Quem foi a fotógrafa Lee Miller? De modelo aos registros nos campos de batalha da Segunda Guerra Mundial
A lendária modelo de revistas de moda que se tornou fotógrafa de guerra e quebrou muitas barreiras na frente e atrás das câmeras.
Elizabeth “Lee” Miller – vista aqui em um retrato tirado por volta de 1943– teve uma vida que rompeu fronteiras como modelo, artista surrealista e fotógrafa de guerra que capturou imagens icônicas da Segunda Guerra Mundial.
A norte-americana Lee Miller posou para uma fotografia na banheira enquanto o suor e a sujeira de semanas de guerra a lavavam. Só que não era um banheiro comum: era justamente o santuário pessoal do ditador nazista Adolf Hitler, que morreu de suicídio naquele mesmo dia em Berlim, na Alemanha.
Lee Miller, uma fotógrafa de guerra, havia entrado na casa de Hitler em Munique enquanto as forças aliadas lutavam pela Alemanha, e a improvável foto de uma mulher norte-americana tomando banho na banheira pessoal do Führer tornou-se uma das imagens mais indeléveis dos últimos dias da Segunda Guerra Mundial.
Como ex-modelo, Miller sabia como trabalhar seu melhor ângulo. Mas a imagem escondeu a complexidade de seu objeto de estudo – uma musa, uma artista trabalhadora e uma fotógrafa inovadora, cuja história de vida está sendo contada agora em um filme biográfico estrelado por Kate Winslet.
Veja como Elizabeth “Lee” Miller rompeu fronteiras na frente e atrás das lentes, desde a época que modelava nas páginas da revista de moda Vogue até seu trabalho fotográfico registrando os campos de batalha da Europa.
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Lee Miller modela para a revista norte-americana Vogue no apartamento de Condé Nast em 1928. Diz a lenda que Miller chamou a atenção do lendário editor da revista depois que ele a resgatou de um carro que se aproximava, um encontro que ela pode ou não ter planejado.
Uma modelo nada convencional
Miller nasceu em Poughkeepsie, no estado de Nova York, nos Estados Unidos, em uma família abastada, em 1907. Seu início de vida foi traumático, desde as dificuldades na escola até um estupro na infância que resultou numa infecção por gonorreia – na época uma doença estigmatizada e quase incurável – quando ela tinha apenas sete anos de idade. Suas relações familiares também eram difíceis; seu pai, Theodore, era fotógrafo amador e a usou como modelo nua durante toda a infância e adolescência.
Aos 18 anos, Lee Miller era ambiciosa, de uma beleza de cair o queixo e já queria romper com as normas convencionais. Foi então que ela se mudou para a cidade de Nova York para se dedicar à arte, à atuação e à carreira de modelo.
Por sorte – ou planejamento astuto – ela logo teve sua grande chance ao ser resgatada de um carro em sentido contrário por ninguém menos que o lendário editor da famosa revista Vogue, Condé Nast, o homem mais influente do setor da moda internacional.
O incidente logo se tornou uma lenda da moda; a historiadora da arte Patricia Allmer chama o fato de ela ter entrado na frente do carro de uma possível “decisão consciente”, pois Miller provavelmente sabia quem era Nast e estava ansiosa para chamar sua atenção. Logo, Lee Miller se tornou uma modelo consagrada.
Em 1929, a carreira de Miller sofreu uma reviravolta quando sua fotografia apareceu ao lado de um anúncio de tampões Kotex. Foi a primeira vez que uma mulher conhecida posou em um anúncio de produtos menstruais – o que foi um escândalo na época – e praticamente acabou com os dias de Miller como modelo de moda convencional. Ela passou a fazer trabalhos nos bastidores da Vogue e, em 1929, foi para a Europa para um projeto de pesquisa.
Foi lá que ela decidiu se tornar fotógrafa.
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Uma musa surrealista e uma fotógrafa em ascensão
Na Europa, Miller decidiu rapidamente se tornar aprendiz de um dos artistas mais conhecidos da França, o expatriado norte-americano e fotógrafo surrealista Man Ray. Com ousadia, ela se apresentou ao fotógrafo mais velho em seu estúdio em Paris e rapidamente se tornou sua aprendiz, amante e musa.
Mesmo quando a fotografia de Ray transformou o corpo de Miller em uma das figuras mais reconhecidas do movimento surrealista, ela se tornou uma fotógrafa perspicaz por si mesma. Miller colaborou com outros artistas, como Pablo Picasso e Jean Cocteau, e usou técnicas fotográficas inovadoras, como a solarização – quando o filme é superexposto para inverter os tons, criando um efeito de outro mundo – para promover sua própria arte.
No início da década de 1930, Miller voltou para Nova York, estabeleceu seu próprio estúdio de fotografia e começou a expor seu trabalho. Depois de um breve casamento com o empresário egípcio Aziz Eloui Bey, Miller conheceu o fotógrafo surrealista Roland Penrose, que ela seguiu para a Inglaterra e acabou se casando.
Enquanto vivia com Penrose em Londres, a Segunda Guerra Mundial estourou e Miller assumiu um novo trabalho que rompeu fronteiras: fotógrafa correspondente de guerra para a revista Vogue.
Uma fotógrafa de guerra inovadora
Naquela época, a maioria dos correspondentes de guerra eram homens. Miller trouxe tanto as lentes de um surrealista quanto o olhar de uma mulher para seu trabalho, documentando a Blitz enquanto ajudava a expandir o conceito do que uma revista de moda poderia cobrir.
Após o Dia D, ela saiu da Inglaterra e foi para o continente europeu, fotografando batalhas ativas contra a vontade dos oficiais americanos que não queriam uma mulher na linha de frente.
Para chegar mais perto do front, Miller juntou-se ao seu amigo e ex-amante Dave Scherman, um fotógrafo credenciado da revista norte-americana Life. “Ela foi a única mulher que ficou durante o cerco de Saint-Malo”, escreveu Scherman mais tarde. Ele passou a admirar sua coragem e determinação e, juntos, seguiram as forças aliadas enquanto lutavam em direção à Alemanha.
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Foi justamente Scherman quem tirou a foto de Miller tomando banho na banheira de Hitler poucos dias depois de se aventurarem no campo de concentração de Dachau com as forças aliadas. Não está claro de quem foi a ideia de colocar as botas de Miller, imundas com a sujeira das valas comuns que ela acabara de fotografar, no tapete outrora imaculado em frente à banheira do líder nazista.
Miller permaneceria na Europa para fotografar também as consequências da guerra, produzindo imagens memoráveis do efeito da guerra sobre mulheres e crianças e continuando a aperfeiçoar suas técnicas. Mas o estresse pós-traumático, a maternidade e o fim do entusiasmo da fotografia de guerra cobraram seu preço. Anos depois, Miller sofria de doenças mentais e desenvolveu um problema com o álcool.
Embora o perfil de Miller tenha se desvanecido nos anos do pós-guerra, escreve Allmer, sua lendária queda na obscuridade é apenas isso: um mito. Na verdade, Miller manteve-se ocupada após a guerra, tornando-se uma notável cozinheira gourmet, fotografando seu amigo Pablo Picasso e permanecendo ativa no mundo da arte.
Como uma “artista ativa e autodeterminada”, diz Allmer, Miller nunca desapareceu de verdade – apenas se transformou em uma nova versão de seu eu intransigentemente moderno. Ela morreu de câncer de pulmão aos 70 anos.
Hoje, graças em grande parte à defesa de seu filho, que preservou dezenas de milhares de suas fotografias e escreveu sua primeira biografia, o legado de Miller continua a influenciar o mundo da moda, da fotografia e da arte.
“A personalidade do fotógrafo, sua abordagem, é realmente mais importante do que seu gênio técnico”, disse Miller certa vez. Felizmente, Miller tinha ambos e com as biografias recentes e o filme biográfico, uma nova geração conhecerá essa mulher inovadora, ambiciosa e única.