As atrocidades do antissemitismo nazista na Romênia sob o olhar de um garoto
“Só não morri em Auschwitz por que uma tempestade de neve não me deixou embarcar para lá”, conta Joshua Strul, sobrevivente do Holocausto radicado no Brasil.
Faltou muito pouco para que o romeno Joshua Strul e a família fossem deportados para o campo de extermínio de Auschwitz-Birkenau, na Polônia, em 1942. Eles viviam em um gueto para judeus na cidade de Bacău, Romênia, e, quando apresentaram-se às autoridades nazistas, uma tempestade de neve impediu que os funcionários da ferrovia engatassem os vagões para a embarcação. “Eu sobrevivi ao Holocausto por milagre divino”, diz ele, que tinha 9 anos. Joshua não esteve em campo de concentração, mas é um retrato vivo de como o antissemitismo nazista destruiu a vida de milhões de famílias judias na Europa durante a Segunda Guerra Mundial.
Aos 86, Joshua Strul insiste em não esquecer as atrocidades do que ouviu e viveu. Com o mesmo pavor daquele garoto de 9 anos que viu o irmão caçula morrer de fome, ele guardou os relatos aterrorizantes dos homens que voltaram à Romênia quando a guerra acabou, em 1945. Eles contavam histórias reais sobre crianças enviadas diretamente para câmaras de gás letal, mulheres que morreram de pé em vagões de gado e corpos anônimos cremados para serem transformados em sabão.
Joshua havia retirado um dente no dia anterior à entrevista para a National Geographic Brasil e recebera recomendações para evitar falar. Contudo, deu de ombros para a ordem médica e, no Clube Hebraica, em São Paulo, onde recebeu a reportagem, cumprimentou alegremente todos os conhecidos com quem cruzou. Em uma tarde fria, porém ensolarada de agosto, o senhor romeno convidou-nos a adentrar a silenciosa sinagoga do local. Vestindo um quipá, espécie de chapéu usado pelos judeus, narrou por duas horas a trajetória da família Strul, que comeu grama frita para não morrer de fome, não se adaptou ao então recém-criado estado de Israel e resolveu recomeçar a vida em São Paulo.
“Tenho muito orgulho do povo judeu, que se reergueu das cinzas do Holocausto e criou um estado moderno.”
Em 1930, a Romênia tinha cerca de 728 mil judeus, ou 4% da população. Apesar de relativamente pequena, a comunidade judaica era malvista, e sofria com a perseguição da Guarda de Ferro, movimento político de ideais fascistas que tomou forma no país em 1927, com Corneliu Codreanu à frente. Neste contexto, uma aliança de extrema direita levou ao poder, como primeiro-ministro da Romênia, em 1940, o general Ion Antonescu, notável antissemita.
Ele governou o país entre setembro de 1940 e agosto de 1944. Com Antonescu no comando, a Romênia aliou-se aos países do Eixo (Alemanha, Itália e Japão) em 20 de novembro de 1940. A Segunda Guerra Mundial foi iniciada formalmente com a invasão da Polônia pela Alemanha nazista em 1º de setembro de 1939, há 80 anos.
“Comemos grama frita e casca de batata”
Sob as rédeas de Ion Antonescu, uma série de medidas restritivas contra os judeus romenos foram lançadas. Joshua Strul lembra-se bem do momento em que o antissemitismo passou a ser praticado pelas forças oficiais e endossado por parte da imprensa, que “culpava o judaísmo pela raiz de todos os problemas da humanidade”. Escolas judaicas foram fechadas, sinagogas foram profanadas e transformadas em estábulos.
Na capital da Romênia, Bucareste, intelectuais judeus foram massacrados. “Pessoas eram penduradas em matadouros de bois”, conta Strul. Estima-se que pelo menos 270 mil judeus romenos tenham sido assassinados ou mortos vítimas de maus tratos durante o Holocausto, nome dado ao genocídio de mais de 6 milhões de judeus na Europa pelo regime nazista de Adolf Hitler e seus colaboradores.
Cidadãos judeus foram mortos por forças oficiais nas ruas das grandes cidades da Romênia, além de terem seus comércios saqueados e bens confiscados, segundo o United States Holocaust Memorial Museum. Em um pogrom na cidade de Iasi, em 1941, 4 mil judeus foram assassinados em suas casas e em vias públicas. Pogrom, palavra de origem russa, refere-se aos ataques violentos contra as populações judias da Europa, incentivados pelo partido nazista.
Joshua Strul nasceu em Moineshti, no ano de 1933. Um quarto da cidadezinha de 12 mil habitantes era de judeus. O pai, Fischel, era comerciante de cereais, e a família mantinha relações cordiais com os romenos cristãos. Fischel e a esposa, Rosa, tiveram sete filhos: Leon, Herman, Emanuel, Joshua, Michel, Carol e Villy. Em um dia cinzento de outubro de 1941, cerca de 200 famílias judias foram expulsas de Moineshti. Um decreto da Gestapo confiscou todos os bens dos judeus e os obrigou a deixarem a cidade em 48 horas.
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Strul diz que a maioria daquelas pessoas era de comerciantes de cereais e queijos ou operadores de poços de petróleo, “uma população trabalhadora e pujante". As famílias rumariam para Bacău, cidade a cerca de 60 km de Moineshti, sob a pena de serem fuzilados sumariamente caso não obedecessem.
Os Struls seguiram em uma carroça para Bacău, e então confinados na periferia da cidade, em uma espécie de gueto. Sem infraestrutura adequada ou saneamento básico, eles viviam sob um frio congelante no inverno e um calor sufocante no verão. “Forrávamos as calças com jornal para não congelar.” Bibliotecas, praças públicas e teatros eram proibidos para judeus.
O então garoto chegou a apanhar na rua. “Judeu fedorento, sujo, assassino de Jesus”, ouviu de dois rapazes em praça pública, antes de acertarem-no golpes. “Juro que não fui”, respondeu Joshua. Para evitar problemas desse tipo, a mãe, Rosa, deixou o menino enclausurado no barracão em que viviam. Outra lembrança é a de judeus enforcados publicamente por tentarem fugir do gueto.
Para aplacar a fome, Joshua conta que a mãe chegou a fritar grama na gordura de ganso para os filhos. Cascas de batata e folhas de cenoura também viraram alimento. Por conta da dieta insuficiente, Villy, o filho caçula de Rosa e Fischel, morreu de inanição em 1942. Ainda assim, a família Strul, salva por acaso dos horrores de Aushwitz-Birkenau, teve a sorte como o maior aliada na Segunda Guerra Mundial.
Em 1943, Fischel e o filho Leon foram convocados pelo exército romeno, aliado aos nazistas, para cavarem trincheiras contra as forças soviéticas em um campo de trabalhos forçados nos arredores da região da Bessarábia. Eles só retornariam à família em agosto de 1944, quando a União Soviética conquistou a Romênia e as tropas passaram, então, a lutar ao lado dos Aliados (Reino Unido, França, Estados Unidos e União Soviética). Fischel voltou irreconhecível, pesando 38 quilos, mas a família Strul estava novamente reunida.
Comunismo, Estado de Israel e Brasil
A intensa disputa de poder na Romênia durante os três anos após a derrocada de Ion Antonescu terminou com a ascensão dos comunistas em 1945, apoiados pela União Soviética de Joseph Stalin. Sob regime totalitário e constituição baseada no modelo soviético, aspectos da vida social da população romena passaram a ser gerenciados pelo estado com mão de ferro. A família Strul não se acostumou à Romênia do pós-guerra.
Depois de reerguerem a casa em Moineshti – Joshua conta que ela “estava depenada” –, a família foi avisada de que o estado tomaria conta de todas propriedades privadas do país. “Meu pai, de empregador, virou empregado do governo”, relata Strul. O irmão Herman havia partido para o Estado de Israel, e a família Strul resolveu emigrar rumo a uma nova vida.
Israel é o estado judeu estabelecido como país em maio de 1948, na região da Palestina, Oriente Médio, após decisão da Organização das Nações Unidas (ONU). O lugar era até então administrado pelos britânicos, depois da dissolução do Império Otomano na Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Os judeus consideram a Palestina, de onde foram expulsos no século 3 pelo Império Romano, sua terra sagrada. A região onde hoje é Israel voltou a ser povoada de forma mais intensa durante e após o Holocausto. Contudo, o território é objeto de longa e árdua disputa com os Estados Árabes e a população islâmica.
“Difundir valores de respeito ao próximo e à diversidade é criar um mundo melhor para todos.”
Estima-se que 100 mil romenos tenham emigrado para Israel. A família Strul, contudo, teve dificuldade em se adaptar ao novo país. Fischel, Rosa e os filhos viveram em condições precárias em um campo de absorção no deserto entre 1950 e 1955. “Não morremos de fome, mas passamos muita dificuldade”, diz Joshua. “Havia uma forte crise econômica, pois o dinheiro do estado estava destinado para a defesa.”
Herman havia mudado antes para o país e morreu em 1948 em combate na Primeira Guerra Árabe-israelense, conflito chamado pelos judeus de Guerra de Independência. Como Leon chegara ao Brasil em 1947, convenceu a família, anos mais tarde, a se mudar para a América do Sul e recomeçar a vida.
Em São Paulo, Joshua começou a trabalhar como ambulante na Freguesia do Ó. “Chamavam-de turco, eu nem sabia falar português direito.” Comerciante, casou-se com a judia carioca Manuela, teve quatro filhos e 10 netos. Os pais, Fischel e Rosa, faleceram no Brasil e estão enterrados no Cemitério Israelita do Butantã. Entre os irmãos, Emanuel, com 88 anos, e Carol, com 82, estão vivos, morando também em São Paulo.
“Tenho muito orgulho do povo judeu, que se reergueu das cinzas do Holocausto e criou um estado moderno”, observa Joshua, que voltou a Israel diversas vezes ao longo dos anos. Ele descreve com entusiasmo a cultura e a religião judaicas, enobrece os vencedores judeus de prêmios Nobel (“somos mais de 22%”), mas se diz um religioso moderado.
Ainda hoje, Strul inquieta-se ao considerar que boa parte da população alemã foi conivente com os ideais nazistas, que além do extermínio do povo judeu, mirou em homossexuais, ciganos, deficientes físicos e opositores do regime. “O Holocausto não foi obra do acaso, foi planejado, arquitetado e legitimado por um povo”, pontua, avisando que não sente ódio. “Negar o Holocausto é um absurdo.”
O romeno diz que nunca se deve duvidar de que movimentos fascistas como os que geraram o Holocausto voltem a tomar forma no conturbado cenário global contemporâneo. Ele acredita, entretanto, que a educação é uma arma potente para combater o extremismo. “A desinformação é que faz com que o ódio seja disseminado”, lamenta. “Difundir valores de respeito ao próximo e à diversidade é criar um mundo melhor para todos.”