Na reserva Chico Mendes, no Acre, um retrato da destruição da Amazônia
Vítima da expansão da pecuária e do comércio ilegal de terras e madeira, a reserva extrativista é uma das áreas de proteção mais atingidas pela alta do desmatamento na Amazônia Legal.
Os troncos de árvores que ainda estão em brasa e expelem fumaça são o sinal de que uma área equivalente a dois campos de futebol tomada pelas cinzas foi incendiada havia poucos dias.
Este é o cenário encontrado no começo de agosto na Reserva Extrativista (Resex) Chico Mendes, no estado do Acre, uma das áreas que melhor simbolizam o aumento do desmatamento e focos de queimada na Amazônia Legal em 2019. Até o dia 14 de agosto deste ano, 100 focos foram registrados na unidade – o maior número entre todas as áreas protegidas no Acre. Os dados são da Comissão Estadual de Gestão de Riscos Ambientais. Entre as unidades de conservação mais impactadas pelo desmatamento no país em 2019, a Resex Chico Mendes ocupa a quarta posição, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Nos últimos cinco anos, 119 km2 de floresta foram destruídos dentro da reserva. Em 2018, o desmate chegou a 22,8 km2.
A reportagem da National Geographic percorreu o interior da unidade por três dias. Foi o suficiente para testemunhar a abertura de novas áreas para pasto, retirada ilegal de madeira e venda irregular de lotes de terra – apenas alguns dos problemas enfrentados dentro da reserva. A pouca competitividade da economia extrativista e a perda da identidade dos moradores com o movimento histórico que levaram à criação da área protegida têm motivado as famílias a trocar a seringa pela criação de boi como atividade principal. A coleta da castanha e a extração do látex, cuja luta custou a vida de Chico Mendes, são agora apenas uma complementação de renda. Poucos são os que persistem no extrativismo como referência para fonte de sustento.
Assim é com Raimundo Mendes, o Raimundão, 74 anos. Como ativista ambiental, ele e o primo Chico Mendes percorriam os seringais de Xapuri para formar os “empates” –correntes humanas que impediam o avanço de máquinas e trabalhadores contratados para derrubar a floresta entre as décadas de 1970 e 1980 no Acre.
Raimundão reconhece os problemas dentro da unidade e aponta que alguns são praticados por quem um dia esteve na luta pela preservação. “Hoje estão fazendo papel de latifundiário”, diz ele. “Infelizmente, conquistas que nunca pensávamos de ter e tivemos, que foi o reconhecimento do trabalho do seringueiro e a criação da reserva, estão agora abandonadas e muitas dessas mesmas pessoas agora se comportam igual aqueles que um dia combatemos.”
Para Raimundão, a unidade está ameaçada tanto pela atividade dos moradores quanto pela falta de apoio e incentivo dos governos ao extrativismo. Ele também aponta como ameaça a falta de estrutura do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) – órgão responsável pelas áreas de reserva nacionais – para realizar as fiscalizações.
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Raimundão mantém a rotina de sair cedo de casa, entrar na estrada de seringa e cortar o caule da seringueira, de onde sai o látex. Depois de extraído, ele é prensado com leite coalhado e vira uma massa de borracha, cujo quilo é vendido a R$ 12,50 – valor que conta com subsídio do governo estadual. É essa subvenção que ainda assegura algum fôlego ao extrativismo diante da pressão da pecuária. Além da borracha, a coleta da castanha e um plano de manejo madeireiro operado por uma cooperativa de moradores que já licenciou 14 mil m³ de madeira são outras fontes de renda oferecidas pela floresta.
Desmatamento e pecuária
A Resex Chico Mendes foi criada 15 meses após a morte de seu idealizador. Ela possui 970 mil hectares espalhados por sete municípios do Acre e fica na região mais impactada pelo desmatamento no estado, cercada por grandes fazendas de gado. Com a nova política do governo local de fomentar o agronegócio na Amazônia, a reserva também pode ter como vizinha, nos próximos anos, as plantações de soja. Em quase 30 anos de existência, a área protegida já perdeu mais de 6% de sua cobertura florestal.
Além de preservar parte da Amazônia, a localização da reserva tem um outro papel estratégico. O procurador Joel Bogo, do Ministério Público Federal (MPF), explica que ela ajuda a conter avanço do desmatamento rumo a terras indígenas – em especial a Mamoadate – e outras áreas de floresta remanescente. E a pressão para romper esta barreira estratégica não é pequena. Estima-se que o custo para desmatar apenas um hectare de floresta seja 2 mil reais. Isso significa que quem desmata possui recursos para financiar essas atividades ilegais – e provavelmente vai querer um retorno alto pelo investimento.
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Pelo interior da reserva há grandes áreas abertas para a criação do boi. O plano de manejo permite a atividade, mas a limita a 15 hectares de cada propriedade, o que renderia, no máximo, 45 cabeças por família. Mas a realidade é outra. Algumas famílias têm mais de 100 animais. Na porção da reserva que abrange o município de Assis Brasil, o impacto da pecuária salta aos olhos. Ao se percorrer as estradas de barro (conhecidas como “ramal”) nem se parece estar no interior de uma reserva extrativista.
A chegada de novos moradores na reserva é o mais recente dos problemas. Embora seja ilegal, o comércio de terras dentro da Resex está crescendo. O casal Gilson Barbosa e Elizabeth da Cunha veio do município de Machadinho, em Rondônia. Eles dizem ter pago 180 mil reais por 100 hectares, mas que não sabiam se tratar de uma área protegida. “O pessoal do ICMBio disse que não poderíamos ficar aqui porque não temos o perfil para estar numa reserva extrativista. Disseram que só ia morar aqui quem voltasse aos tempos antigos e vivesse só da borracha”, diz da Cunha. “Quero saber, quem aqui vive só de cortar seringa? Se assim fosse estaria todo mundo na miséria.” A venda de terras em unidades de conservação está sendo investigado pelo MPF.
Simbólica por levar o nome do mais importante líder seringueiro da Amazônia, a Resex Chico Mendes ainda hoje é reflexo da dualidade entre o avanço da pecuária e o extrativismo. Sem apoio do governo, o extrativismo seguirá perdendo força e diante de todos estes cenários, o futuro da unidade de conservação é visto como sombrio e incerto.
Procurado para comentar sobre a atual situação da reserva, o Ministério do Meio Ambiente não enviou respostas aos questionamentos apresentados pela reportagem até a publicação.
Fábio Pontes é jornalista baseado em Rio Branco, Acre. Marcio Pimenta é fotógrafo colaborador da National Geographic, confira seu trabalho no Instagram.