Sobrevivente de seis campos de concentração carrega o Holocausto marcado na pele e na memória

Auschwitz, Buchenwald, Spaichingen, guetos e marchas da morte: o polonês Kiwa Kozuchowicz considera-se hoje brasileiro e, aos 96 anos, é um símbolo das atrocidades cometidas pelo nazismo.

Por Gabriel de Sá
Publicado 2 de set. de 2019, 07:38 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
Aos 96 anos, Kiwa mira a cidade São Paulo da sacada de seu apartamento: "O Brasil me deu tudo o que tenho. Olhe para minha família, todos nasceram aqui, somos brasileiros”.
Foto de Gabriel de Sá, National Geographic Brasil

Não se diferenciava os homens das mulheres. Todos eram praticamente iguais: magros, pálidos, carecas e, muitas vezes, desdentados. Foi nesse cenário desolador que o polonês Kiwa Kozuchowicz virou apenas uma combinação de letra e números: B513. O ano era 1944 e, no subcampo de Buna/Monowitz, parte do campo de extermínio de Auschwitz, na Polônia, não havia espaço para Kiwa ou qualquer traço de sua personalidade – ele era apenas mais um, o B513. Para não haver dúvidas, então, os oficiais que tomavam conta do local tatuarem-lhe o algarismo no corpo, tal qual faz-se a um animal.

“Os nomes, poderíamos mudar. Os números marcados na pele eram intransferíveis”, evoca Kiwa em entrevista à National Geographic Brasil. Hoje, a memória do judeu de 96 anos por vezes falha, mas as marcas na pele não o deixam esquecer dos horrores que viveu sob o regime nazista. Mesmo que esmaecida pela implacabilidade do tempo, ainda é possível ver a tatuagem numérica no antebraço esquerdo do sobrevivente do Holocausto nascido em Pacanów, Polônia, e radicado no Brasil desde 1949.

Kiwa sobreviveu diversas vezes. Antes de Auschwitz, esteve preso nos campos de Skarżysko-Kamienna, Szkolna e Pionki, também na Polônia. Depois, em Buchenwald e Spaichingen, na Alemanha. “Eles me mandavam de um lugar para o outro”, conta Kiwa à reportagem, em uma tarde de agosto, no apartamento em que vive com a esposa, Josette, em São Paulo. A história, contudo, mostra que Kiwa provocou a maioria das mudanças, em uma busca ativa pela sobrevivência. O judeu polonês esteve ainda no gueto de Radom, foi submetido a duas marchas da morte e perdeu praticamente todos os familiares.

Kiwa Kozuchowicz em 1939, aos 17 anos: o Holocausto exterminou 90% da população judia na Polônia.
Foto de Arquivo Pessoal, Kiwa Kozuchowicz

Holocausto é o nome que se dá ao extermínio de cerca 6 milhões de judeus na Europa pelo regime nazista de Adolf Hitler e seus colaboradores durante a Segunda Guerra Mundial, cujo marco inicial foi a invasão da Alemanha à Polônia, em 1º de setembro de 1939, há exatos 80 anos.

A Polônia era ocupada por judeus havia oito séculos, e 3,3 milhões de poloneses de origem judaica viviam no país no início da guerra, sendo a nação europeia com maior população judia. No fim do confronto, quando o nazismo foi derrotado pelas forças aliadas (União Soviética, Inglaterra, França e Estados Unidos), restavam apenas 380 mil judeus poloneses. Com quase 90% da população judia exterminada, a Polônia foi o país onde o Holocausto tomou sua forma mais atroz.

O antissemitismo, definido como “ódio aos judeus”, tem raízes políticas, raciais, sociais e religiosas. Apesar de bastante difundido na Europa ao longo dos séculos, ganhou robustez com a ascensão do partido Nacional Socialista de Hitler na Alemanha, em 1933. A aversão aos judeus poloneses aparece nas memórias pueris de Kiwa. Ele se lembra de, ainda bem criança, ser acusado por colegas de escola cristãos de ser um dos “assassinos de Jesus Cristo”. Passagens como essa fomentaram a separação de judeus e cristãos em sala de aula. Foram os nazistas, entretanto, que levaram o ideal do antissemitismo ao extremo, com a adoção da Solução Final, que visava exterminar todos os judeus, povo considerado inferior por eles.

Caminhos para a morte

É preciso acompanhar com atenção a trajetória de horrores de Kiwa para não se perder em meio a tantos nomes e detalhes. Coube à psicóloga Rosana Kozuchowicz Meiches, filha de Kiwa, a missão de compilar a história do pai. “Só vim a saber que ele era um sobrevivente do Holocausto quando eu tinha 12 anos”, diz ela, autora da minuciosa biografia Nos Campos da Memória – A História de Kiwa Kozuchowicz (Humanitas, 2012). Foram dois anos de longas conversas semanais, gravadas e depois colocadas por ela em ordem cronológica.

E o relato começa com Kiwa tornando-se órfão de mãe ainda muito cedo. Ele tinha uma irmã e dois irmãos – um deles morreu criança. Depois de perder a esposa, o pai de Kiwa, Simcha, casou-se novamente, e vieram mais três irmãs. O garoto judeu foi, então, criado pelo pai com a ajuda da avó. A família vivia em Łódź, na Polônia, quando as tropas de Adolf Hitler invadiram o país. O controle do território pelo regime nazista foi rápido e, em poucos dias, os judeus tiveram de passar a usar uma Estrela de David, símbolo religioso judaico, nas roupas. Espancamentos e humilhações do povo de origem judaica passaram a ser comuns nas ruas. A família retornou à pequena Pacanów para tentar evitar ou prorrogar o que estava por vir, mas o controle nazista tornou-se implacável.

Em 1942, Kiwa era um jovem forte de 19 anos quando foi recrutado para fazer o carregamento de um trem na cidade de Szczucin, ao lado de outros 14 judeus poloneses. Ao chegar ao local indicado, contudo, percebeu o clima hostil por parte dos oficiais e acabou fugindo. Outro homem foi recrutado para seu lugar e, sobre aqueles 15 rapazes, nunca mais se ouviu falar. Não voltaram para casa.

Um acordo dos nazistas com a liderança judaica de cidades polonesas possibilitou que jovens judeus fossem trabalhar como voluntários em uma fábrica na cidade de Skarżysko-Kamienna, com a promessa de que as famílias não seriam incomodadas. Kiwa, então com 20 anos, e o irmão, Shloime, com 23, apresentaram-se para a missão. Era chegada a hora, então, de dizer adeus aos familiares. Kiwa nunca mais os veria.

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    por Kiwa Kozuchowicz
    Sobrevivente do Holocausto

    As condições de vida no campo de trabalho forçado de Skarzysko-Kamienna eram extenuantes e a relação com os oficiais da SS, que tomavam conta do lugar, de extrema hostilidade. SS, sigla para Schutzstaffel, era o nome do temido exército de elite nazista comandado por Heinrich Himmler. Juntos com outros internos, Kiwa e o irmão foram levados à cidade de Radom para trabalhar como pedreiros e ficaram acomodados em um gueto. Nesse local, ocorriam a cada dois ou três meses as oblavas, ou “limpezas”, em que algumas centenas de judeus eram exterminados pelos oficiais nazistas. Muitos eram enviados para o campo de Treblinka.

    [Relacionado: “'Passei a vida perguntando por que sobrevivi ao Holocausto', diz homem preso pelos nazistas aos 7 anos"]

    Ainda em Radom, Kiwa e o irmão foram levados para o pequeno campo de Szkolna, onde trabalharam como construtores por seis meses. De lá, foram conduzidos por truculentos soldados ucranianos para um campo de trabalhos forçados na cidade de Pionki. Kiwa foi servente de pedreiro e o irmão, faxineiro. Os presos viviam à base de pão e sopa, além de vodca de batata e beterraba usada para lavar equipamentos. Kiwa conseguiu ser promovido a pedreiro e a vida ficou um pouco mais fácil, o que lhe garantiu meses extras de vida. A Rússia invadiu a Polônia em julho de 1944 e Kiwa soube que seria transportado para o temido campo de extermínio de Auschwitz. Ele e o irmão despediram-se para sempre. Segundo Rosana, acredita-se que Shloime tenho sido assassinado em uma tentativa de fuga de Pionki.

    1 milhão de judeus morreram em Auschwitz

    Auschwitz foi o maior complexo de campos de concentração e extermínio estabelecido pelos nazistas. Em suas dependências morreram mais de 1 milhão de judeus em câmaras de gás. Havia três estruturas separadas: o subcampo Auschwitz I; o Auschwitz II, campo de extermínio também chamado de Auschwitz-Birkenau; e Auschwitz III (Buna/Monowitz). A primeira lembrança de Kiwa é pavorosa: “Judeus ortodoxos oravam, crianças abraçadas por suas mães, um cenário estarrecedor de gritos, violência e judeus sendo surrados”.

    No primeiro banho coletivo, o medo maior era de que saísse gás letal dos chuveiros, mas os presos receberam apenas água gélida e desinfetante em seus corpos macérrimos. Ganharam o uniforme listrado do campo, o pashak, e tamancos de madeira que dificultavam o caminhar. Foi ali que Kiwa foi marcado no braço, “como um animal”, e levado para o subcampo de Buna/Monowitz, onde viviam 15 mil pessoas. Ele recorda-se do frio mortificante e arremata: “Foi triste. Muito poucos sobraram”.

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      B513: Kiwa foi tatuado "como um animal" em Auschwitz, mas diz que Spaichingen, na Alemanha, foi o pior campo de concentração pelo qual passou.
      Foto de Gabriel de Sá, National Geographic Brasil

      Não bastassem as condições precárias e subumanas a que fora submetido, Kiwa sobreviveu ainda a explosões e bombardeios em Buna/Monowitz, quando a Alemanha nazista começou a ruir. Os campos de Auschwitz foram evacuados e ele aportou no campo alemão de Buchenwald em fevereiro de 1945, após conseguir sobreviver à marcha da morte que guiou os prisioneiros até lá.

      A guerra estava próxima do fim, mas os horrores acumulavam-se nas vidas daqueles prisioneiros: dormiam 15 na mesma cama e carregavam pedras enormes para pavimentar as ruas. O alimento era um pedaço de pão e uma sopa aguada por dia, o que exigia apenas uma ida ao banheiro por semana. Apesar do pavio-curto, Kiwa manteve a astúcia mesmo nos momentos mais desesperadores. Percebeu que não aguentaria viver muito tempo naquelas condições em Buchenwald e, cinco semanas após chegar ao campo, voluntariou-se para trabalhar no subcampo de Spaichingen, resolvendo “apostar no desconhecido”.

      Spaichingen era um pequeno subcampo de Natzweiler-Struthof, no sudoeste da Alemanha, e, apesar do último, foi o pior campo pelo qual Kiwa passou. Trabalho extenuante, fome e violência desmedida resultavam em dezenas de mortes diárias. Por roubar uma marmita, Kiwa foi castigado pela primeira vez com chibatadas e sentiu-se “entorpecido pela dor”. Diante do avanço das tropas aliadas pelo território alemão, o campo foi evacuado pelos nazistas. Kiwa e outros 300 companheiros tiveram de enfrentar três noites em uma marcha da morte sangrenta, da qual conseguiu fugir rumo à tão ansiada liberdade.

      Kiwa (segundo a partir da direita) com amigos em mutirão de trabalho em Słupia, Polônia, em 1940, antes de ser submetido aos horrores dos campos de concentração.
      Foto de Arquivo Pessoal, Kiwa Kozuchowicz

      A filha Rosana conta que, ao fim da guerra, Kiwa apresentava condições de saúde relativamente boas. “Ele era um homem forte, apesar de estar muito magro. Alimentava-se de qualquer coisa que encontrasse para não sucumbir e ingeriu, inclusive, ração para cachorros”, relata a biógrafa.

      “O Brasil me deu tudo”

      Kiwa é um senhor brincalhão e muito sorridente, diferentemente da ideia que se possa ter de alguém com uma história de vida tão traumática. Por muito tempo, não comentou nem com os filhos sobre o tenebroso passado. Rosana diz, ao lado dos pais, que ninguém sabia como tratar desse assunto em casa. “Acho que ele queria deixar essa parte da vida dele de lado”, conta. A biógrafa diz que, entre os sobreviventes, houve quem recomeçasse do zero, como o pai. Mas muitos se mudaram para Israel, outros abandonaram o judaísmo e alguns nunca conseguiram recuperar-se verdadeiramente dos traumas do Holocausto.

      Kiwa guardou o uniforme de Auschwitz e posou para um retrato em julho de 1945. Ele havia ganhado peso deviso à superalimentação depois de ser libertado.
      Foto de Arquivo Pessoal, Kiwa Kozuchowicz

      Kiwa viveria ainda na Alemanha e na França antes de embarcar novamente rumo ao desconhecido. Ele sabia de amigos também sobreviventes do Holocausto que haviam migrado para o Brasil, mas o plano era partir para a Argentina, onde tinha parentes. No caminho, desembarcou no Rio de Janeiro em 1949, em pleno carnaval, e ficou atônito com a exoticidade do que viu. “Meus amigos falaram para eu ficar e eu fiquei”, comenta.

      Esposa de Kiwa, Josette Kozuchowicz, 86 anos, é de Campos de Goytacazes (RJ). Filha de poloneses, trabalhava em um escritório de contabilidade em São Paulo quando conheceu o futuro esposo. Casaram-se em 1959. No Brasil, Kiwa começou como mascate, trabalhou como representante de relógios suíços, depois abriu uma fábrica de joias e, então, entrou para o ramo da construção civil, cujo negócio é hoje tocado pelo filho, Silvio.

      Rosana acredita que falar sobre o Holocausto é sempre necessário, tanto dentro quanto fora da comunidade judaica, sobretudo para evitar que movimentos antissemitas voltem a ganhar força. “Negar o Holocausto é, de alguma forma, servir ao antissemitismo”, acredita ela. Kiwa mostra-se feliz por ter sobrevivido e por ser brasileiro, e louva o país por ter lhe “dado tudo o que tem”. “Olhe para minha família, todos nasceram no Brasil, somos brasileiros”, orgulha-se.

      Estar diante de um homem que sobreviveu a seis campos de concentração e, aos 96 anos, está vivo para contar o que viu é de uma responsabilidade enorme. Mas Kiwa culpa o acaso pela sobrevivência. Ou, como disse a Rosana no livro de memórias: “Acredito que sobrevivi por sorte, por puro acaso simplesmente, assim como os grãos que restam ao acaso numa peneira, quando se peneira qualquer coisa.”

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