Morte em massa da vida marinha na Rússia ameaça lontras e outras espécies vulneráveis
Proliferação atípica de algas pode ser a causa da dizimação da vida marinha do fundo do mar, gerando uma onda de efeitos devastadores.
Uma foca-manchada (Phoca largha) foi encontrada morta na praia de Khalaktyrskiy, no Extremo Oriente da Rússia, ao lado de ouriços-do-mar, estrelas-do-mar e outros habitantes das profundezas, todos sem vida.
14 DE SETEMBRO FOI um dia ensolarado atípico na praia de Khalaktyrskiy. Ventos marítimos agitavam as ondas e, com 12 oC, a água estava mais quente que o ar. As condições eram ideais para o surf, pelo menos para os padrões da “terra de fogo e gelo”, a península de Kamchatka, na Rússia, no extremo leste.
Porém, meia hora depois que Katya Dyba, administradora da Snowave, escola de surfe local na costa do Pacífico, saiu do mar depois de surfar algumas ondas, sua visão começou a embaçar e a garganta doer. Um de seus colegas de trabalho não conseguia abrir os olhos.
Os surfistas primeiramente culparam o brilho do sol ou os fortes ventos. Porém, quando começaram a sentir náusea, vômito, diarreia e febre nos dias seguintes, perceberam que o veneno estava no próprio oceano. No total, 16 pessoas buscaram atendimento no hospital; muitas foram diagnosticadas com queimaduras na córnea.
Enquanto isso, pilhas de ouriços-do-mar e estrelas-do-mar sem vida surgiam na costa leste de Kamchatka. Banhistas recolhiam polvos vermelhos, praticamente sem vida, pelos tentáculos. Uma mancha de espuma fétida amarelada com centenas de metros de largura e quilômetros de comprimento flutuava mais adiante na costa. Mergulhadores estimam que, em alguns lugares, 95% dos organismos que viviam no fundo do mar morreram.
“Minha reação foi de absoluta perplexidade porque estamos acostumados a ver a água da praia de Khalaktyrskiy sempre muito limpa. Nada parecido com isso havia acontecido antes”, disse Dyba, que, um mês depois, ainda sofre com os olhos secos.
O problema se espalhou para o sudoeste, ao redor da península, e atingiu outros animais em níveis mais altos da cadeia alimentar: milhares de peixes mortos, em sua maioria, peixes que habitam o fundo do mar, foram encontrados na costa oeste de Kamchatka esta semana, e diversos ursos-pardos sofreram grave intoxicação alimentar depois de ingeri-los — apenas um exemplo dos possíveis efeitos colaterais que essa morte em massa da vida marinha é capaz de causar.
Embora muitos inicialmente suspeitassem de poluição, cientistas agora dizem que as mortes foram provavelmente causadas por uma proliferação de algas. Essa hipótese levanta questões ainda mais preocupantes sobre como as mudanças climáticas estão afetando um dos ambientes marinhos de maior biodiversidade do planeta, lar de espécies ameaçadas de extinção, como a truta-arco-íris e lontras-marinhas.
“Não esperávamos que a área de proliferação das algas [fosse] tão grande”, afirmou Kirill Vinnikov, biólogo marinho da Universidade Federal do Extremo Oriente. “É um caso sem precedentes.”
“Toda a zona costeira está infectada”
Pendurada na costa do Pacífico na Rússia como uma cauda caída, Kamchatka tem a maior concentração de vulcões ativos da Terra. Os rios descem em cascata a partir desses campos de lava e geleiras e desaguam em imensos pântanos formando a área de desova perfeita para seis espécies de salmão-marinho, que, por sua vez, fornecem comida para ursos-pardos, focas-manchadas, orcas e um número cada vez menor de águias-marinhas-de-steller e leões-marinhos-de-steller. O salmão geralmente se alimenta de zooplânctons presentes na corrente de Kamchatka, que é rica em nutrientes, assim como as baleias-cinzentas e as baleias-francas em grande risco de extinção.
Embora Kamchatka seja sinônimo de salmão, ela conta também com uma grande variedade de espécies que habitam o fundo do mar, como peixes, moluscos, anêmonas, estrelas-do-mar e ouriços-do-mar, que sustentam mamíferos como morsas e lontras. Incapazes de nadar para longe de águas contaminadas, o número de mortes desses organismos do fundo do mar cresce em grandes proporções.
Espuma amarela atinge a praia de Khalaktyrskiy. As autoridades locais inicialmente suspeitaram de um vazamento de óleo e produtos químicos industriais, mas as evidências agora apontam para uma proliferação maciça de algas tóxicas.
“Um elemento vital desse ecossistema foi eliminado repentinamente”, disse Vasily Yablokov, gerente de projeto climático do Greenpeace Rússia, que tem coletado amostras em Kamchatka.
Ao passo que cientistas rapidamente excluíram a atividade vulcânica como a causa de morte da vida marinha, amostras coletadas na praia de Khalaktyrskiy constataram a presença de níveis extremamente elevados de fenol, ferro, derivados de petróleo, íons de fosfato e mercúrio. Mas nenhuma dessas concentrações nem as águas residuais despejadas por um navio que passou em 23 de setembro pareciam significativas o suficiente para explicar o número devastador de mortes. As autoridades também descartaram o vazamento de um depósito de pesticidas próximo e de uma base de teste militar.
Na semana passada, cientistas sobrevoaram a costa em busca de pistas. Eles avistaram faixas amarelas, verdes e vermelhas na água, que sugeriam a proliferação de algas. Esse fitoplâncton microscópico produz até metade do oxigênio do mundo, mas certas espécies podem crescer descontroladamente quando se “alimentam em excesso” do derramamento de nutrientes ou quando a temperatura da água aumenta. Quando isso acontece, eles emitem toxinas e esgotam os níveis de oxigênio da água à medida que morrem e começam a se decompor no fundo do mar. Esse evento poderia explicar a alta mortalidade entre os habitantes das profundezas de Kamchatka, afirma Vinnikov.
“Sobrevoamos 100 quilômetros ao sul de Kamchatka e observamos esse tipo de descoloração da água em quase toda a área costeira”, afirmou. “Toda a zona costeira está infectada.”
Posteriormente, o DNA de diversas espécies de algas Gymnodinium, cujas toxinas são conhecidas por causar irritação nas narinas e garganta dos seres humanos, foi identificado em amostras de água e sedimentos. Embora as concentrações não fossem altas, imagens de satélite no fim de setembro também mostraram que a quantidade de clorofila — pigmento fotossintético em plantas e algas — na Baía de Avacha, região sudeste da península, era o dobro da média mensal, de acordo com Raphael Kudela, da Universidade da Califórnia, em Santa Cruz.
Maré vermelha, alerta vermelho
Proliferações de algas são comuns em Kamchatka. Esse suposto evento, no entanto, foi mais extenso e duradouro do que qualquer outro na história recente, segundo Vinnikov.
Além dos invertebrados, salmões, a base da cadeia alimentar e da economia local, também foram encontrados mortos na costa marítima. Nesta época do ano, o salmão-prateado vem do oceano e sobe o rio para desovar, provavelmente passando pela maré vermelha.
“Os peixes que estiverem nadando naquela área no momento da proliferação, se ela for grande o suficiente, provavelmente serão afetados e possivelmente morrerão por exposição aguda a uma toxina poderosa”, afirma o cientista sênior de Woods Hole, Don Anderson. Contudo, a mistura com o oceano poderia rapidamente eliminar a contaminação da água, acrescenta.
Peixes, zooplâncton e organismos que vivem no fundo do mar e que se encontram na base da cadeia alimentar podem transmitir as toxinas das algas aos predadores, como morsas e baleias, ou simplesmente privá-los de alimentos quando há mortes em massa devido ao esgotamento do oxigênio.
Até o momento, o número de mortes de ouriços-do-mar foi maior do que o de peixes, aumentando a preocupação com a sobrevivência das lontras-marinhas, que se alimentam basicamente de ouriços-do-mar. Depois que a separação soviética abriu a península para a pesca intensiva, a população de lontras caiu de milhares para cerca de 200 no sul de Kamchatka atualmente. A diminuição dos ouriços-do-mar pode “afetar de forma muito negativa a população dessa espécie”, afirma Vladimir Burkanov, cientista-chefe da filial do Instituto Geográfico do Pacífico em Kamchatka, com sede em Vladivostok, pois as lontras-marinhas normalmente migram menos em busca de alimentos do que outros mamíferos marinhos.
Segundo Anderson, as autoridades de Kamchatka deveriam continuar investigando sinais de poluição química, o que pode ter contribuído com os nutrientes que desencadearam a suposta proliferação de algas. Abordar a poluição seria uma solução mais fácil e imediata do que tentar mitigar as mudanças climáticas — a causa primária por trás de um aumento esperado das marés vermelhas em todo o mundo.
Embora o Ártico esteja cada vez mais vulnerável à proliferação de algas, ainda não há dados suficientes para dizer se esse é o caso na Kamchatka subártica. “De um modo geral, águas mais quentes tendem a aumentar esses tipos de proliferação, mas é muito complicado”, afirma Anderson. “Águas mais quentes podem expulsar algumas espécies [de algas] dessa área e mudar sua distribuição para o norte.”
Os cientistas agora clamam por maior monitoramento da qualidade da água em Kamchatka, por conta do que Burkanov chama de “maré vermelha e alerta vermelho”.
“Se for realmente uma maré vermelha em uma escala nunca observada antes, então é um alerta real”, diz ele. “E isso é ainda pior do que a poluição local causada por determinados produtos químicos.”