A "pele" do deserto está desaparecendo, mas estas plantinhas de laboratório podem salvá-la

As biocrostas formam uma importante camada viva no deserto árido, como uma cobertura que atua prevenindo tempestades de areia e ancorando as plantas. Cientistas tentam cultivar esses sistemas complexos e transplantá-los.

Por Carrie Arnold
Publicado 15 de mar. de 2022, 09:42 BRT
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As biocrostas vivas são compostas por cianobactérias, musgos, líquens e fungos, todos os quais protegem e fertilizam o solo do deserto para que ele possa hospedar plantas maiores, como este cacto anzol.

Foto de Neal Herbert, NPS

Anita Antoninka deixa pingar um fluxo de água sobre uns pontinhos pretos em um pequeno trecho do deserto do Arizona, nos Estados Unidos.

Embora o solo sob seus pés pareça empoeirado e inerte, a ecologista jura que há vida escondida lá, e que ela irá ressuscitá-la. Em poucos segundos, os pontos se desenrolam até formar uma maravilhosa cobertura de pequeníssimas folhas verde-escuras: é musgo.

Cada musgo é menor do que a borracha de um lápis e a aparência repentina de centenas deles cria um tapete mágico de vida. O truque que fez, diz Antoninka, revelou "um mini ecossistema em andamento".

Seca ou úmida, essa camada de um milímetro de espessura composta por micróbios e plantas e chamada de biocrosta, cria um manto protetor nos lugares mais áridos da Terra.

As biocrostas absorvem dióxido de carbono e liberam oxigênio. Elas também fertilizam o solo seco convertendo o nitrogênio da atmosfera em uma forma que as plantas conseguem utilizar, promovendo a presença de plantas maiores, cujas raízes ancoram o solo, o que, por sua vez, evita a erosão.

Biocrosta em perigo

Porém, em áreas desérticas ao redor do mundo, as biocrostas se encontram ameaçadas de extinção por causa das mudanças climáticas e a expansão das zonas pecuárias e de recreação, entre outras atividades humanas.

As biocrostas podem voltar a crescer, mas o processo demora séculos. Se perdermos essas partes pouco conhecidas, mas vitais aos ecossistemas do planeta, dizem os cientistas,  tempestades mortais de areia aumentarão, enquanto a biodiversidade diminuirá.

É por isso que Antoninka, da Universidade do Norte do Arizona, nos EUA, e um pequeno grupo de outros pesquisadores de biocrostas começaram um novo e ambicioso experimento: cultivar biocrosta em grandes hortas e transplantá-las para algumas das áreas secas mais degradadas do sudoeste dos EUA. É importante ressaltar que esse projeto dá aos cientistas a oportunidade de estudar como as mudanças climáticas afetarão esses ecossistemas tão resilientes e frágeis ao mesmo tempo.

“Esses experimentos oferecem uma grande oportunidade para puxar as fronteiras do sistema e entender os mecanismos que fazem com que uma biocrosta fique resistente o suficiente para sobreviver às mudanças climáticas”, comenta Sasha Reed, ecologista do Centro de Ciência Biológica do Sudoeste do Serviço Geológico dos EUA.

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Um exemplo saudável de biocrosta no solo do deserto em Utah.

Foto de Bazzano Photography, Alamy Stock Photo

A origem da biocrosta

Embora as biocrostas cubram, atualmente, milhares de quilômetros quadrados de solo ao redor do mundo (os cientistas estimam que elas atinjam 12% da superfície da Terra), cada crosta começa com um micróbio minúsculo chamado de cianobactéria.

Arrastadas pelo vento desde uma biocrosta existente, algumas espécies de cianobactérias podem viver em solos que se esfarelam ou são estéreis. Não parece muita coisa, mas é o suficiente para semear o início de um novo terreno de biocrosta.

Essas células resistentes, porém, têm uma grande fraqueza. Como fazem as plantas, elas absorvem a luz solar, mas a sua cor pálida significa que elas não produzem melanina, um pigmento escuro que age como um protetor solar químico, o que deixa o seu DNA vulnerável à radiação UV.

Quando o sol bate forte, as cianobactérias unicelulares recuam para logo abaixo da superfície, segregando açúcares pegajosos que criam um caminho onde elas podem se movimentar.

Usando a ponta da sua espátula para cimento, Antoninka pega um pedaço de biocrosta (do tamanho da metade de uma nota de dólar) embaixo de ramos emaranhados de uma árvore do tipo mesquite e o segura entre os dedos.

Ela aponta para vários grãozinhos de poeira com forma de fios quase invisíveis pendurados no pedaço de biocrosta, evidenciando os carboidratos aderentes que a cianobactéria deixa. Sem essa atividade, assegura Antoninka, esse aglomerado sólido seria apenas areia.

"Pense em espaguete. Você joga o espaguete contra a parede e ele fica colado. É a mesma coisa aqui", diz Antoninka, olhando para o sol brilhante do Arizona, que chega a ultrapassar a marca de 29°C mesmo em meados de novembro (quase inverno no Hemisfério Norte). “À medida que as cianobactérias constroem essa matriz, eles unem a superfície do solo. É muito bom."

Através do vento, junto das cianobactérias pálidas viajam também as suas irmãs, que são mais escuras. Ambos os tipos de cianobactérias aportam nutrientes vitais e estabilidade ao solo, propiciando um habitat favorável para musgos, líquens e fungos que o mesmo vento traz.

Só quando essa gama completa de organismos começa a trabalhar em conjunto é que existe uma verdadeira biocrosta, cuja época de crescimento começa com as chuvas sazonaiss.

À medida que as águas das inundações recuam, os organismos de biocrosta secam e ficam dormentes. Com o retorno da umidade, as plantas ressuscitam. Reed não sabe quanto tempo as biocrostas podem aguentar sem chuva, mas ela suspeita que conseguem sobreviver ao menos décadas, se não mais.

Matthew Bowker, colega de Antoninka na Universidade do Norte do Arizona, afirma que “se toda essa superfície do solo não se mantivesse unida, seria realmente suscetível a ser levada pelo vento ou pela água”.

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      À esquerda: No alto:

      Imagem ampliada das baias que as cianobactérias deixam quando vão se enterrando.

      À direita: Acima:

      As cianobactérias se movem através de partículas do solo, deixando para trás fibras pegajosas (os fios brancos mostrados acima) que agrupam as partículas do solo. Essas fibras permanecem pegajosas muito tempo depois da morte das próprias cianobactérias e se agrupam em uma espessa e contínua crosta de solo.

      fotos de USGS

      Como as biocrostas evoluíram

      As biocrostas podem ter evoluído para suportar a seca, mas não desenvolveram defesas contra a atividade humana.

      O muro fronteiriço que separa os Estados Unidos do México corre ao longo do extremo sul do Monumento Nacional Organ Pipe Cactus. As vans da patrulha fronteiriça dos EUA lançam uma nuvem quase constante de poeira sob o céu azul enquanto atravessam o que costumava ser um habitat primordial para a biocrosta da região.

      Quando Antoninka veio aqui para ver como o tráfego e as máquinas pesadas trazidas para construir o muro afetam as crostas antigas, a cientista fez uma descoberta previsível: elas não estão bem. Cada passo lança uma pequena nuvem de sujeira solta, porque não há biocrostas que mantenham o solo no lugar durante os verões chuvosos.

      Antoninka leva a perda para o lado pessoal. Ela cumprimenta as biocrostas no campo como se fossem velhas amigas. “Há um Heppia lá!”, exclama, “e um Collema!”. Correndo daqui para lá, enquanto marca o perímetro da crosta que a sua equipe esteve coletando no dia, ela fica muito contente quando encontra uma floração inesperada. Agachada, olha concentrada para a terra escura no meio da poeira de cor bege e solta: “Ai, são tão bonitinhas! Oi, meninas!”.

      Os esforços de restauração da biocrosta

      Consternados pela grande perda de biocrosta no sudoeste dos Estados Unidos devido à construção, os incêndios e outras atividades humanas, Antoninka e Bowker estão cultivando biocrosta em um laboratório, com o objetivo final de criar materiais de transplante para ajudar na restauração.

      Foi isso o que trouxe Antoninka e sua equipe até o deserto de Sonora para colher biocrosta saudável do Organ Pipe, bem como dos Monumentos Nacionais de Tonto e Casa Grande. Nesses três locais são extraídos pequenos pedaços de biocrosta saudável para servirem como estoque de sementes para o laboratório.

      Felizmente para os pesquisadores, só são necessárias pequenas amostras, porque os organismos da biocrosta são totipotentes, o que significa que qualquer célula individual pode fazer que cresça o organismo todo, desde que as condições sejam as adequadas.

      E adequado quer dizer difícil. A vida em uma estufa, com a temperatura constante, sombra e umidade, é fácil demais para a biocrosta; experimentos nelas têm falhado.

      Plantá-las ao ar livre, apenas protegidas do calor extremo e da aridez, foi suficiente para fortalecer as pequenas plantas sem matá-las. A equipe agora cultiva novas crostas em juta e outros substratos biodegradáveis para que as biocrostas possam ser enroladas, transportadas e desenroladas intactas em um novo local.

      “Antoninka está liderando. Ela está empurrando esse estudo para a frente incrivelmente rápido”, celebra Akasha Faist, ecologista da Universidade do Estado do Novo México, nos EUA. Há anos, diz Faist, os ecologistas esperavam que as biocrostas retornassem por conta própria, mas agora, os esforços de Antoninka e outros começaram a acelerar esse processo natural.

      Preparando a biocrosta para um novo clima

      Até o momento, os pesquisadores transplantaram biocrostas com base em onde a espécie foi originalmente encontrada. Mas o trabalho de Reed no Serviço Geológico dos Estados Unidos mostra que mesmo pequenas mudanças de temperatura e precipitação podem criar estresse mortal nesses organismos, que já vivem no limite.

      Em vez de cultivar crostas sob as condições atuais, Antoninka quer cultivá-las em lugares mais quentes e secos para que elas possam se proteger em um planeta que se torna cada vez mais quente.

      "Precisamos parar de restaurá-las no ambiente atual e começar a ter em consideração as condições futuras", reflete Antoninka. "Eu não sei se vai funcionar, mas vale a pena tentar."

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