Como a economia de floresta em pé pode salvar a Amazônia – e o planeta
Iniciativas que aliam desenvolvimento econômico e preservação ambiental têm potencial para superar atividades ilegais e predatórias, dizem especialistas.
Do Mato Grosso ao Pará, um longo corredor verde estende-se formado por diferentes áreas de proteção ambiental. Assim que o governo federal propôs rever unidades de conservação neste ano, a ação criminosa de grileiros, madeireiros e garimpeiros ilegais se intensificou na região. Na rádio local dos moradores da Terra do Meio, como é chamada a região entre os rios Xingu e Iriri, circulou o boato de que as reservas extrativistas (Resex) poderiam perder o status protetivo. As áreas por enquanto foram poupadas pela legislação, mas Altamira, o município em que se situam, ocupa o topo da lista do sistema Deter do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), com alertas de desmatamento em 846,8 km² de 1º de janeiro a 10 de setembro deste ano – 216,1 km² em unidades de conservação. A situação tomou uma proporção assustadora, relata Pedro Pereira, seringueiro e liderança comunitária da Resex Riozinho do Anfrísio. “É nessa hora que a gente tem que achar quem possa ajudar. Passou um bocado de anos desde que foi criada a Resex com tudo quieto. E aí hoje disparou. Voltou, e voltou com força”, diz Pereira.
Se desmatamento e queimadas marcam o atual momento da Amazônia, a economia da floresta em pé consolidou-se como importante motor econômico das reservas extrativistas do Riozinho do Anfrísio, do Iriri e do Xingu. Atualmente, os povos vendem borracha, castanha-do-pará, óleo de copaíba, farinha e óleo de babaçu, entre outros. Óleo de coco e andiroba são os próximos produtos que extrativistas pretendem comercializar. Os povos da floresta do Xingu integram a rede Origens Brasil, administrada pelo Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora) em parceria com o Instituto Socioambiental (ISA). Em junho, a iniciativa conquistou o Prêmio Internacional de Inovação para a Alimentação e Agricultura Sustentável, da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO).
Pereira, de 54 anos, é filho e neto de cearenses que migraram para a Terra do Meio, contratados para trabalhar como seringueiros durante o ciclo da borracha na Amazônia na década de 1940. Com o fim do boom econômico em 1945, os “patrões” e o Estado abandonaram a região, mas os trabalhadores continuaram e as relações comerciais se modificaram.
Na terra em que Pereira cresceu, os moradores “não sabiam nem o que era governo, praticamente ninguém sabia ler nem escrever”. Em novembro de 2004, a criação da Resex do Riozinho do Anfrísio começou a transformar a comunidade. O ISA, entidade do terceiro setor, ajudou na construção da primeira escola da região em 2009, sem auxílio do poder público. Ao longo do tempo, seringueiros e índios passaram a dialogar mais e evitaram conflitos. Possuem em comum o zelo pela floresta em pé, seja por razões econômicas ou culturais. Mas a ausência do Estado ainda é sentida na região. Há postos de saúde sem enfermeiros, a comunicação se dá apenas via rádio e o banco mais próximo está a centenas de quilômetros de distância por rio, em Altamira, me conta Pereira.
Fincados no meio da Amazônia paraense, restou aos extrativistas negociar com “atravessadores”, ou “regatões”. Essa única opção para escoar a produção gerava acordos comerciais instáveis. Se o acerto inicial com o regatão por duas latas de castanha (20 kg cada) era de R$ 80, ilustra Pereira, no meio da produção o atravessador baixava sua oferta para apenas R$ 30.
Até que em 2011 a Firmenich, líder global de fragrância e sabores, resolveu mudar seu método de trabalho. Em vez de comprar o óleo de copaíba de fábricas intermediárias sem conhecer a origem, a empresa suíça optou por uma relação direta com os extrativistas. Procurou o ISA e o Imaflora para auxiliar no acesso às regiões e mediar uma comercialização justa e sustentável. Assim, nasceu uma nova dinâmica econômica para a Terra do Meio. No início da parceria, a empresa disponibilizou um capital de giro de R$ 10 mil aos seringueiros.
“Antes a gente produzia muito, muito mesmo, e não tinha valor, porque vendia para um atravessador num preço bem mínimo, e ele nos vendia mercadoria, que era muito cara”, recorda Pereira. “O regatão pagava R$ 10 pelo quilo do óleo de copaíba. Com a empresa deu uma segurança, foi uma coisa bem transparente. O primeiro preço dela foi R$ 25,50 o quilo. A partir dali, todo ano aumentava o valor. Hoje o extrativista recebe R$ 44 no quilo, e a empresa ainda paga o transporte da Resex para Altamira, nota fiscal, lacre e fundo de administração.”
Na Terra do Meio, as casas se distribuem às margens dos rios, geralmente a meia hora de distância uma da outra. Ao observar a dificuldade logística, Pereira montou a primeira cantina – um galpão para concentrar a produção da região e facilitar a venda dos produtos da floresta. Hoje, já são 27 cantinas administradas por cantineiros eleitos por cada comunidade.
Pereira é zelador de uma escola a meia hora de rio de sua casa. Quando retorna, divide-se entre a roça e a cantina. As reuniões também são constantes, sendo duas delas mais importantes. Todo mês de novembro ocorre um encontro entre os produtores para definir os preços das mercadorias. Em maio, reúnem-se com as empresas parceiras, convidam outras interessadas e assinam os contratos. Hoje eles fornecem, por exemplo, a castanha-do-pará para pães artesanais da Wickbold e da Purorgânico, a borracha para os artigos da Mercur e o óleo de copaíba para a Firmenich.
Antes, os extrativistas não tinham muito cuidado na produção de castanha, borracha e copaíba, lembra Pereira. Como desconheciam o destino das mercadorias, inexistia a exigência de padrões. Isso mudou com os contratos diretos com empresas, a partir do Origens Brasil. “Precisamos da castanha limpa, de boa qualidade. Recebo elas no galpão e tenho o trabalho de catar aquela castanha podre todinha, juntar, botar num canto. Ponho as boas para enxugar, deixando no padrão, para mandar pra empresa, ter um preço bom para que chegue ao consumidor um produto de boa qualidade.”
A nova bioeconomia
Em 2014, o ISA convidou o Imaflora para desenvolver um mecanismo de valorização dos produtos da floresta na Terra do Meio. Primeiro, os institutos reuniram-se com as comunidades e as empresas, para entender o que ambos buscavam. “A cadeia da sociobiodiversidade é muito complexa. As comunidades estão isoladas, boa parte da coleta ocorre de forma extrativista. Até chegar na indústria, um produto passa por diversas mãos e muitas vezes os produtores são remunerados de forma bastante inadequada”, avalia Patrícia Cota Gomes, gerente do Imaflora e coordenadora do Origens Brasil. “Então, queremos promover uma relação direta entre os produtores e a empresa que consome matéria-prima, para que possam pensar juntos em soluções para essa cadeia.”
O Imaflora é uma organização da sociedade civil que completará 25 anos em 2020, focada em ações voltadas à economia de floresta em pé. Se as atividades agroextrativistas sustentáveis das comunidades são valorizadas, os produtos fazem frente às atividades ilegais e predatórias que ameaçam os territórios, acredita Patrícia. “A ideia é ser uma ferramenta que use a tecnologia para aproximar o campo da cidade, com o valor socioambiental desses produtos e um sistema que forneça informações reais aos consumidores.”
O Origens Brasil foi lançado em 2016, após dois anos de planejamento. Logo, a rede se expandiu por todo o Xingu, território que hoje conta com 545 produtores cadastrados divididos em 78 grupos. No primeiro ano, a comercialização de 12 produtos da floresta gerou uma receita de R$ 519 mil para as comunidades. Em 2018, a renda saltou para R$ 2,46 milhões e 26 tipos de produtos – um total acumulado de R$ 3,3 milhões em três anos de projeto.
Com o resultado positivo da rede, o Imaflora conseguiu um financiamento do Fundo Amazônia para ampliar o Origens Brasil a outros territórios. O critério principal é que sejam populações tradicionais que vivam em áreas de proteção. A rede identifica as cadeias de valor estruturadas na comunidade e mapeia os atores locais – produtores, associações comunitárias e organizações de suporte técnico. Depois, fornece ferramentas para que as organizações locais informem sobre produções e ofertas do território. Em seguida, faz um processo de sensibilização das empresas interessadas, “para que elas possam se aproximar das comunidades e construir uma relação comercial diferenciada, geradora de desenvolvimento local”, observa Patrícia.
Em 2017, dois novos territórios amazônicos aderiram à rede: a Calha Norte e o Rio Negro. A próxima região será o Solimões. O Origens Brasil conta hoje com 1.508 produtores cadastrados e 14 empresas membro, que trabalham com 33 produtos da floresta. Os produtores geraram uma receita de R$ 4,7 milhões de 2016 a 2018. Do valor aprovado pelo fundo, o programa recebeu até agora 75%, em quatro aportes que totalizam R$ 12,94 milhões dos R$ 17,37 milhões.
“Se crescermos para mais territórios, conseguimos mais oferta de produtos, mais empresas membros e teríamos um modelo de sustentação que permitirá que o negócio tenha vida própria e não dependa de doações”, observa Patrícia. “Desenhamos inicialmente que o Fundo Amazônia precisaria de dois ciclos de aceleração, para que depois o Origens pudesse ficar mais independente financeiramente, mas estamos em vias de fazer apenas um.”
O Fundo Amazônia está paralisado diante das propostas do governo federal para alterar seus mecanismos. Os países colaboradores, Noruega e Alemanha, discordam da postura do governo e já suspenderam doações de R$ 133 milhões e R$ 151 milhões, respectivamente.
Patrícia considera que o Brasil ainda não olha de forma estratégica para a biodiversidade. Ela destaca o babaçu como exemplo do potencial inovador da Floresta Amazônica, a partir do qual as comunidades e uma empresa de cosméticos encontraram a solução para um grave problema ambiental. Geralmente, cremes como protetor solar contêm microesferas plásticas para espalhar melhor na pele. Esses microplásticos terminam em rios, mares e no organismo de animais aquáticos. Os extrativistas, então, peneiraram a farinha do babaçu em uma granulometria muito pequena que, encapsulada, serve como alternativa ecológica.
[Relacionado: O que é e qual a importância do Fundo Amazônia, alvo de críticas do governo federal]
“Imagina ter um comando e controle eficiente e um incentivo de crédito, fiscal, logístico para empresas que consomem produtos da sociobiodiversidade”, vislumbra Patrícia. “Isso geraria uma distribuição de renda para essas comunidades e permitiria que as populações sigam em seus territórios exercendo seu papel mais importante: como guardiãs da floresta.”
A cadeia informal dos produtos florestais não madeireiros emprega 41 milhões de pessoas no mundo, três vezes mais que no setor rural formal, conforme dados de 2014 da FAO. Cerca de 80% da população de países em desenvolvimento dependem deles para fins alimentares, medicinais, cosméticos ou na confecção de utensílios e abrigos.
De 2009 a 2018, o Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) monitorou 80 produtos florestais não madeireiros (PFNMs) em quatro cidades – Belém, Breves e Gurupá, no Pará, e Santana, no Amapá. Os preços dos produtos são divulgados semanalmente pela ONG. O trabalho resultou no estudo Preços de Produtos da Floresta, publicado em maio passado.
Destacaram-se os derivados do açaí, buriti, castanha-do-pará, cupuaçu, mel de abelha, andiroba, copaíba e pupunha. O Imazon constatou alta nos preços e na frequência com que eram encontrados no mercado. Entretanto, consideram que a diversidade de produtos ainda é pequena e a adesão do consumidor, baixa.
A economia dos PFNMs ainda representa apenas 0,02% do Produto Interno Bruto brasileiro, com R$ 1,5 bilhão ao ano. O Pará é responsável por aproximadamente 31% da produção, de acordo com o IBGE. Em Belém, o estudo do Imazon identificou uma receita bruta de R$ 1,054 bilhão acumulada em dez anos. Do valor, 89% corresponde ao açaí, 6,1% à castanha-do-pará e 4,1% à pupunha. Como apenas o açaí é calculado pelo indicador oficial da inflação, o IPCA, o instituto criou um índice próprio, o IPFNM. A valorização dos preços analisados na última década foi de 128%, ou 12,8% ao ano.
“A floresta é muito heterogênea, então a sobrevivência e a economia devem ser plurais. Uma comunidade não vai viver bem só do açaí”, analisa Andréia Pinto, bióloga, pesquisadora adjunta do Imazon e doutora em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade Federal do Pará. “O policultivo é mais seguro tanto para equilibrar a renda do produtor, quanto para manter a capacidade de renovação das próprias espécies naturais da floresta.”
Para aumentar a regularidade e o alcance dos produtos florestais, o relatório do Imazon recomendou “o fomento às frentes de abastecimento; manejo dos estoques naturais, cultivo em sistemas agroflorestais, adoção de boas práticas de manipulação e estocagem; controle de pragas e doenças e uso de tecnologias de irrigação; e modernização da logística de produção e distribuição”.
Terceira via amazônica
A economia de floresta em pé dialoga diretamente com o último relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), lançado em agosto passado, avalia o climatologista Carlos Nobre. O IPCC aponta que 23% das emissões de gases de efeito estufa estão relacionadas ao setor agropecuário, a produção de alimentos e o desmatamento. A transição para uma agricultura e uso da terra sustentáveis se faz urgente, pois, conforme a temperatura aumenta, o solo vai perdendo a capacidade de absorver carbono da atmosfera. Essa mudança precisa estar bem encaminhada até 2040, para que sejam alcançadas as metas estabelecidas no Acordo de Paris e se mantenha o aumento da temperatura em no máximo 2ºC, aponta o estudo.
“Manter a floresta em pé é essencial para deixar o carbono seguramente armazenado na vegetação e não tornar-se CO2 na atmosfera, o que aumentaria o aquecimento global. E quanto mais cobertura vegetal tiver, maior a quantidade de CO2 retirado da atmosfera pelas florestas”, explica Nobre. A Amazônia armazena entre 150 e 200 bilhões de toneladas de carbono. Se não for protegida, a floresta pode deixar de ser um sumidouro para virar um grande emissor de gases de efeito estufa.
Em artigo publicado em 2016, Nobre propôs uma “terceira via amazônica”, conceito batizado de Amazônia 4.0. “Essas ideias estão na minha cabeça há muito tempo”, diz o doutor em Meteorologia pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT), que tem focado em pesquisas na Amazônia sobre a interação entre floresta e clima desde meados dos anos 1970. “Eu só escrevia sobre os riscos e nunca tinha trabalhado no território das soluções.”
Por enquanto, nenhum país tropical reconhece a biodiversidade como potencial econômico, reflexo cultural e antropológico do desprezo pela cultura dos povos originários herdada dos colonizadores europeus, observa Nobre. Para o cientista, as grandes potências ainda enxergam produtos da floresta como um mercado de nicho, a exemplo do açaí. Enquanto a ciência já reconhece os possíveis usos de mais de 500 produtos da Amazônia, no máximo 15 já conseguiram relevância econômica.
“O Amazônia 4.0 visa exatamente explorar esse potencial com as ferramentas modernas da quarta revolução industrial – a junção de tecnologias digitais, biotecnologias, nanotecnologias e ciência dos materiais”, observa Nobre. “Elas já são muito baratas, acessíveis, amigáveis e duráveis. O custo deixa de ser um impeditivo para desenvolver essa bioeconomia.”
O projeto teve início em 2017 e é apoiado pelo Instituto de Estudos Avançados da USP e pelo Imazon. Também trabalham no programa os cientistas Ismael Nobre, Maritta Koch-Weser, Adalberto Veríssimo e Maria Beatriz Costa. O objetivo é instalar laboratórios criativos e itinerantes na Amazônia, onde fornecerão capacitações de seis a oito semanas aos produtores locais. Os pesquisadores já desenharam os laboratórios para as cadeias de cupuaçu e cacau e terminarão o da castanha neste ano, além de um de biologia avançada, que envolve genoma e recursos biológicos. O projeto propõe também a criação da primeira escola de negócios sustentáveis em florestas tropicais no mundo, a Rainforest Business School. A expectativa é obter financiamento para que o trabalho em campo comece em 2020.
Uma vez demonstrada a viabilidade dessa cadeia de produção, o passo seguinte será dar escala. Para isso, seria necessário o apoio de startups e empresas para a criação de miniusinas em que as cooperativas locais poderão agregar valor aos produtos. “Poder ter bioindústrias grandes, mas também as de escala regional”, pondera Nobre. “São mais de 3.500 comunidades em toda a Amazônia, então precisa de um modelo descentralizado de desenvolvimento e industrialização.”
Outra proposta do Amazônia 4.0 é implementar sistemas agroflorestais em parte dos 170 mil km² degradados e abandonados pela agropecuária na Amazônia. Com isso, é possível “recuperar áreas desmatadas e absorver carbono, recuperar a biodiversidade e a fertilidade do solo, e fornecer importantes serviços ecossistêmicos para a sustentabilidade do planeta Terra”, avalia Nobre. “Nesses sistemas, a floresta tem uma densidade maior de espécies com utilização econômica – por exemplo, açaí e castanha –, com os próprios polinizadores, os inimigos das pragas e um maior equilíbrio ecológico.”