Coronavírus e choque cultural: a vida dos brasileiros na maior cidade da China
Em Xangai, medidas de contenção à pandemia da Covid-19 impactaram a rotina e os planos dos estrangeiros que vivem na região.
XANGAI, CHINA O chef de cozinha capixaba Victor Vieira caminhava de máscara pelas avenidas desertas de Xangai, a maior cidade da China, há algumas semanas. A peculiaridade da situação, inimaginável até então, fez com que Vieira compartilhasse o momento em suas redes sociais. Residindo há 8 anos na pulsante metrópole chinesa, ele nunca a tinha visto daquele jeito: inanimada e silenciosa.
Até aquele momento, pouco se sabia sobre o surto do novo coronavírus. Declarado pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS) nesta quarta-feira (11/03), o Covid-19 infectou mais de 80 mil pessoas na China desde dezembro de 2019, levando mais de 3,1 mil pessoas à morte no país. Apenas em Xangai foram cerca de 340 contaminados. Em todo o mundo, o número de casos confirmados passa de 132,5 mil em 123 países, e o número de óbitos se aproximava dos 5 mil até a publicação dessa reportagem.
“Fiquei muito espantado com a rapidez com que tudo começou”, relata Vieira. “Na primeira semana, as pessoas comentavam sobre o vírus meio que em tom de brincadeira. Na segunda, estava todo mundo de máscara. Na seguinte, tudo fechado nas ruas”. Após ter todos os compromissos profissionais no país cancelados, o chef decidiu passar um tempo no Brasil.
A pandemia da Covid-19 afetou não apenas a vida dos infectados, mas de toda a população da China e demais países atingidos. Segundo o Consulado do Brasil em Xangai, um número significativo de brasileiros residentes saíram provisoriamente da região no início da crise, e estima-se que a movimentação de turistas tenha sido quase nula em virtude das restrições.
No início da crise, companhias estrangeiras cancelaram voos internacionais para China. Mas ainda era possível entrar e sair do país com as companhias nacionais, apesar da reduzida oferta de voos. Foi assim que Vieira conseguiu partir.
“Na primeira semana, as pessoas comentavam sobre o vírus meio que em tom de brincadeira. Na segunda, estava todo mundo de máscara. Na seguinte, tudo fechado nas ruas.”
A designer paulistana Naschara Saraiva, por outro lado, resolveu permanecer na cidade, mas sentiu uma mudança drástica em sua rotina. Ela começou a trabalhar de casa por 30 dias e raras vezes saia à rua. “Isso impactou muito minha sanidade mental”, conta ela. A escassez de produtos nos mercados, sobretudo de legumes e frutas, foi outro revés. “Procurei tomate por uns dois dias e não achava, então comprávamos o que tinha. Água, por exemplo, era permitido apenas dois galões por pessoa”.
Cenário em movimento
O casal de geógrafos paulistas Marcelo e Júlia Camargo estava em Xangai havia apenas um mês quando o surto de Covid-19 estourou. Ele se mudou para assumir um cargo no setor de sustentabilidade, e ela tirou licença de seu cargo público com o objetivo de se inscrever em mestrado. Sem poder dar continuidade aos planos, incluindo o de procurar uma residência fixa, retornaram para São Paulo provisoriamente, onde Marcelo está trabalhando no escritório local da empresa. “Queremos muito voltar e retomar os nossos planos em Xangai logo”, diz Júlia.
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O surgimento do novo coronavírus também impactou escolas e universidades da China. O início das aulas foi adiado por tempo indeterminado, até que se implementou o ensino à distância de forma disseminada. Doutoranda na universidade Jiao Tong de Xangai, a pernambucana Vanessa Albuquerque partiu no início do surto para a Indonésia, onde ficou por cerca de um mês antes de voltar a Xangai. "Senti uma mistura de frustração e angústia. Por questões de saúde, claro, mas também pelo fato da incerteza de quando as coisas voltarão ao normal, de quando, e se, meus planos para este ano poderão ser colocados em prática”, conta ela.
Passados os meses iniciais da crise, o cenário mudou. A China registra queda no número de novos casos e a rotina das pessoas aos poucos volta ao normal em Xangai. Mas as precauções não diminuíram. “Todos os prédios e condomínios estão com sistema de controle, no qual os moradores precisam mostrar um cartão registrado e medir a temperatura sempre que saem ou entram”, relata Albuquerque.
O mesmo se aplica a escritórios e demais lugares públicos, onde o uso de máscaras ainda é obrigatório. A impressão é que a população tem seguido à risca as recomendações do governo. “As pessoas estão realmente se unindo para resolver o problema”, acredita Naschara Saraiva.
Oportunidade de crescimento
Nos últimos anos, a China cresceu como destino de imigração. De acordo com o Ministério das Relações Exteriores, o número de brasileiros que vivem no país subiu de cerca de 5,7 mil em 2010 para 11 mil em 2018, um aumento de 93%. Dentre eles, uma parcela significativa encontra-se na cosmopolita Xangai, a maior cidade chinesa, com 24 milhões de habitantes. Eles buscam experiências enriquecedoras, salários atrativos e qualidade de vida.
Victor Vieira chegou à metrópole em 2011, por conta de um projeto publicitário para a empresa na qual trabalhava à época. Acabou convidado para assumir um cargo de gerência cujo salário era maior do que o dobro do que recebia no Brasil. Decidiu ficar. Pouco tempo depois, já era diretor de criação.
O chef se deparou com uma cultura de trabalho diferente da que estava acostumado. “O trabalho aqui é muito eficiente, tudo é prático e rápido. Não há mil reuniões para decidir um assunto. É uma reunião só e está decidido”, explica ele, ressaltando que, assim como a ascensão profissional é rápida na China, a rotatividade de empregos também é alta.
Há quatro anos, Vieira deu uma guinada na carreira e passou a dedicar-se à gastronomia. Ainda em Xangai, teve por dois anos um bar e bistrô de comida brasileira. Hoje, faz serviços de catering e eventos, sobretudo para a embaixada e consulados do Brasil. “O legal de ser um cozinheiro brasileiro aqui é que não tem muita competição. A minha feijoada é conhecida como a melhor feijoada da China. Aí é maravilhoso, né”, diverte-se.
Já Naschara Saraiva estava acostumada a tratar com fornecedores chineses em seu escritório em São Paulo. Quando surgiu a oportunidade de trabalhar para um deles como designer na China, em 2017, ela resolveu se aventurar. “Eu tinha acabado de comprar um apartamento pequeno em São Paulo. Estava tudo certo, mas senti que não tinha tanto espaço ali para crescer profissionalmente”. Na época da mudança, ela namorava seu agora marido havia apenas três meses. Ele largou o emprego na capital paulista para acompanhá-la.
De sua casa até o trabalho, Saraiva leva 15 minutos de bicicleta. Ela trabalha das 9h às 18h em um dia normal, e a rotina inclui também viagens a trabalho. Assim como a maioria dos imigrantes brasileiros em Xangai, ela usa o inglês no trabalho, mas aprendeu o básico de mandarim para não passar sufoco em situações cotidianas. “Achava que ia sofrer por um ano e meio aqui, e que iria voltar. Só que eu já estou aqui há dois anos e meio e ainda não tenho planos de retorno. A realidade é muito mais fácil do que pintam”, diz ela.
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Diferentemente de Estados Unidos e países europeus, a China não demanda imigrantes para os setores de limpeza, obras e atendimento, uma vez que a numerosa população local já supre essas áreas.
Ensino de ponta é outro chamariz. Segundo o ranking QS, a China é o terceiro país com mais universidades entre as 100 melhores do mundo, atrás de Estados Unidos e Reino Unido. Natural de Olinda (PE), Vanessa Albuquerque foi estudar na China por meio de uma bolsa do governo chinês. Ela fez mestrado na Universidade de Wuhan e hoje é aluna de doutorado em direito chinês e internacional. Ambos os cursos são ministrados em inglês. “Estou na fase de pesquisa, então fico muito tempo estudando na biblioteca”, comenta ela, que não pode trabalhar na China por ser bolsista.
Choque cultural
Uma volta por um mercado tradicional de Xangai é uma experiência sensitiva e visual nova para os visitantes brasileiros. Cheiros, ingredientes inusitados e formas de acondicionamento diferentes causam estranhamento à primeira vista. “Tem pato seco pendurado em varal. Cobra viva em tanque, peixe, moreia. Cartilagem de frango, unha e pé de galinha sequinhos. Eles comem de tudo”, relata Júlia.
“Senti uma mistura de frustração e angústia, por questões de saúde e pela incerteza de quando as coisas voltarão ao normal e meus planos poderão ser colocados em prática ”
Ao mesmo tempo, encontra-se comida do mundo inteiro. “Eu morria de medo de chegar a Xangai e não encontrar café e hambúrguer. Mas, não, há diversas cafeterias, melhores até que as que se encontra em São Paulo”, observa Marcelo. Victor Vieira também não se acostumou à culinária local de imediato. “A gente chega achando que comida chinesa é yakissoba, mas na verdade ela é muito rica e diversa”, conta o cozinheiro. “A combinação de sabores é muito diferente da nossa”.
Outro aspecto marcante para os brasileiros em Xangai é o modo de agir e pensar dos chineses. “Eles são muito fechados e reservados. Muito diferentes de nós”, relata Saraiva sobre o porquê de a maioria dos brasileiros ter mais amigos conterrâneos ou estrangeiros. Para Vieira, com o tempo, começa-se a observar características cada vez mais positivas. “Eles têm enraizada uma cultura de confiança, de cumprir horários e de mostrar respeito e consideração pelos outros”, diz ele.
Lojas de grife, shoppings por todos os lados, cultura do consumismo. A realidade da maior cidade chinesa não corresponde à ideia que muitos têm de um país comunista e ditatorial. Porém, há restrições. O governo bloqueia o acesso a sites e algumas redes sociais. Para driblar a situação, brasileiros e outros estrangeiros usam serviços de VPN, espécie de rede de navegação privada. “Com o VPN a gente fica em uma bolha. Não vivemos realmente a realidade chinesa nesse sentido porque conseguimos acessar tudo que queremos”, explica Saraiva.
Dezenas de câmeras por quadra e o uso de tecnologia de reconhecimento facial também fazem parte do sistema de vigilância. O que parece invasivo para quem olha de fora, é percebido pelos chineses como parte de um plano de melhoria. “O governo conseguiu fazer de uma forma que a população não reclama, porque eles têm tudo que querem: segurança, poder de compra, oportunidade de crescimento, transporte eficiente”, diz Saraiva.
“Achava que ia sofrer e querer voltar, mas estou em Xangai há dois anos e meio e não tenho planos de retorno. A realidade aqui é muito mais fácil do que pintam”
Tais medidas em geral não afetam o dia a dia dos brasileiros. “Eu me sinto mais livre aqui tendo segurança e podendo ir aos lugares do que quando morava no Rio de Janeiro”, relata Vieira. “Estou sendo recebido por eles e entendo que a regra aqui é essa. Se eu quiser fazer algo que não esteja de acordo com a regra deles é uma opção minha sair”.
À medida que o comércio começa a reabrir as portas, Xangai retoma a antiga atmosfera vibrante, apesar das medidas de contenção à pandemia do novo coronavírus. “Acho que agora é uma questão de tempo mesmo”, diz Albuquerque. “Estou confiante que as coisas irão, aos poucos, voltar ao normal”.