Sputnik no Brasil: o que já sabemos sobre os estudos com a vacina russa?
Após publicação que detalha segurança das fases 1 e 2 , Paraná vai requerer autorização da Anvisa para realizar testes da fase 3 da vacina. Rússia vê Brasil como parceiro para produção e distribuição na América Latina.
Resultados preliminares dos estudos clínicos de fase 1/2 da Sputnik V constataram que a vacina não produz efeitos colaterais graves e induziu resposta imune de anticorpos e de linfócitos T. Etapa determinante para comprovar a eficácia e segurança, fase 3 começa em setembro na Rússia. Além do país, e possivelmente do Brasil, testes devem ocorrer nos Emirados Árabes Unidos, na Arábia Saudita e na Índia.
Desde que anunciou o registro provisório da primeira vacina contra a covid-19 em 11 de agosto, a Rússia viu-se diante do ceticismo da comunidade científica. Isso porque, quase um mês depois, pouco se sabia sobre o imunizante russo. Mas os resultados preliminares dos estudos clínicos de fase 1/2 da Sputnik V foram publicados nesta sexta-feira (04/09) na revista científica The Lancet. Os cientistas constataram que a vacina não produz efeitos colaterais graves e induziu resposta imune de anticorpos e de linfócitos T.
A vacina utiliza a plataforma de vetor viral e tem como base dois serotipos do adenovírus humano recombinante: o 26 (rAd26-S) e o 5 (rAd5-S). Eles foram geneticamente modificados para carregar a proteína S (spike) do Sars-CoV-2, além de enfraquecidos para não propiciar sintomas típicos deste adenovírus, como o resfriado comum. A dose inicial da vacina contém o serotipo 26; a segunda, aplicada 21 dias após a primeira, carrega o 5. Os cientistas optaram pela segunda dose para induzir uma resposta mais forte.
“Quando as vacinas de adenovírus entram na célula das pessoas, eles levam o código genético da proteína spike do Sars-CoV-2, que faz com que as células produzam a proteína spike. Isso ajuda a ensinar o sistema imune a reconhecer e atacar o vírus Sars-CoV-2”, explica Denis Logunov, investigador principal do estudo, em comunicado à imprensa. Se o organismo reconhecer o adenovírus, e não a proteína S do novo coronavírus, poderia neutralizar o vetor viral. “Na nossa vacina, usamos dois vetores de adenovírus diferentes na tentativa de evitar que o sistema imunológico se torne imune ao vetor.”
Os cientistas russos utilizaram duas formulações da vacina: uma congelada e outra liofilizada. A primeira é mais estável para distribuição global. A segunda, desidratada, facilita o transporte do produto para regiões mais distantes, com armazenamento entre 2ºC e 8ºC, ou seja, sem necessidade de congelamento.
No total, 76 adultos saudáveis, entre 18 e 60 anos, participaram das duas fases do estudo em dois hospitais russos. Na primeira, os pesquisadores atestaram a segurança da vacina em um grupo de 38 voluntários ao longo de 42 dias de estudo. Os efeitos colaterais se resumiram a dor no local da injeção (58%), febre (50%), dor de cabeça (42%), fraqueza ou indisposição (28%) e dor muscular (24%).
Na segunda fase, que teve início cinco dias depois da primeira, 40 voluntários receberam as duas doses da Sputnik V. Os cientistas identificaram que o imunizante suscitou resposta imune de anticorpos em todos os participantes, 21 dias após a aplicação. Respostas de linfócitos T, outro braço importante do sistema imune, foram constatadas em até 28 dias da aplicação da vacina.
Os estudos clínicos de fase 3, por sua vez, começam em setembro na Rússia. É uma etapa determinante para comprovar a eficácia e segurança da vacina, ao testá-la em um grande número de pessoas. Serão 40 mil voluntários acima de 18 anos, médicos e enfermeiros que estão na linha de frente do combate a pandemia no país. Os detalhes foram publicados na última quinta-feira (03/09), no site Clinical Trials.
“No geral, é uma boa fase 1. São resultados preliminares e promissores. A vacina mostra bons marcadores de imunidade, de anticorpos e de células T. Não apresentou efeitos colaterais graves. Mas foi feito em um número pequeno de pessoas e quase todos em homens jovens”, observa Natália Pasternak, doutora em Microbiologia pela Universidade de São Paulo (USP) e presidente do Instituto Questão de Ciência (IQC).
A microbiologista considerou positiva a estratégia de utilizar dois vetores virais, com dois tipos de adenovírus diferentes, “um método que evita que as pessoas criem anticorpos para o adenovírus”, analisa. Pasternak ressalta que serão necessários estudos mais abrangentes nas fases 2 e 3, para descobrir qual é a eficácia da vacina e por quanto tempo a proteção realmente dura. “Por enquanto, só sabemos que é uma estratégia promissora e os resultados são encorajadores.”
Cientistas russos utilizaram duas formulações da vacina: uma congelada, mais estável para distribuição global, e outra liofilizada, desidratada e congelada sob vácuo. A vacina será dividida em duas fases: a inicial contém o serotipo 26; a segunda, aplicada 21 dias depois, carrega o 5. Os cientistas optaram pela segunda dose para induzir uma resposta mais forte.
Estudos clínicos no Brasil
Em 12 de agosto, um dia após o presidente russo, Vladimir Putin, anunciar a aprovação da vacina, o governador do Paraná, Carlos Massa Ratinho Júnior, firmou um acordo com o Fundo de Investimento Direto da Rússia (RDIF, na sigla em inglês). O Memorando de Entendimento visa realizar o ensaio clínico de fase 3 no estado brasileiro e, se bem-sucedido, produzir e distribuir a Sputnik V no maior país da América Latina.
A partir do acordo, a Câmara dos Deputados convocou uma reunião técnica que teve a presença virtual de Kirill Dmitriev, CEO do RDIF; Alexander Gintsburg, diretor do Instituto Gamaleya de Epidemiologia e Microbiologia; e Sergey Akopov, embaixador da Rússia. O encontro de 26 de agosto teve como objetivo obter esclarecimentos sobre a Sputnik V e o acordo de testes e produção.
Segundo Gintsburg, o Instituto Gamaleya trabalha com a tecnologia de adenovírus humano há duas décadas, primeiro para medicamentos e, desde 2014, para a criação de vacinas à base de vírus RNA. O centro de pesquisa desenvolveu uma vacina contra o ebola, aplicada em 2016 em uma campanha de imunização com 2 mil pessoas na República da Guiné, África Ocidental. Depois, formularam uma vacina contra o coronavírus MERS, que provoca a Síndrome Respiratória do Oriente Médio. Esta vacina já passou pelas duas primeiras fases dos ensaios clínicos, disse o microbiologista russo, nas quais 430 voluntários russos foram vacinados e não desenvolveram efeitos colaterais. Já no início de 2020, os cientistas russos valeram-se da mesma tecnologia para desenvolver a Sputnik V.
Conforme Gintsburg, além dos voluntários que participaram dos estudos de fase 1/2, sete funcionários do instituto foram vacinados no início da pesquisa, há cinco meses, e ainda estão imunizados contra a covid-19. O microbiologista espera que a vacina promova imunidade por pelo menos dois anos, a exemplo da fórmula de adenovírus contra o ebola.
Já Kirill Dmitriev afirmou que ele, os pais e a esposa tomaram a vacina e só tiveram sintomas leves, como febre. Para o economista, a Rússia enxerga no Brasil um potencial não só para os estudos clínicos, como também para a produção e distribuição da vacina para a América Latina. A meta é de produzir 200 milhões de doses por ano, 120 milhões delas na Rússia.
Além da Rússia e possivelmente do Brasil, os testes de fase 3 devem acontecer nos Emirados Árabes Unidos, na Arábia Saudita e na Índia. “Enquanto estamos na fase 3, damos a vacina só aos grupos de risco, aos médicos, para não esperarem três, quatro meses até o registro definitivo”, argumentou Dmitriev. Embora a previsão de conclusão do ensaio clínico na Rússia seja 21 de maio de 2021, o ministro da Saúde, Mikhail Murashko, cogita iniciar uma campanha de vacinação em massa já em outubro. Um decreto aprovado pelo Parlamento russo, em abril, autoriza a imunização antecipada da população, desde que sob estrita farmacovigilância.
Fotos: Brasil participa de teste final da vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford
Cautela científica
Natália Pasternak, presidente do Instituto Questão de Ciência (IQC), soube pela imprensa do registro da Sputnik V pelo governo russo, no início de agosto. Apesar de saber que a Rússia tem bom histórico na imunologia, a exemplo de atuação importante no combate à poliomielite e à varíola, a novidade surpreendeu a microbiologista. “A única maneira de receber uma notícia de algo sem dado científico é com grande questionamento”, diz Pasternak. “Onde está o artigo científico? Os dados dessa vacina? Quando vão dividir com o resto do mundo? Foi assim que a gente recebeu dentro da comunidade científica.”
A Organização Mundial da Saúde (OMS) alegou que cabe aos próprios países decidirem sobre a aprovação de vacinas, mas que a Rússia deveria compartilhar os resultados dos estudos já realizados e seguir os processos científicos.
Pasternak considera que pular etapas no desenvolvimento da vacina e aplicá-la em massa antes de obter resultados conclusivos da fase 3 pode representar um perigo à sociedade. Isso porque esta etapa final do estudo clínico, com a aplicação em milhares de pessoas, é a oportunidade de descobrir se há efeitos colaterais graves em pessoas de características distintas. Nesta etapa, a comparação de um grupo vacinado com outro placebo permite identificar também se o produto é, de fato, eficaz.
“Sem esses resultados, você fica no escuro. Vacinar toda uma população pode dar uma falsa segurança”, analisa Pasternak. “A população acha que está protegida da doença, só que, como não foi amplamente testada, pode não funcionar, ou funcionar muito pouco. Essa população pode desencanar do uso de máscara, do distanciamento social, achar que a vida voltou ao normal. Sem medida de contenção, o vírus volta a circular fortemente. Considerando que vivemos em um mundo globalizado, não se trata de um país. É um perigo para o mundo inteiro.”
Cooperação Paraná-Rússia
Até 3 de setembro, a OMS listava 34 vacinas candidatas em estudos clínicos pelo mundo. No Brasil, encontra-se um cenário de descontrole da pandemia, grandes centros de pesquisa e um robusto sistema nacional de imunização. Essas características transformaram o país – o segundo com mais casos e mortes por covid-19, atrás apenas dos EUA – em um terreno fértil para estudar a segurança e a eficácia das vacinas contra a doença do Sars-CoV-2. Das oito candidatas que chegaram à fase 3, quatro já realizam estudos clínicos no Brasil: ChAdOx1, de Universidade de Oxford/AstraZeneca; CoronaVac, da Sinovac/Butantan; a BNT162b1, da Pfizer/BioNTech; e a Ad26.Cov2.S, da Janssen.
Os governos do Paraná e da Rússia já conversavam desde o final de julho, segundo o biólogo Jorge Callado, diretor-presidente do Instituto de Tecnologia do Paraná (Tecpar). A reunião do dia 12 de agosto coincidiu com o anúncio da Sputnik V e o acordo de cooperação. O Tecpar foi designado como braço tecnológico, científico e executor da parceria.
Atualmente, técnicos paranaenses e russos elaboram o protocolo de pesquisa da Sputnik V, que planejam concluir até o final de setembro. A proposta é que o ensaio clínico englobe ao menos 10 mil voluntários, profissionais de saúde de hospitais universitários do Paraná. O documento será submetido à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e ao Conselho Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), a fim de obter autorização para realizar os estudos de fase 3 no Brasil.
Neste protocolo, devem constar o plano de desenvolvimento da vacina, aspectos de segurança, um dossiê do medicamento experimental, modelo de rótulo do produto, análise de estudos farmacológicos e toxicológicos e o cronograma da transferência de tecnologia, que inclui a adaptação do parque industrial com, por exemplo, a adequação de biorreatores. Os órgãos reguladores exigem também que sejam apresentados todos os dados obtidos no desenvolvimento da vacina até agora.
Rússia espera que a vacina promova imunidade por pelo menos dois anos. País enxerga no Brasil um potencial não só para os estudos clínicos, como também para a produção e distribuição da vacina para a América Latina. A meta é de produzir 200 milhões de doses por ano.
No fim de agosto, o Tecpar recebeu da Embaixada da Rússia um documento de 600 páginas, com os resultados detalhados das fases 1 e 2. Uma cláusula de confidencialidade impôs sigilo às informações da Sputnik V até a publicação do artigo científico na Lancet. Callado, por sua vez, afirmou na época que as informações são “bem positivas”. “Sempre dizem para nós que a Rússia queimou etapas”, ao conceder registro provisório à vacina antes de iniciar os estudos confirmatórios, observa Callado. “Apresentaremos todos os dados de fase 1 e 2 da Rússia, para pleitear a fase 3. Vamos primar pela prudência, segurança e eficácia nesse processo, e transparência também.”
O doutor Edson Arpini é um voluntário em potencial para receber a Sputnik V, caso o estudo no Brasil seja aprovado pela Anvisa e pelo Conep. Na Universidade Estadual de Maringá, no noroeste do Paraná, ele é médico pediatra do Hospital Universitário, tem 57 anos e é professor de Ensino, Pesquisa e Extensão. No início da pandemia, Arpini integrou o comitê de combate à covid-19 da instituição. O hospital consolidou-se como referência na região, a partir da construção de um plano de contingência em março, mudanças logísticas e ampliação de leitos de UTI antes que a epidemia chegasse. Na cidade de 385 mil habitantes, os diagnósticos diários de covid-19 têm média semanal de 110 casos, sendo 6.305 no total e 107 mortes até 3 de setembro. Agora, Arpini está focado em pesquisas que envolvem aspectos clínicos e laboratoriais.
“Se esses dados forem disponibilizados e tudo for adequadamente processado para o teste da vacina, eu não teria problema em ser candidato. Acho que o mais importante é que tenha transparência, que sejam divulgados e comparados com as demais vacinas”, conta Arpini.
Do estudo ao registro
A Anvisa não abrirá mão de ter acesso a todas as informações sobre as vacinas e seus estudos, garante Gustavo Mendes, gerente geral de Medicamentos e Produtos Biológicos da instituição. “O fato de ter registro em outro país não isenta nenhuma empresa disso. No caso da vacina russa, não será diferente. Vamos precisar ter acesso a todos esses dados”, observa Mendes. “Nossas análises não são baseadas em artigos, mas em todos os dados gerados pelo próprio estudo – fichas clínicas, equipamentos, laudos laboratoriais. Nós, como agência reguladora, avaliamos os dados brutos.”
A Anvisa exige duas categorias de documentos para analisar se autoriza ou indefere uma pesquisa de produtos biológicos em humanos: o Dossiê de Desenvolvimento Clínico de Medicamento e o Dossiê Específico de Ensaio Clínico, este último requer um para cada tipo de ensaio clínico realizado com o medicamento ou vacina.
Para conceder a anuência, os técnicos levam em conta quatro aspectos principais: nível de segurança, para identificar se o risco é menor que o benefício a partir de pesquisas já realizadas sobre o produto e a tecnologia; delineamento do estudo – como será feito, com quantos voluntários, se será controlado por placebo, a abordagem estatística para avaliar a eficácia; estratégias de produção; e boas práticas clínicas, com base na confiabilidade dos centros de pesquisa envolvidos.
O estudo clínico de uma vacina envolve três fases, continua Mendes. A primeira avalia a questão de segurança e é realizada em algumas dezenas de voluntários, geralmente saudáveis. A segunda é exploratória, na qual se avalia, por exemplo, o número de doses e seu conteúdo, população-alvo, faixa etária, voluntários com ou sem comorbidades. Já a terceira é confirmatória e envolve milhares de voluntários para atestar a eficácia e a segurança da vacina.
Com a pandemia, a Anvisa criou um comitê especial para dar mais celeridade nas respostas a pedidos de anuência de estudos clínicos de produtos biológicos. O grupo é composto por dez especialistas de áreas distintas da Gerência Geral de Medicamentos e Produtos Biológicos (GGMed). Uma análise que antes durava até 90 dias agora é feita em no máximo 72 horas.
Uma vez aprovado, o estudo passa por análises interinas que ocorrem com 25%, 50% e 75% de seu andamento. A depender dos resultados de eficácia e efeitos colaterais, a Anvisa pode, inclusive, solicitar a suspensão do ensaio clínico. Por outro lado, com base nos dados preliminares, a empresa tem a possibilidade de solicitar o registro antes de concluir a fase 3.
A análise de um pedido de registro pela Anvisa dura até 60 dias. Os técnicos da agência avaliam segurança, eficácia, biotecnologia para produção da vacina, bula e rotulagem e monitoramento pós-mercado. Após o registro, acontece a farmacovigilância. Tanto a empresa como a vigilância sanitária coletam relatos de reações adversas e eficácia, para determinar se o produto pode continuar no mercado.
Os dados preliminares conseguem dar a segurança de que vale a pena registrar o produto? O benefício supera o risco? Quantas doses serão necessárias? Qual é a população que poderá ser vacinada? Quanto tempo dura essa imunidade? “São perguntas que precisam ser respondidas. Se não tiver um estudo que responda a isso, será difícil obter o registro”, observa Mendes.