Primeira nação autônoma na Amazônia, os wampís encaram as mudanças climáticas

Com território e governo independentes no Peru, os wampís também enfrentam madeireiros e garimpeiros ilegais, além do êxodo de jovens para as grandes cidades.

Por Marcio Pimenta
Publicado 27 de fev. de 2019, 12:51 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
Foto de Marcio Pimenta

Esta reportagem foi patrocinada pelo Pulitzer Center

Quando, em 1541, o explorador espanhol Francisco de Orellana partiu em busca de especiarias, seduzido principalmente pelo sonho do El Dorado, ele não poderia saber que sua viagem o levaria às curvas do maior rio do mundo. Entre os diversos perigos enfrentados pela expedição, o grupo teria perdido um confronto para as índias icamiabas, que dominavam o rio. Ao saber do fato, o rei espanhol Carlos V batizou, em homenagem a essas mulheres guerreiras, o rio de Amazonas. Desde então, inúmeros exploradores, aventureiros e grandes indústrias navegam em suas águas, florestas, histórias e, claro, na busca do ouro.

Os wampís sabem bastante sobre esses visitantes. Essa etnia indígena que vive, há milhares de anos, dispersa na densa floresta, por um território de 1,3 milhões de hectares nos departamentos de Amazonas e Loreto, norte do Peru, cansou de assistir invasores desmatando suas florestas e poluindo os rios com o mercúrio usado para extrair o ouro da terra.

Presidente da primeira nação indígena autônoma da Amazônia fala sobre o passado e o futuro dos wampís
Contrário à monocultura e à extração desregulada dos recursos naturais, Wrays Perez quer deixar um legado ambiental para as gerações futuras.

Mais recentemente, quando a indústria petrolífera também decidiu extrair do território indígena o ouro negro, o conflito se intensificou e alcançou seu ponto alto em 2009 – quando os lotes de petróleo já cobriam quase 70% da Amazônia peruana –, durante o governo do presidente Alan Garcia, que publicou dois decretos para que o poder executivo tivesse total poder na gestão dos recursos naturais. Os decretos, na verdade, tinham o objetivo de facilitar a implementação do Tratado de Livre Comércio entre Peru e Estados Unidos, mas isso atropelou os direitos internacionais, como a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que exige a consulta e participação dos povos indígenas no uso, gestão (inclusive controle de acesso) e conservação de seus territórios. Diversas etnias de seis regiões diferentes da Amazônia, com o apoio da população, formaram um grupo de mais de cinco mil pessoas e bloquearam, por 55 dias, uma estrada que conecta o departamento do Amazonas com os de Loreto, Cajamarca e San Martin, em um ponto conhecido como ‘curva do diabo”, em Bagua. O governo reagiu e o conflito, que ficaria conhecido como “El Baguazo”, deixou 33 mortos (10 indígenas e 23 policiais), saques e destruição de bens públicos por toda a região. Recentemente, em Puerto Galilea, o governo ergueu um monumento para recordar o massacre, homenageando indígenas e moradores.

Os wampís perceberam que somente com uma estrutura organizacional, legal e fortalecida teriam voz para defender não apenas o seu povo, mas o futuro da floresta. Depois de inúmeras reuniões entre seus líderes, finalmente, em 2015, representantes de 27 comunidades wampís, com uma população total de 15 mil pessoas, uniram-se, invocaram o reconhecimento internacional dos direitos dos povos indígenas e criaram a Nação Wampís – um governo territorial autônomo – para defender seu território e seu sustento da crescente pressão das indústrias extrativistas.

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    O nome pelo qual são reconhecidos vem de um peixe conhecido pela velocidade e habilidade de escapar facilmente do inimigo. E agora tornaram-se uma só voz. A partir disso, toda e qualquer atividade econômica em território wampís precisa do seu consentimento. “Seguimos sendo peruanos e assim queremos permanecer. Não queremos independência, mas sim fazer a gestão do nosso território, e contamos com a parceria do governo do Peru”, explica Shámpion Noningo, director técnico do Governo Territorial da Nação Wampis (GTANW).

    Chegar até os Wampís não é tão fácil – quando a estrada acaba, somente é possível chegar navegando. Ainda é cedo e a luz do Sol aparece tímida no horizonte. Elmer Tuesta, condutor e proprietário de um dos barcos que faz o transporte de Santa Maria de Nieva até Puerto Galilea, cidade que marca o início do território wampís, não pode partir enquanto não houver um número mínimo de passageiros interessados em subir o rio Marañón, um dos principais afluentes do Amazonas e de lá encontrar o rio Santiago. Tuesta aborda todas as pessoas que circulam pelo cais na tentativa de convencê-los a viajar. No Amazonas, a regra que triunfa é aquela clássica que diz que se faz o que tem de ser feito. Não demora muito e os esforços de Tuesta são logo recompensados, com o barco cheio de passageiros. Então, ele avança preguiçoso sob a neblina que encobre as árvores da imensa floresta tropical, como um belo vestido branco. A viagem dura 3 horas e nas margens são avistados, aqui e ali, pequenos barcos ancorados com equipamentos para a extração do ouro. Não se nota nenhuma atividade. Temendo uma reação inesperada, Tuesta não ousa se aproximar, mas diz que agora, na estação das chuvas, os mineiros que ainda se arriscam vão buscar ouro em outros territórios até que a estação seca comece e então facilite o caminho até o El Dorado.

    Clovis Perez, irmão do presidente, faz exercícios em casa. “A luta para defender nossos direitos nunca terá fim. É assim que tem que ser.”
    Foto de Marcio Pimenta

    Entre os passageiros há muitos jovens wampís que residem em cidades grandes vestindo camisas de futebol como a do ídolo da seleção peruana, Paolo Guerrero ou de clubes espanhóis, como o Barcelona. “São os wampís urbanos”, diz Shámpion, sem esconder sua decepção pelo fato de os jovens deixarem de lado as tradições milenares. “Essa é a parte mais difícil do processo de autonomia”, segue lamentando, “a sedução do acúmulo de bens”, diz ele. Para tentar atenuar esse problema, os wampís reforçam a necessidade do ensino das tradições nas escolas, e os jovens tem sido constantemente incentivados a participar das reuniões dos grupos de trabalho do governo territorial e a trabalhar na agricultura. É o caso de John Milton, que, depois de morar na cidade, apaixonou-se e casou com uma wampís e decidiu ficar. Ele ainda tenta encontrar seu espaço e alterna suas atividades entre a agricultura e a caça, mas confessa sentir falta da vida urbana. Diferente é o caso de Henery Cuja, que também decidiu voltar após concluir o curso de técnico em enfermagem e agora é o responsável por atendimento básico na comunidade Ayambis. Ele está preocupado sobre como o calor aumenta a cada ano e, com ele, a proliferação de mosquistos Anopheles darlingi (transmissor da malária) e Aedes aegypti (transmissos da febre amarela, dengue, zika e chikungunya).

    Embora sejam elogiáveis as campanhas do governo peruano para conscientizar a população do Amazonas para que adotem ações simples que ajudem a inibir a proliferação dos mosquitos, na selva a história é outra. Com o corte de madeira ilegal, o Sol aquece as lagoas e poças transformando-as em criatórios de mosquitos. Cuja levanta os números do último ano e, segundo ele, somente na comunidade Ayambis, que tem uma população de 250 habitantes, 76 foram contaminados pela malária (foram 3.749 casos em todo o país, sem registros de morte), e algumas destas pela Malária falciparum, a mais perigosa por se multiplicar rapidamente na corrente sanguínea. John e Henery são exemplos que trazem conforto às preocupações de Shámpion sobre o futuro dos wampís. “Eles começam a entender que, preservando a biodiversidade, eles podem ganhar mais dinheiro do que migrando para as grandes cidades”, diz Shámpion.

    Algumas gramas de ouro em pó que são comercializadas clandestinamente em La Poza e Puerto Galiléa.
    Foto de Marcio Pimenta

    O futuro da Nação Wampís agora está escrito no estatuto que, segundo Shamo, estabelece a visão da população em todas as áreas da vida, incluindo espiritualidade e educação, mas é na preservação do meio ambiente e seus recursos naturais que está o principal argumento. Eles conseguiram expulsar, por conta própria, mineradores ilegais – não só peruanos, mas também vindos do Brasil e do Equador – de duas grandes áreas. Em outras oportunidades, avisaram às autoridades, que agiram para a retirada dos invasores.  Contudo, ainda é possível ver os impactos deixados pelos garimpos ilegais.

    Afastar os desmatadores tem sido um pouco mais difícil. Diferente do que acontece em outras partes da floresta Amazônica (notadamente no Brasil), não há estradas na região dos wampís que facilitem o transporte de madeira e permitam imensos campos de desmatamento, e essa condição acaba dando uma proteção natural para a floresta no território wampís. Mas a ambição em conseguir exemplares da árvore capirona (Calycophyllum spruceanum), também conhecida como pau-mulato, de reconhecido valor para uso naval, estruturas pesadas e vigas para construção de casas, enseja a atuação pontual dos madeireiros ilegais. Quando anoitece, eles encostam o barco na margem do rio, oferecem dinheiro para algum vigia corrupto e desembarcam todos os equipamentos para derrubar as árvores e fazer os cortes ali mesmo, onde embarcam tudo novamente e levam o carregamento pelo rio, já na manhã seguinte.

    Crianças brincam em uma comunidade wampís.
    Foto de Marcio Pimenta

    Desde que fundaram o governo autônomo, a relação entre os wampís e o governo do Peru tem sido de tranquilidade, embora as autoridades peruanas não tenham se manifestado formalmente. Essa tranquilidade decorre, em parte, da excelente relação deles com as Forças Armadas do Peru, que tem forte presença no território devido à fronteira com o Equador – limite do território wampís ao norte.

    Em 1995, Peru e Equador entraram em um conflito que ficou conhecido como Guerra de Cenepa. Após o conflito, o Equador deixou muitas minas terrestres e o exército tem localizado e limpado muitas áreas em território indígena onde se encontram os explosivos. O tenente-coronel Herberts Cavero Medina, chefe da Seção de Informação da 6ª Brigada de Selva, conta que alguns jovens wampís servem em alguns batalhões do exercício de vigilância da fronteira e, de forma indireta, recebem informações sobre atividades ilegais de mineiros e madeireiros. O exército, então, informa às autoridades competentes do país para que afastem os invasores – caso os wampís já não o tenham feito antes.

    Caminhões como este levam a madeira para outros departamentos ou para barcos maiores que farão o tráfico clandestino pelo rio.
    Foto de Marcio Pimenta

    Para viver das riquezas da floresta, além da caça, cada membro da comunidade pode cultivar até cinco hectares em local livre à sua escolha em todo o território. Em uma conta rápida, se todos os wampís decidissem plantar banana, cacau ou mandioca, os principais produtos comercializados por eles, isso representaria menos que 6% do território. E a agricultura mostra-se lucrativa. No caso do cacau, por exemplo, cada hectare produz em média 1,5 tonelada por mês, que é vendida para compradores externos por 3,2 soles (equivalente a R$ 3,60) por quilo. Os wampís rechaçam a monocultura, tão comum nos departamentos do Amazonas e Loreto, como no caso do arroz que é produzido em áreas inundadas, e cuja forma de cultivo é uma das principais fontes antrópicas globais de metano (CH4), um importante gás de efeito estufa. Eles ainda discutem como, em um futuro próximo, assumir a extração do ouro de suas terras “de forma manual, sem máquinas”, explica Shámpion, “que é para não agredir a floresta e valorizar o ouro”. São planos que ainda terão que esperar, porque eles precisam discutir sobre a própria cultura antes de pensar no futuro. “Desde a educação, política, economia, cultura, juventude, gênero, turismo, comércio...”. E o governo atual é apenas transitório, pois seu papel foi dar início à estrutura legal e política e logo será substituído pelo próximo eleito, para que esse persiga os objetivos traçados e fortaleça a autonomia do seu povo.

    As indústrias que enxergam na Amazônia uma oportunidade para extrair petróleo são as maiores preocupações dos wampís. O panuk, ou presidente, Wrays Perez, não cita diretamente, mas quando se refere à indústria petrolífera deixa claro que se trata da Petroperú, a empresa estatal mais importante do país, que se orgulha de explorar petróleo na Amazônia com uma tubulação, conhecida como Oleoducto Norperuano, que percorre 1.106 km desde a selva até o Oceano Pacífico, no terminal Bayóvar, para abastecer as refinarias do país. Segundo a assessoria de comunicação da empresa, desde o início das operações do oleoduto, há 41 anos, ocorreram 109 vazamentos, sendo 11 por problemas técnicos, 69 por problemas de terceiros e 29 por causas geodinâmicas atribuídas à natureza.

    Trabalhador cultiva arroz em seu território próximo a Bagua, departamento do Amazonas, Peru.
    Foto de Marcio Pimenta

    O presidente Perez também está atento ao mundo externo, em especial ao Brasil, a maior economia da América do Sul. “A ascensão de governos de extrema direita no continente, como o de Bolsonaro. Veja, ele colocou o Ministério do Meio Ambiente sob o Ministério da Agricultura, não formalmente, mas na prática. E também quer explorar as reservas indígenas. E isso irá afetar muito a Floresta Amazônica do Brasil e os direitos dos povos que lá vivem por milhares de anos e sempre conservaram a floresta”, completa.

    Num mundo em que as ações de preservação das florestas e combate às mudanças climáticas encontra resistência nas velhas ideias de novos governos, os wampís semeiam um território livre.  “Os espanhóis não nos conquistaram diretamente, não fomos escravos, fomos absorvidos quando se formaram os Estados, por isso precisamos de muito tempo para finalmente nos organizar em uma só voz”, diz Shámpion. E, agora, esse parece ser o novo desafio no caminho dos wampís.

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