Música indígena brasileira: da invisibilidade aos palcos internacionais
Com ritmos rap, popular e eletrônico, artistas indígenas ganham espaço no mundo trazendo um futuro ancestral para a música contemporânea brasileira.
Dj Eric Terena se apresenta durante o Encontro Nacional dos Estudantes Indígenas na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em julho de 2022. Além das pickups nacionais, Terena leva a cultura e as causas indígenas pelo mundo, com shows na Marcha pelo Clima em Nova York (2019) e na Conferência do Clima em Glasgow, no Reino Unido (2021).
A gente grita mas ninguém nos ouve, aprendi a sua língua não indígena/ essa é pra você / Quanta tristeza pobreza/ andam lado a lado/ Dentro de um barraco caindo aos pedaços/ Passando fome sem graça/ bebendo só água suja com a roupinha furada e seu cachorro do lado/ De baixo, de baixo do palco mantendo a gente isolado
Jarahá, Brô MC’s e DJ Alok
Foi debaixo do palco que Bruno Veron, Clemerson Batista, Kelvin Mbaretê e Charlie Peixoto puderam assistir a um show do DJ Alok pela primeira vez, em um evento do agronegócio em Mato Grosso do Sul, há três anos. Os indígenas guarani-kaiowá integram a banda de rap Brô MC’s e tocam desde 2009, mas ainda não conseguiam viver da música. Por isso, trabalhavam nos bastidores daquela feira. Durante o show, contudo, estavam “ocultos” por outro motivo. Sem que Alok soubesse, “alguém da produção local nos disse que artista não queria ver indígenas e que tínhamos que ficar escondidos”, conta Bruno.
Os rappers do Brô MC’s moram nas aldeias Bororo e Jaguapiru, situadas no município de Dourados, em Mato Grosso do Sul, a 235 quilômetros da capital, Campo Grande. Eles e seus parentes enfrentam um cotidiano conflituoso na cidade, marcado por ameaças, preconceito e falta de oportunidades. A reserva está confinada em uma área rodeada por gigantescas monoculturas. A alta densidade populacional nas aldeias tem reflexo em elevados índices de alcoolismo e uma taxa de suicídios três vezes maior do que a média nacional.
“Já nascemos no contexto da resistência. Não tínhamos comida e sofríamos com o preconceito. Eu mesmo já ‘morri’ várias vezes no lixão. O que eu achava colocava na boca, passava muito mal”, recorda Clemerson. Ele lembra de ser ridicularizado na escola por carregar seus materiais em um saco de arroz. “Muitos desistiram de viver, entraram em depressão, quem vai ficando que conta a história.”
Eles mostram as mãos calejadas, marcas que carregam desde a infância pelo trabalho na lavoura, e lembram do avião que passava despejando agrotóxicos enquanto cortavam a cana-de-açúcar. Mas era a única maneira de conseguir dinheiro, já que estudar não daria em nada, eles escutavam com frequência.
Ao longo da década de 1990, o rádio era praticamente o único meio de comunicação a que os guarani-kaiowá tinham acesso nas aldeias do município. Ao escutar os programas de música, os irmãos Bruno e Clemerson descobriram no rap uma maneira de expressar o sentimento por toda a violência e o preconceito a que eram submetidos pela sociedade não-indígena do entorno das aldeias, como o estereótipo de que os indígenas seriam preguiçosos. “Tudo isso que falavam me deixava muito bravo. Eu procurava um meio de dizer as coisas até que escutei Negro Drama, do Racionais MC’s, que tocava num programa que passava à tarde, Ritmos na Batida”, lembra Bruno. “A gente gostava tanto que chegava a fazer vaquinha com os amigos para comprar pilhas, e a galera ficava em volta do rádio até acabar.”
Da esquerda para a direita: Clemerson Batista, 30, Bruno Veron, 28, Kelvin Mbaretê, 32 e Charlie Peixoto, 30 – integrantes do Brô MC’s. Há 13 anos, o quarteto se tornou o primeiro grupo indígena de rap no país.
Bruno começou a compor letras de música e depois passou a cantar em escolas, incentivado por um professor. Logo, Clemerson juntou-se a ele. Já os irmãos Charlie e Kelvin uniram-se aos parentes em 2007 e 2009, respectivamente, e o quarteto formou oficialmente o Brô MC’s, a primeira banda indígena de rap do Brasil. O nome surgiu “meio sem querer”, porque gostavam da gíria. Só depois descobriram que “brô” deriva da palavra inglesa “brothers”, que significa “irmãos”.
“Comecei muito pequeno. Parecia que alguém falava comigo que eu tinha que lutar pela comunidade. Essa ‘voz’ me incentiva até hoje. As letras saem muito rápido”, conta Bruno. Hoje os quatro compõem e afirmam ter uma forte sintonia. “Tem letras que cada um escreveu um pedaço e, quando junta, parece que a gente combinou, tudo se encaixa”, continua o rapper. As letras chamaram a atenção logo na primeira demo gravada pelo grupo, em 2010, a música Eju Orendive, que depois rendeu a primeira turnê pelo país.
Em 2021, Bruno recebeu um telefonema que transformaria a trajetória do Brô MC’s. Como o número era de outro estado, pensou que seria alguém tentando vender ou cobrar algo. “Mas era a produtora do Alok, entrando em contato para fazer uma parceria com os Brô”, diz. Os músicos, então, embarcaram para a gravação em Minas Gerais. Chegaram apreensivos, mas decidiram contar a história ocorrida no show em Mato Grosso do Sul, onde tiveram de assisti-lo debaixo do palco. “Ele ficou super mal, nos disse que essa ordem jamais partiria dele”, conta Bruno. O ocorrido virou letra da música Jarahá ('estamos levando', no idioma guarani), gravada em parceria com Alok. Em 2022, Alok voltou a tocar em Dourados e decidiu chamar os Brô para participar do show. Os irmãos indígenas cantaram pelas causas de seu povo, na língua guarani, desta vez em cima do palco.
Os Brô seguem fazendo um trabalho pesado, com a ajuda de parentes, mas agora por um passo importante na carreira musical: a construção de um próprio estúdio na terra vermelha da aldeia Bororo. Segundo eles, será o primeiro estúdio de música em uma aldeia indígena no país, financiado pelo Instituto Alok. As obras estão atrasadas devido ao excesso de chuva fora de época na região e as constantes faltas de luz e água na reserva. Em paralelo, os Brô gravam seu primeiro álbum.
No 13º ano de carreira, a música levou os guarani-kaiowá a patamares que não esperavam. Em 3 de setembro, o grupo subirá ao palco do Rock in Rio a convite do rapper Xamã. O artista carioca, de 32 anos, se tornou neste ano o cantor brasileiro com mais ouvintes mensais na plataforma Spotify. Era um menino que vendia balas nas ruas da Lapa, no Rio de Janeiro, quando decidiu viver de música depois de ver um show na rua do Brô MC’s. Além disso, a música Jahará está na trilha sonora da nova edição da novela Pantanal, da Rede Globo.
Os integrantes do Brô MC's constróem, com a ajuda de familiares, o que será o primeiro estúdio de música em terra indígena no Brasil. O projeto é financiado pelo Instituto Alok, do renomado DJ brasileiro.
Inspiração e exemplo
O Brô MC’s serviu de inspiração para outros artistas indígenas que começaram suas carreiras nos últimos anos e encontraram, na música, um meio para divulgar a cultura, a língua e as causas de seus povos. Eric Terena, 29, é conterrâneo dos Brô e também obteve das ondas do rádio o seu aprendizado. Enquanto crescia, mudou-se com a família para a capital sul-mato-grossense, onde sua mãe fundou a Associação de Moradores Indígenas de Campo Grande e o pai trabalha na rádio pública do estado até hoje. Para Terena, a mudança representou um “processo de embranquecimento”, mas foi necessária pela busca da sobrevivência da família e de sua comunidade. Ao mesmo tempo, foi o estopim para sua introdução na música.
“Meu pai me levava para a rádio porque não tinham com quem me deixar. Depois, quando eu ficava em casa, ele ligava avisando que ia tocar determinada música, e eu ficava com a fita no ponto para gravar”, conta Terena. “Quando ia para a aldeia, eu levava aquele mix com rock, pop e MPB para todo mundo ouvir. Os mais velhos que não gostavam muito, queriam ouvir mais chamamé e vanerão.”
Terena aprendeu a tocar violão com os tios, que tinham uma banda chamada Halley. Nos shows, os parentes tocavam clássicos do rock dos anos 1970 aos 1990. Nos intervalos, o sobrinho assumia como DJ – um trabalho que seguiu aos finais de semana, mesmo após Terena conseguir uma bolsa para estudar engenharia da computação. Depois de um ano de estudo, não se identificou com o curso e decidiu mudar para jornalismo. Na comunicação, ele encontrou seu caminho. Estagiou no portal G1, trabalhou na campanha da candidata Sônia Guajajara à vice-presidência da República, em 2018, e criou o Mídia Índia, uma plataforma focada na divulgação de projetos e notícias de todas as etnias, que conta com uma equipe de 90 pessoas pelo país.
Como DJ, Terena busca manter as raízes ancestrais em seu processo de criação. Ele inicia suas músicas com cantos tradicionais, cuja batida tem origem na gravação de sons da natureza. “Eu não faço remix de sons originários, é preciso ter respeito”, ele observa. “O que você ouve quando toco é a batida da taquara no chão, o som que ecoa quando batucamos numa árvore sumaúma ou o canto de um pássaro sampleado, todos sons da floresta.” Terena realiza ainda parcerias com outros artistas indígenas, como Djuena Tikuna na música Tetchi'arü'ngu.
A carreira de Terena não se restringe às pistas do Brasil. Ele participou da Marcha pelo Clima de Nova York em 2019; tocou no evento Vozes da Amazônia, durante a Conferência do Clima de 2021, em Glasgow, no Reino Unido; já fez turnê pela Europa e, neste ano, integrou o setlist do Festival de Glastonbury, na Inglaterra. Nas plataformas de streaming, sua música toca em 14 países. “Percebi que há menos barreiras para o Eric DJ do que para o Eric jovem líder da comunidade. A música abre caminhos. A gente ouve o lançamento de algum artista internacional e pode até nem entender o que ele está falando, mas se sensibiliza com a melodia, o tom, a sonoridade, e isso acontece quando eu toco Tetchi’arü’ngu, por exemplo.”
Werá Jeguaka Mirim, de 21 anos, é um guarani-mbyá que vive na aldeia Krukutu, na Terra Indígena Tenondé Porã, a 65 quilômetros de São Paulo. Na carreira de rapper, Owerá já cantou com Caetano Veloso, Maria Gadú e Criolo, além de parcerias com outros grupos indígenas como o Brô MC’s e Oz Guarani.
Já Werá Jeguaka Mirim, mais conhecido como Owerá, é um rapper que vive na aldeia Krukutu, na Terra Indígena Tenondé Porã, no extremo sul de São Paulo. Apesar de bastante jovem, o guarani-mbyá de 21 anos já tem muita história para contar. Ele se tornou conhecido por um ato que não está relacionado à música. Na abertura da Copa do Mundo de Futebol de 2014, Owerá foi uma das três crianças escolhidas para soltar as pombas da paz antes do jogo de abertura, na Arena Corinthians (hoje chamada Neo Química Arena), em São Paulo. Corajoso, decidiu se valer da ocasião para expor as causas indígenas. Após soltar a pomba, esticou uma faixa onde se lia: “Demarcação Já”. O gesto foi exibido na transmissão ao vivo para o resto do mundo, mas não apareceu na exibição brasileira.
Logo depois, a imprensa estrangeira foi atrás de Owerá para saber, afinal, o que estava escrito naquela faixa. Essa frase era só parte da luta que o garoto herdou de seu pai, Olívio Jekupé, filósofo e escritor com mais de 20 livros publicados. O pai sempre o levava e estimulava a participar junto das palestras que fazia em escolas e faculdades, e isso inspirou o filho a escrever. Outras artes também atraíam Owerá. Com apenas sete anos ele produziu seu primeiro curta, sobre a influência da chegada da tecnologia e do celular na mudança da comunicação de um jovem indígena. Aos 13, publicou um livro junto ao seu irmão, mas foi no rap que encontrou, de fato, a melhor maneira para comunicar o que sente.
“Comecei em 2015, sem nenhum apoio ou divulgação, só nas redes sociais. No início meu pai não gostou muito da ideia. Eu já cantava a música tradicional guarani e passei a fazer letras de rap. Hoje, ele me apoia e sempre ajuda a divulgar a minha música”, conta Owerá. O rapper guarani já fez parcerias como Caetano Veloso, Maria Gadú, Criolo e Novíssimo Edgar, além das parcerias com os próprios Brô MC’s e Oz Guarani.
Neste ano, Owerá lançou a música Existir para Resistir, com apoio da Universidade de Manchester, na Inglaterra, e está fazendo apresentações no projeto Natura Musical. Apesar da projeção nacional, o rapper prefere se reservar no cotidiano da aldeia. “Eu não gosto de ter uma vida muito acelerada, isso pode acabar me prejudicando mais do que me ajudando", conta. "Sou bem caseiro, vivo em outro ritmo, curto mais ficar aqui na aldeia para limpar meu quintal, cuidar do meu filho, ficar com os cachorros, as galinhas e os patos."
Owerá sabe que sua situação é bastante diferente dos parentes de Dourados, em Mato Grosso do Sul. A aldeia onde mora, no extremo sul de São Paulo, está rodeada pela maior região metropolitana do país, mas não sofre tantas ameaças enfrentadas por outras terras indígenas. Mesmo assim, ele se mantém firme na luta pela demarcação de terras e pelo respeito à cultura e à tradição dos povos originários.
Apesar da projeção nacional, Owerá valoriza os tempos tranquilos no cotidiano na aldeia, rodeado pela Mata Atlântica do extremo sul de São Paulo.
Futuro Ancestral
O quarteto do Brô MC’s, Eric Terena e Owerá participam – junto com indígenas huni kuî, yawanawá, guarani, kariri xocó, kaingang, xakriabá, guarani kaiowá e guarani nhandeva – do Futuro Ancestral, um projeto gravado em parceria com o DJ Alok, que deve ser lançado em 2023. É uma história que começou em 2014, quando o DJ ouviu uma música yawanawá enquanto buscava inspiração, durante uma vivência na floresta na aldeia dos yawanawá, às margens do rio Gregório, no Acre. “Ali começou todo esse processo. Eu percebi que, enquanto fazia música para entrar no Top 10, seguindo fórmulas, eles faziam música para curar. Isso foi uma mudança de paradigma que me fez ressignificar várias coisas”, conta Alok.
Para Alok, a melhor maneira de ouvir a floresta é através dos cantos indígenas. “A gente fala muito em preservar a floresta. Mas como vamos pedir para as pessoas preservarem algo que elas não entendem? Elas já se desconectaram há muito tempo. Só que você não precisa entender o que falam para entender a mensagem.”
Uma prova de que há interesse em ouvir as vozes indígenas foi o show produzido por Alok para o Global Citizen, evento internacional que aconteceu em 2021. “Eles queriam que eu gravasse no bondinho do Pão de Açúcar. Falei que não, que tinha que ser no meio da Amazônia”, conta. Assim, o show que seria apresentado somente para o Brasil passou para a abertura internacional do evento, que teve também Elton John e os sul-coreanos do BTS.
Alok considera que nada pode ser mais tecnológico que a floresta e que, para pensarmos na sociedade do futuro, é preciso garantir a representatividade dos povos indígenas. Isso envolve combater o preconceito que, por exemplo, fez com que os músicos do Brô MC’s tivessem de assistir escondidos ao show do Alok. “Quando eles me contaram a história do palco, fiquei com muita raiva. Foi mais uma mentira contada para que se sentissem inferiores", diz o músico. "É uma situação surreal. Eles sofrem muito com essa falta de representação – não tem indígena na novela, não tem indígena apresentando o jornal, por exemplo."
Com o uso da tecnologia, Alok quer contribuir para manter as culturas ancestrais. Alguns cantos sagrados sobreviveram na oralidade por centenas de anos. Entretanto, muitos estão se perdendo com a morte de anciãos e a pressão da cultura urbana sobre muitas etnias. Para manter vivas essas mensagens, o DJ gravou 135 cantos tradicionais e eles se tornaram NFTs (token não fungível), um tipo de informação digital que nunca mais pode ser mudada. Os royalties desses projetos com Alok e seu instituto são convertidos para os povos que integram as ações.
Rasu Yawanawá é um dos jovens líderes de sua etnia, originária da região do Rio Gregório, do Acre, na fronteira brasileira com o Peru. “Os yawanawá por milhares de anos utilizaram basicamente a voz como instrumento, alguns utilizavam flauta, mas só. Hoje a gente trabalha muito os cantos com os jovens para manter a nossa espiritualidade viva, e também a compartilhamos com o mundo branco. Sinto que isso ajuda a expandir a consciência das pessoas”, considera.
Cultura como arma de luta
As músicas que hoje misturam versos nas línguas originárias com o português, além de diferentes ritmos e estilos, têm origem nos saberes que foram transmitidos pela oralidade durante milênios. Sons considerados sagrados não têm uma autoria específica, pois os cantos chegam como mensagens divinas, vindas do mundo espiritual. Algo muito forte para o jovem líder indígena Rasu Yawanawá, de 26 anos, que também gravou com Alok. Rasu é um dos muitos cantores deste povo que vive às margens do rio Gregório, no coração da Floresta Amazônica, no Acre. A reportagem o encontrou na Aldeia Akasha, em Itaipava, Rio de Janeiro, onde Rasu compartilhava sua música e saberes com pessoas não indígenas antes de sair em sua primeira viagem internacional. O caminho ao estrangeito já foi trilhado por outros representantes yawanawás, povo conhecido pela voz forte, tanto dos homens como das mulheres, como Hushahu e Putani Yawanawá, artistas que há anos divulgam a cultura de sua etnia em viagens pelo mundo.
Os yawanawá encontraram na cultura uma saída para mudar sua história. “Nós quase fomos extintos há muito tempo, mas nossos ancestrais decidiram expulsar os brancos e passamos a viver a nossa própria realidade”, conta Rasu. Iniciado no fim dos anos 1990, esse processo transformou em fonte de sobrevivência a transmissão de saberes culturais e rituais, mas também teve a incorporação de instrumentos de culturas não-indígenas, como o violão. “Os yawanawá, por milhares de anos, utilizaram basicamente a voz como instrumento. Alguns utilizavam flauta, mas só. Hoje a gente trabalha muito os cantos com os jovens para manter a nossa espiritualidade viva, e também os compartilhamos com o mundo branco. Sinto que isso ajuda a expandir a consciência das pessoas”, considera Rasu.
O cacique Biraci Nixiwaka, avô de Rasu, foi um dos mentores desse processo de mudança, ao lado de outras lideranças, como Tatá e seu filho Shaneihu, que levou o violão para a aldeia. Para o cacique, a música é capaz de encantar as pessoas, mas é preciso ter cuidado na maneira como são realizadas as gravações. “Já tivemos problemas com muitas pessoas que vêm até a floresta e gravam, às vezes até com boa intenção, mas alguns levam para a cidade e modificam alguma coisa e registram em seu nome, isso é errado”, pondera o cacique. Além da possibilidade do roubo de saberes, outro problema é o conflito com o modo branco de registro de propriedade intelectual. O registro com um único autor é obrigatório no sistema da União Brasileira de Compositores, que não aceita em seu sistema composições em línguas indígenas, por exemplo.
Rasu no sítio Akasha, no Rio de Janeiro, um dos lugares onde faz cerimônias e vivências nas quais compartilha os ensinamentos sobre as rezas, cantos e tradições do povo yawanawá.
Carou Trebitsch e Nana Vasconcelos Orlandi, produtoras do canal Mi Mawai, do Rio de Janeiro, tiveram que enfrentar esse problema quando decidiram apoiar a gravação de um álbum com músicos da etnia huni kuî, do Acre. “Além do processo com o tempo da floresta, pois eles tiveram que aprovar a gravação em assembleia, não conseguimos registrar o álbum no sistema. Buscamos orientação dos órgãos públicos e ninguém sabe como alterar”, afirma Carou. Com isso, elas se comprometeram a repassar os recursos advindos das músicas gravadas para o povo indígena, em um compromisso vitalício.
As produtoras organizaram um ciclo de debates sobre a percepção dos povos indígenas sobre esse processo da música na contemporaneidade, que contou com a participação de Ailton Krenak, e produziram o documentário Música é Arma de Luta, filmado durante o Acampamento Luta pela Vida, em Brasília, em 2021.
Para o cacique Biraci, esse é o caminho mais eficiente para lutar pelos direitos indígenas. “Não é sábio lutar pela forma física. Temos que usar a beleza. A luta é com amor, com a pureza, e não com a violência. Assim, você encanta as pessoas, pois até o mais feroz carniceiro tem coração, até ele se curva diante disso”, diz a liderança yawanawá, que considera que o sucesso dessas experiências trouxe reconhecimento de toda a região para o povo. “Hoje até os políticos e empresários querem tirar fotos com a gente.”
Esse tipo de mudança é visível em diversos níveis na vida dos músicos indígenas. Afinal, nas palavras de Kelvin Mbaretê, do Brô MC’s: “A música é como uma flecha. Onde a gente aponta, ela chega”.