “principalmente o de ouro com balsas e dragas”, diz Jansen Zuanon. A atividade “revira e ressuspende sedimentos, muda a estrutura do fundo do rio, perturba o ambiente dos peixes e os contamina com mercúrio e metais pesados”. 

        Para o pesquisador, não há um monitoramento regular sobre os impactos do garimpo na bacia do Madeira. Hoje, a situação é acompanhada apenas por grupos de pesquisadores independentes, como a Fundação Oswaldo Cruz e a Universidade Federal de Rondônia (UNIR). 

        Wanderley Bastos, biólogo e coordenador do Laboratório de Biogeoquímica Ambiental da UNIR, estuda o mercúrio no rio Madeira desde o final dos anos 1980. Em um artigo de 2004, Bastos e outros pesquisadores constataram que, apesar da redução do garimpo nos anos 1990 em comparação às duas décadas anteriores, “as quantidades de mercúrio lançadas na bacia do Madeira, nas décadas de 1970 e 1980, ainda permanecem distribuídas em diferentes compartimentos abióticos e/ou bióticos, passíveis de remobilização e incorporação biológica”. 

        Esta conclusão foi obtida a partir da análise das concentrações do metal em peixes e seres humanos. Quando iniciou suas pesquisas, os valores médios eram um pouco superiores. Segundo Bastos, a leve queda se deve à diminuição de lançamentos de mercúrio pelo garimpo. Nos peixes, por outro lado, os níveis mantiveram-se altos. 

        O fator mais preocupante do mercúrio no Madeira não é a contaminação da água, mas da fauna aquática, afirma Bastos. Esse metal líquido passa por dois fenômenos: a bioacumulação, que é a capacidade de um organismo acumular determinada substância, e a biomagnificação, o potencial da quantidade da substância aumentar conforme avança no nível trófico. 

        “Na medida em que pequenas bactérias conseguem maquinar e produzir esse metilmercúrio, ele rapidamente incorpora no gradiente da biota, desde a base da cadeia alimentar, nos organismos que vivem dos sedimentos, os organismos bentônicos, no fitoplâncton, no zooplâncton”, explica Bastos. Quanto mais elevada for a espécie na cadeia trófica, maior é a quantidade identificada de metilmercúrio (MeHG). 

        A população amazônica está entre as que mais consomem peixe no mundo. “Interagimos muito com as comunidades ribeirinhas para explicar essa dinâmica do mercúrio”, observa Bastos. “Temos orientado que se evite o consumo de espécies do topo da cadeia, os grandes bagres da Amazônia, como a dourada e a piramutaba. Alguns indivíduos dessas espécies ultrapassam a média que a Anvisa preconiza”, observa o cientista. 

        A Agência Nacional de Vigilância Sanitária estabelece um limite seguro de 1 mg/kg de mercúrio nos peixes predadores e 0,5 mg/kg nas demais espécies de peixes, moluscos e crustáceos. 

        Um estudo de Bastos publicado em 2015 monitorou a concentração de mercúrio em 84 espécies de peixes no Madeira em um período de dez anos. Os pesquisadores identificaram que as maiores concentrações médias de mercúrio total estão nos peixes piscívoros e carnívoros. As espécies planctívoras e onívoras apresentaram médias moderadas; já as detritívoras e herbívoras registraram a menor concentração média. 

        Ao investigar a dinâmica do elemento químico em diversos tipos de ambientes, Bastos constatou uma variabilidade das concentrações de mercúrio em função da sazonalidade amazônica. “O rio pode subir 10 ou 14 metros em um ano, na flutuação de períodos de chuvas. Isso não acontece em nenhum outro canto do mundo. Em 2014, a maior cheia já registrada no Madeira também deu uma resposta nos resultados do mercúrio [nos peixes]. E vimos isso na água, mas os valores são baixos.” 

        Segundo Bastos, a literatura científica registra que as hidrelétricas potencializam a condição de metilação, ao modificar as características do rio. Trata-se do processo de transformação do mercúrio inorgânico (Hg) para sua forma orgânica e mais tóxica, o metilmercúrio (MeHg). 

        Entretanto, o Madeira tem dado “uma resposta surpreendente com relação às usinas”, após quase 10 anos de operação. O biólogo afirma que o nível de mercúrio nos peixes ainda é controlado pela sazonalidade e sua presença deve-se mais ao garimpo. “Quando chove, o rio enche e os níveis de mercúrio aumentam e estabilizam. Quando baixa, voltam a diminuir.” 

        “Os estudos passados com relação às áreas com represamento mostravam que, ao construir hidrelétrica, os níveis de mercúrio aumentam na água. E isso não está acontecendo no Madeira”, diz Bastos. Ele atribui o fato ao tipo de usina hidrelétrica implementada, de fio d’água, bem como a característica natural do Madeira, de água branca, ambiente menos efetivo para a metilação. 

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          Os rios Guariba e Aripuanã, parte da bacia do Madeira, se encontram no sul do Amazonas. A área de influência do Madeira ocupa 1,42 milhão de km2 em três países e compreende cerca de 20% da área da bacia hidrográfica amazônica.

          Foto de André Dib
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          A ponte do Abunã atravessa o rio Madeira perto de Porto Velho, capital de Rondônia. A obra levou sete anos para ser concluída e facilita o acesso ao Acre, antes feito por balsas.

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          Uma ponte abandonada da antiga Madeira-Mamoré, a “ferrovia do diabo”. A obra do início do século passado serviria para escoar a borracha dos seringais, mas revelou-se um erro de engenharia e um drama. Milhares de operários morreram vítimas da malária – um épico erro humano, mais um, na história das tentativas de ocupar a Amazônia.

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          Um morador avança em sua canoa na Reserva Extrativista Lago do Cuniã, em Rondônia. Esse modelo de ocupação territorial é bem-sucedido em diversas partes da Amazônia. No Cuniã, os comunitários produzem, entre outros itens, a farinha de mandioca, o açaí e a castanha.

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          Um morador exibe castanhas-do-brasil, que serão processadas para venda. A atividade ajuda a amenizar a situação financeira de muitas comunidades afetadas pela queda dos estoques de peixe nos rios.

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          Estudos sobre o mercúrio no lago Puruzinho

          Em 2000, Bastos decidiu buscar um lugar mais isolado onde pudesse estar com frequência e monitorar a longo prazo. Estava atrás de um lago de água preta, que fornecia as condições físico-químicas ideais para ocorrer a metilação do mercúrio – “um ambiente mais anóxico, com menos oxigênio e pH mais baixo”. 

          Saiu de Porto Velho, onde mora, e foi para uma zona de pescadores em Humaitá, região amazônica cheia de lagos, por onde se distribuem povos ribeirinhos e indígenas. De lá foi levado até o lago Puruzinho, onde vivem 31 famílias ribeirinhas, de 150 a 180 pessoas. A princípio, o pesquisador preocupava-se mais com os níveis de mercúrio na água, no sedimento e nos peixes, mas logo os estudos também se voltaram para os moradores. 

          A população e o lago estão mapeados e já foram coletadas e analisadas mais de 8 mil amostras de peixes. A Universidade Federal de Rondônia adquiriu os equipamentos necessários, como redes de pesca e freezer, para que pescadores os auxiliassem na coleta. Remunerados pelo trabalho, os ribeirinhos pescam e realizam a biometria: medem, pesam, identificam a espécie e o gênero do peixe. A cada três meses, Bastos visita a comunidade e recolhe as amostras, para analisá-las e monitorá-las no laboratório. Depois, os ribeirinhos do Puruzinho são informados sobre os resultados. 

          Raimundo Nonato considera a relação com os pesquisadores uma “jornada longa e bonita”, porque trouxe conhecimento científico para a comunidade sobre os potenciais riscos de enfermidades, seja por peixes contaminados, seja pela malária. Os ribeirinhos do Puruzinho nem imaginavam que os peixes poderiam estar contaminados com mercúrio. 

          “Eles começaram a entrar e abrir nossas memórias. Trazer o conhecimento até nós, porque outras pessoas jamais se aproximaram para falar o que poderia estar acontecendo e trazer uma resposta”, conta Nonato. “A gente sabe muito bem que o peixe que se alimenta de outro já sofre esse impacto. O peixe pequeno se contamina, o grande come ele e fica contaminado da mesma forma.” 

          Bastos afirma que nunca houve registro de mortandade ou alteração no comportamento e no crescimento dos peixes no Puruzinho, como reflexo da contaminação por metilmercúrio. “O peixe tem boa resistência. Ainda não conseguimos ver nenhum comprometimento nas espécies que pudesse ter relação com nível de mercúrio. Nossa preocupação é com a ingestão pelas populações que mais as consomem”, diz. “A maior parte das espécies que se destacam com níveis mais altos são as que têm maior valor comercial - os grandes bagres, os tucunarés. Em regra, os moradores já nem comiam essas espécies. Eles comem as que são de valor comercial mais baixo, as espécies detritívoras, que estão em um baixo nível trófico.” 

          Os ribeirinhos consumiam bastante o tucunaré e o surubim (pintado), até saberem que essas espécies apresentam níveis de mercúrio acima do recomendado. Agora, alimentam-se mais dos peixes de escama, como pacu, jaraqui, jatuarana e sardinha. Consomem poucos peixes de couro, como o curimatã, o tambaqui, a piraputanga e o pirarucu, pois já estão mais escassos na região.

          A Organização Mundial da Saúde (OMS) estabelece como limite seguro de mercúrio no sangue 10 microgramas (μg)/L. Neste ano, Bastos e Vanessa Mendes, professora no Departamento de Enfermagem e integrante do Laboratório de Biogeoquímica Ambiental da UNIR, publicaram uma análise dos níveis de mercúrio em ribeirinhas das comunidades do lago Puruzinho e de São Sebastião do Tapuru, em Humaitá. O artigo saiu em maio no Journal of Trace Elements in Medicine and Biology.

          Amostras de sangue de mulheres com idade fértil chamaram a atenção. No lago Puruzinho, as concentrações de mercúrio total (THg) foram de duas a quatro vezes a mais do que o valor preconizado pela OMS, enquanto em São Sebastião do Tapuru chegaram a 2,5 vezes acima do limite seguro. A média de consumo de peixes, com base nas concentrações de mercúrio na amostra de cabelo, foi de 94,5 a 212,3 gramas por litro.

          O mercúrio representa múltiplos riscos à saúde humana, como alterações no sistema nervoso central e complicações renais, cardíacas e no sistema reprodutor. Concentrações acima do limite em gestantes podem resultar na malformação dos bebês.

          Em 20 anos de estudo, Bastos não identificou adoecimento por mercúrio no Puruzinho. “Nunca conseguimos ver efeitos neurocomportamentais nessa população. Os níveis deles são muito mais altos do que preconiza a OMS como valor limite. Sempre foram. Temos acompanhado isso, tentado relacionar com algum efeito na saúde.” Um dos fatores para tal é a informação que os ribeirinhos recebem, a partir do monitoramento dos níveis de mercúrio nos peixes e alertas para evitar o consumo de determinadas espécies. O cientista busca apoio da Secretaria de Saúde de Rondônia para replicar este modelo em outras comunidades. 

          Por outro lado, Bastos e outros cientistas investigam se o selênio, abundante na dieta local, tem relação com o fato de os ribeirinhos do Puruzinho não adoecerem por metilmercúrio. A equipe de Bastos realiza um levantamento do consumo de selênio na comunidade, via frutas, peixe e farinha de mandioca.

          “O solo amazônico é rico em ferro. O ferro tem uma associação com o selênio. O selênio entra na vegetação via solo. Um dos frutos amazônicos com a maior concentração de selênio é a castanha-do-Brasil”, explica o cientista. “Em experimentos de laboratório, já foi comprovado esse antagonismo químico. Em uma reação química, o selênio não deixa esse metilmercúrio seguir seu caminho e causar dano na célula nervosa. Mas precisamos fazer os testes e entender.”

          Outro fator consiste na mudança de hábitos alimentares no Puruzinho, sobretudo entre as novas gerações. Duas décadas atrás, os moradores iam para a cidade mais próxima, Humaitá, a cada seis meses. Só dispunham de barco a remo, em uma viagem que levava de seis a oito horas. Com barco a motor, agora conseguem ir para a cidade toda semana: a comunidade, antes isolada, tornou-se periurbana.

          “No Puruzinho, temos observado que os níveis de mercúrio na população vêm decaindo aos poucos. Mas não é porque os níveis estão diminuindo nos peixes”, observa Bastos. A proximidade com a cidade fez com que os moradores diminuíssem o pescado como fonte de proteína em sua dieta. Na população acima de 40 anos, os níveis são pouco sensíveis à baixa. Nas crianças vem baixando bastante, porque mudaram mais os hábitos do que os adultos.” 

          “Como era muito difícil ir para a cidade, a gente se alimentava mais dos alimentos da própria região – o peixe, a carne dos bichos do mato. E plantava roça, fazia tapioca, farinha seca, biju”, conta Nonato. “Mas, depois, tudo foi mudando. Passamos a comer mais alimentos da cidade do que da própria região. Meus filhos só querem comer ovo e salsicha. Por isso temos agora mais problemas de saúde”. 

          As mudanças na vida de Nonato ilustram uma realidade concreta e difícil. O futuro incerto é o mesmo nas terras indígenas, nas áreas de proteção ou nas águas ao longo da bacia amazônica, a cada dia mais pressionadas por atividades ilegais. O exército de garimpeiros invasores do Madeira é apenas o retrato da vez, espalhafatoso e assustador, de uma Amazônia que carece de estratégias de desenvolvimento e conservação, mas que por ora apenas grita por socorro.

          *Edição de Ronaldo Ribeiro

          Esta reportagem foi produzida pela Ambiental Media com apoio do Instituto Serrapilheira e faz parte do projeto especial Aquazônia.

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