Atacama: como o majestoso deserto virou um local de descarte de roupas

Algumas das marcas favoritas do mundo estão em pilhas de lixo no deserto chileno, e as montanhas de roupa só aumentam.

Por John Bartlett
Publicado 12 de abr. de 2023, 12:58 BRT
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Francisco Angel, 24 anos, procura em uma montanha de roupas descartadas no deserto chileno do Atacama por marcas que lhe tragam melhores preços em um mercado de pulgas local. Toda semana, remessas de roupas usadas e novas chegam à cidade vizinha de Iquique. As sobras acabam aqui, no deserto mais seco do mundo.

Foto de Tamara Merino National Geographic

Deserto do Atacama, no norte do Chile, se estende do Pacífico aos Andes através de uma vasta extensão de espetaculares cânions e picos rochosos vermelho-alaranjados. É o deserto mais seco da Terra e muito parecido com a superfície de Marte.

Atualmente, o Atacama alcançou uma distinção menos maravilhosa: é uma das áreas de descarte de roupas que mais cresce no mundo, graças à rápida produção em massa de roupas baratas e elegantes, conhecidas como fast fashion (moda rápida) ou moda de baixo custo. O fenômeno tem gerado tanto desperdício que as Nações Unidas o chamam de "emergência ambiental e social" para o planeta. O desafio à nossa frente é pôr um fim a este desperdício.

Os números dizem tudo. Entre 2000 e 2014, a produção de roupas dobrou, e os consumidores começaram a comprar 60% mais roupas e a usá-las pela metade do tempo anterior. Hoje, três quintos de todas as roupas produzidas em um ano acabam em aterros ou incineradoras, uma estatística que se traduz em um caminhão carregado de roupas usadas sendo jogadas fora ou queimadas a cada segundo. 

A maioria dessas instalações fica no sul da Ásia ou na África, onde os países que recebem essas cargas não conseguem lidar com a quantidade. Um aterro sanitário na periferia de Accra, capital de Gana, com 60% de roupas e uma altura de 15 metros, ganhou notoriedade internacional como um símbolo da crise.

Uma mulher vende chá medicinal em um carrinho móvel em La Quebradilla, um mercado ao ar livre na cidade de Alto Hospicio. Comerciantes locais, a maioria de baixa renda, pagam 20 dólares por fardos contendo cerca de 600 quilos de roupas usadas. As roupas são vendidas nos mercados locais a preços que variam de 12 centavos de dólar a 2 dólares, cada peça.

Foto de Tamara Merino National Geographic

Araceli Albina Zapata Cornejo (44), Teresa Saavedra Cordero (32) e María Belen Valdebenito Cavalieri (27) classificam as roupas de acordo com a cor, textura e material. Em seguida, elas separam os tecidos em categorias. Alguns serão transformados em fios e outros serão decompostos para serem usados como enchimento em móveis ou almofadas.

Foto de Tamara Merino National Geographic

A cena no norte do Chile foi apelidada em um vídeo online de "a grande mancha de lixo da moda", em uma variação do mais conhecido Great Pacific Garbage Patch. Colossais pilhas de roupas descartadas, com etiquetas de todo o mundo, estendem-se até onde os olhos podem ver na periferia de Alto Hospicio, uma cidade pobre de 130 mil habitantes. 

Em um barranco, uma pilha de jeans manchados de tinta e ternos branqueados pelo sol forte, se eleva sobre uma pilha de casacos de pele falsa e camisas formais, com etiquetas de preço ainda presas. Garrafas, sacos e outros lixos estão misturados.

"Fiquei chocado ao pensar que estávamos nos tornando o lixão têxtil dos países desenvolvidos", diz Franklin Zepeda, natural do norte do Chile e diretor de uma consultoria de sustentabilidade chamada Con100cia Circular, que aconselha as empresas sobre como adotar práticas de economia circular que minimizem o desperdício.

Como as roupas foram parar no deserto

Se um deserto isolado longe dos centros populacionais do Chile (que estão a 1600 quilômetros ao sul) parece um destino improvável para descartes rápidos de roupas, tal fato está relacionado com outro: o país abriga um dos maiores portos livres de impostos da América do Sul, localizado na cidade costeira de Iquique, no extremo oeste do deserto. Milhões de toneladas de roupas chegam todos os anos da Europa, da Ásia e das Américas. No ano passado, foram 44 milhões de toneladas, de acordo com estatísticas alfandegárias chilenas.

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     Juan Rosales Mora, 72 anos, é o responsável pela coleta da mistura de roupas recicladas que foram trituradas por máquinas industriais na fábrica da Ecocitex, em Santiago do Chile. Esta mistura, chamada velo têxtil, é então convertida em fios de cores específicas, sem o uso de água ou corantes.

    Foto de Tamara Merino National Geographic

    Transito Chicahual Pichihuinca (74) organiza o fio após convertê-lo em algo parecido com algodão doce e cortá-lo em tiras. As tiras são processadas através de outra máquina que as converte em fios fortes e acabados.

    Foto de Tamara Merino National Geographic

    Juan Rosales Mora, 72 anos, é responsável pela coleta da mistura de roupas recicladas, chamadas velo têxtil, que antes eram selecionadas por cor manualmente, e depois cortadas e trituradas por máquinas industriais. Este velo têxtil é então convertido em fios de cores específicas, sem o uso de água ou corantes. Juan trabalha na fábrica da Ecocitex desde 2021, embora já estivesse trabalhando na mesma fábrica fazendo lã desde 1989. Segunda-feira, 16 de maio. 2022. Santiago, Chile. Tamara Merino para a National Geographic.

    Foto de Tamara Merino National Geographic

    Os portos livres de impostos são projetados para incentivar a atividade econômica, já que as mercadorias são importadas e frequentemente reexportadas sem os impostos e taxas usuais. O porto foi estabelecido em Iquique em 1975 para ajudar a gerar empregos e melhorar uma economia local em dificuldade. 

    O Chile se tornou um dos maiores importadores mundiais de roupas de segunda mão, e Iquique foi transformada. À medida que a moda se desenvolveu, o mesmo aconteceu com as importações. "A zona de livre comércio foi uma verdadeira revolução para os habitantes da cidade", diz Bernardo Guerrero, sociólogo da Fundación Crear, uma organização que estuda a história e a cultura da cidade. "De repente, eles tiveram acesso a coisas que nunca poderiam imaginar, como um carro próprio. 

    As roupas começaram a fluir como ondas, para dentro e para fora de Iquique, à medida que a moda global mudava. Guerrero lembra de uma época nos anos 1990, quando quase todos na cidade usavam o mesmo estilo de jaqueta, depois que os carregamentos deles chegaram em massa. Foi um sinal do que estava por vir.

     Manuela Medina, 70 anos, e seu filho Alexis Carreo, 49, procuram, em uma montanha de roupas usadas no deserto do Atacama, artigos para o negócio deles.

    Foto de Tamara Merino National Geographic

    Hoje, cerca de 2 mil empresas de todos os tipos operam na zona franca: 57% são estrangeiras. Logotipos de marcas pintados à mão enfeitam as altas portas dos armazéns, além de pilhas de carros usados (outra grande importação) nas ruas estreitas. A zona franca também se tornou um depósito de triagem para os resíduos têxteis do mundo.

    "Em essência, estamos reciclando as roupas do mundo", diz Mehmet Yildiz, que veio ao Chile de sua Turquia natal há duas décadas e dirige uma empresa de importação de roupas chamada Dilara. Yildiz traz roupas pré-selecionadas dos Estados Unidos e da Europa, em sua maioria provenientes de lojas econômicas como a Goodwill. Uma vez em Iquique, uma equipe de trabalhadores os separa em quatro categorias, que vão desde a melhor até a pior qualidade. As melhores peças de vestuário são exportadas para a República Dominicana, Panamá, Ásia, África e até mesmo de volta aos Estados Unidos para revenda.

    Do importado ao rebuscado

    As roupas que são descartadas pelos importadores acabam nas mãos de caminhoneiros, que as transportam por alguns quilômetros até a periferia de Alto Hospicio, onde passam por outro ciclo de triagem e revenda em pequenas lojas e mercados de pulgas, ou em La Quebradilla, um dos maiores mercados ao ar livre do Chile.

    Lá, em uma faixa de 800 metros de comprimento com mais de 7 mil barracas, há um intenso comércio de roupas usadas, incluindo camisetas desbotadas comemorando o torneio de golfe US Open 2001, um casaco de polícia do distrito do Texas e um boné de lã com a logo de uma universidade californiana.

    Vista aérea dos barcos de pesca ancorados perto do porto livre de Iquique, na costa norte do Chile. O porto, estabelecido em 1975 para impulsionar a economia local, é hoje um dos maiores portos francos da América do Sul.

    Foto de Tamara Merino National Geographic

    O que não é vendido no mercado acaba no deserto, onde permanece imperecível, pois grande parte do descarte é de materiais sintéticos que não são biodegradáveis. Alguns catadores recuperam o que podem. Em uma tarde fria, uma mulher sem teto chamada Gênesis peneira através de uma eclética pilha de roupa formal, uniformes de enfermeiras, roupa íntima e cobertores para noites frias, e destina as melhores roupas para venda em La Quebradilla, onde podem custar um punhado de moedas.

    "Tudo funciona para mim", ela ri, enquanto se imagina com um vestido de verão estampado de morango, novinho em folha. "Temos sorte de ter encontrado isto".

    Responsabilizar os produtores é uma solução testada e comprovada

    Por mais úteis que os mercados de revenda tenham sido, eles foram esmagados pela escala dos descartes crescentes. Hoje, novos esforços, grandes e pequenos, estão sendo feitos para combater o desperdício de roupas, e a atenção dada à desordem do deserto pode inspirar outros projetos.

    Duas crianças examinam uma saia desfeita para venda em La Quebradilla. O local é um dos maiores mercados ao ar livre do Chile e movimenta um intenso comércio de roupas usadas ao longo de uma faixa de 800 metros, com mais de 7 mil barracas.

    Foto de Tamara Merino National Geographic
    À esquerda: No alto:

    Como se as pilhas de roupas empilhadas não fossem suficientemente prejudiciais, elas ocasionalmente são incendiadas, resultando em nuvens negras de fumaça tóxica.

    À direita: Acima:

    Restos de calças queimadas em uma das fogueiras se espalham pelo chão do deserto.

    fotos de Tamara Merino National Geographic

    Em 2018, Franklin fundou uma empresa chamada EcoFibra, que fabrica painéis de isolamento doméstico a partir de resíduos têxteis. "Eu estava motivado pela ideia de que havia uma enorme quantidade de resíduos que podiam ser perfeitamente transformados em matéria-prima para fazer novos produtos, reduzindo a quantidade de roupas em nosso deserto", conta. Até agora, os painéis EcoFibras foram usados em mais de 100 casas no norte do Chile.

    Manuela Medina, 70 anos, é uma das pioneiras no comércio de roupas usadas em Alto Hospicio, uma cidade de 130 mil habitantes. Há quase duas décadas, ela comprou um pacote de roupas usadas e deu início ao negócio. Hoje ele vive em uma casa de madeira perto do crescente acúmulo de roupas descartadas.

    Foto de Tamara Merino National Geographic

    Com sede em Santiago do Chile, a Ecocitex converte roupas usadas em fios de vestuário, incluindo lã sintética, que podem ser usados para fazer roupas novas. "Nossa missão é eliminar os resíduos têxteis no Chile", diz Rosario Hevia, proprietária da Ecocitex. "Fiquei muito zangada por não haver solução, por isso me dediquei a resolver o problema".

    Em Iquique, a empresa que administra a zona franca apoia programas de reciclagem, e Dilara, a importadora de roupas, planeja abrir uma fábrica de reciclagem este ano para fazer enchimentos de almofadas de sofá a partir das roupas usadas descartadas para a venda.

    Estes são pequenos, mas importantes passos. A solução mais promissora (e uma que pode abordar a escala do problema do desperdício) está nas mãos do governo chileno. O Banco Mundial prevê que até 2050, 3,4 bilhões de toneladas de resíduos serão geradas a cada ano no local.

    À medida que os resíduos de todos os tipos se acumulam, cada vez mais países estão aprovando leis que exigem que os fabricantes assumam a responsabilidade financeira por seus produtos no final de sua vida útil. Leis conhecidas como Lei de Responsabilidade do Produtor Estendida (EPR, na sigla em inglês) foram aprovadas na Índia, Austrália, Japão, Canadá e em alguns estados dos EUA.

    Gênesis, 27 anos, sem-teto, vasculhando pilhas de roupas, cobertores e outros itens que ela pode usar ou vender. Os melhores achados são de marcas conhecidas e com etiquetas.

    Foto de Tamara Merino National Geographic

    Em 2016, o Chile aprovou sua versão da EPR. A norma responsabiliza produtores e importadores por seis categorias de resíduos, incluindo óleos lubrificantes, eletrônicos, baterias e pequenas baterias, embalagens e pneus. Os têxteis não foram incluídos.

    Tomás Saieg, que dirige o escritório de economia circular do Ministério do Meio Ambiente do Chile, diz que uma equipe está trabalhando para acrescentar mais três tipos de produtos à Lei EPR, incluindo os têxteis.

    "O mais importante é fechar a torneira, por assim dizer, para que estas roupas não continuem terminando no deserto". Transformar o Chile de um ferro-velho em um centro de reciclagem seria o sonho, mas primeiro temos que adicionar os têxteis à Lei EPR", conclui.

    Vista aérea de uma montanha de roupas usadas no deserto, o último lugar de descanso dos últimos modelos da moda rápida e barata. Grande parte das roupas desta pilha é feita de materiais sintéticos que não se biodegradam.

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